Teosófico
Perdi-me no templo era muito novo hoje me contemplo mais perto do povo Se tive razão? Mas isso que importa quando a presunção bate à nossa porta Mas quero saber ao fim e ao cabo se o termo do "ser" é morte onde acabo Curiosidade se existe um Além se a Felicidade é nossa também Por muito que pense ninguém me responde nada me convence não se sabe aonde Já desesperado e muito aflito não mudo de estado malgrado meu grito Se Deus me responde no fundo de um poço é Voz que se esconde e som que não ouço Porto 8-11-96
Arco-Íris
Já nos perdemos a contar estrelas insaciados de um perfume de urze vestidos de amarelo nas tojeiras e cada espinho lacerando a vida Assim a Natureza a consumir-nos e a convidar-nos ao nascer da noite a descobrir a origem do regato por entre pedras lisas coleante Há sempre uma promessa por cumprir no silêncio lunar e no mistério do vento a confundir vagas ideias Só uma truta entre nós e as águas me faz acreditar no arco-íris e na força da cor das nossas almas. (Porto, 04-12-96)
Saudade
Saudade folha morta envolta em bruma pedaço de vontade entristecida vaga de mar a rebentar em espuma breve morrer bem agarrado à vida Inconsequência sem razão alguma no recordar penosa recaída numa febre de mal que se consuma intermitente sem lograr saída Contudo há quem a veja no seu seio a fulminar-se em laivos de insensato aproximando a dor à realidade de ter nascido um sonho de permeio sem querer acordar o gosto grato que lhe transmite a névoa da saudade (Porto,02-01-97)
Confusão
No espaço de um abraço resta o desejo de um beijo e o sol queimando o lençol A felicidade é escassa e ao cortar-nos no seu gume como lume nos trespassa embora gema de frio no que sobra de um vazio na dependência da ausência de um amigo que se afasta sem o aviso de um sorriso numa boca quase gasta pelo espaço o beijo o abraço o desejo o sol o vazio o lençol este frio a dependência o aviso a ausência de um sorriso Atenção à solidão Porto, 18-08-97
Recordação antiga
Vivendo o tempo aconchegado em líquenes enquanto cobras se enroscavam visgo alastrado alabastro vivo humano bifidamente tateando espaços entre humidades e florestas virgens estarei sempre no local exacto hipnotizada toutinegra envolta na incompleta magia do teu corpo cujo sangue me aquece e o nervo livre se acaba por perder em tais encantos Passeio pelo branco dos lençois acreditando nada mais ser outra vez inocente caminhar sem fim pela saudade antiga de nós dois Porto, 23-12-97
Desencontro
Não abras a janela a luz magoa ao desnudar-nos corpos de blasfémia a noite é mais discreta como fêmea insidiosa amante outra pessoa Amámos a mentira como boa companheira da sombra e da boémia até na semelhança a irmã gémea duma verdade quase dita à-toa Verdade ou mentira tanto faz se as nossas mãos se encontram num murmúrio de desespero a tactearem nada O nosso desencontro é incapaz de ser a chama excelente augúrio daquela convivência inacabada... (Porto, 8-1-98)
Espera
Existirá sempre entre nós um muro tijolos de silêncios um gesto começado a veloz maneira de fugir aos compromissos e murmúrios vagos Olhar-nos-emos através da lama na esperança de um galo de cristal nos reflectir a música enquanto a luz nos queima e a noite faz voltar as penas como compassos a marcarem passos indefinidamente estranhos sons As aves da memória já são longe na verdade impossível de aceitar Estou na chuva a suspirar alguém que não me chega nem por certo vem pelos caminhos do deserto do meu olhar distante na sua fome e sede de Beleza Mas continuo à sua espera e quero o renascer desse sorriso a alimentar-me o gosto de viver. Porto, 20-01-98
Poente
Havia um branco de neve onde o teu olhar abria uma promessa de breve sentido de nostalgia O sol desfez o projecto uma possível balada nascida desse objecto um olhar beijando o nada Ficou da neve o lençol amarfanhado na cama a noite apagou o sol diamante de quem ama Porto, 09-03-98
Rapsódia
Quando sem ti sem ter dinheiro sem ter tabaco sem ter amor sem ter ninguém desesperei fiquei sem nada de madrugada ouvi um mocho chamar por mim abria a noite dormia a lua e vagueei pela calçada da rua escura ia sem nada pemsando em ti não ter-te aqui minha flor rubra sangue-alvorada rosa vermelha ciúme velho beijo perdido no além do mar cais sem sentido seco areal de um ser perdido em Portugal (Porto, 27-03-98)
Herança
Nem só de fome morre o homem nu que também parte de ignorância cheio daqueles que passaram como tu sem respeitar-lhe a vida e o seu anseio Corpo de barro ou carne pouco importa se nele é impossível ver-se a alma o sofrimento espera quase morta ao ser-matéria onde nada acalma A lágrima incomoda por salgada o sorriso é idiota sem o pão por isso a Humanidade é deserdada restando a cada homem - solidão (Porto, 28-03-98)
Apontamento
Uma açucena a florir-te o rosto aberto num sorriso de inocência faz-me pensar no ramo que foi posto junto ao altar no branco da credência Mágicas flores a anunciar o gosto angelical em pura concorrência com a suave nota de composto conjunto de seráfica incidência Quisera o jardim onde colhesses como beijos sedentos de ternura os meus desejos transformando preces nesse milagre de um suspiro teu criando o ambiente de doçura que deve ser igual ao próprio céu (Porto, 21-04-98)
Meditação
Como na noite a sombra se ilumina e vai guardar serena junto a ti um frio gume de boémia fina que brilla em nós mas já não é daqui O sortilégio imenso de uma bruma a esfumar a magia da manhã promíscua nos lençóis de branca espuma por culpa de um luar de fé pagã E nesta ligação de fumo e calma algo se perde e voa como a luz a incerteza certa da minha alma e a sua consciência em contra-luz Porto, 28-04-98