Chegando a Lima, a capital peruana, depois de uma longa e cansativa viagem intercontinental, por muito bons filmes que exibam durante o voo temos que esperar com paciência pelas nossas malas e pelo controlo aduaneiro. Ao sair do aeroporto espera-nos um grosso cordão de pessoas que nos oferecem desesperadamente os seus serviços de táxi e outras que nos pedem esmola, criando-nos um ligeiro clima de terror. Já livres da incómoda situação inicial, respiramos tranquilamente dentro do táxi que nos leva ao nosso hotel, para descansar. O loquaz condutor explica-nos que nunca na sua vida viu um taxímetro, mas que já se estava a falar de começar a usá-los em Lima. Que havia algumas centenas de milhar de pessoas que trabalhavam como taxistas, que era o melhor recurso para ganhar a vida e compensar os baixos salários que o Presidente Fujimori não podia melhorar. Ah!, sim, que o terrorismo havia desaparecido, que já não era como antes e que o Nuevo Sol (a moeda em vigor) já não desvalorizava como há uma década atrás, altura em que a moeda nacional perdia rapidamente o seu poder aquisitivo: um dia podia-se comprar um televisor, três dias depois não se conseguia nem um rádio transístor. Eram tempos de loucura! Agora, o maior problema era o da delinquência urbana, que havia crescido consideravelmente; sequestros e assaltos ocorrem em qualquer lugar, mas já se estava a tratar do assunto, ou pelo menos já se falava em resolver a situação. O taxista disse-nos, ainda, que tinha estudado direito, mas que tinha que se desenrascar como podia pelos filhos, e ser taxista era fácil. O carro era de um vizinho que lho alugava por meio dia e assim ajudava a manter a sua família. "Com quatro filhos é impossível viver só com um emprego". Pagámos-lhe um pouco mais do que pediu e, com um sorriso, tirou-nos as nossas pesadas malas do carro. Entrámos no hotel sem a ajuda do porteiro que, parece, estava ocupado com outros viajantes, e a primeira coisa que nos dizem é que temos direito a um pisco sour de boas-vindas. Enquanto nos registamos bebemos, saboreando, o acre e doce cocktail à base de limão, açúcar, gelo moído, clara de ovo, aguardente de uva e umas gotas de angustura; o cocktail torna-se, então, numa mistura mágica que adiciona ao cansaço que sentíamos os sintomas de uma bebedeira ligeira que haveria de ajudar-nos no nosso sono reconfortante.
O objectivo do dia seguinte era aproveitar para descobrir a nova imagem do centro de Lima, que o seu empenhado presidente da Câmara (pertencente à oposição) estava a esforçar-se por desenvolver, não obstante os obstáculos levantados por Fujimori. Com um táxi tão velho e deteriorado que quase se desarmava pelo caminho, mas com um condutor muito risonho e optimista, com cara de avô e filhos muito pequenos da sua última mulher, chegamos à praça principal de Lima. Surpreende-nos a limpeza das ruas e constatamos que os vendedores ambulantes que antigamente não deixavam apreciar as fachadas da cidade, desapareceram como que por encanto. A imponente catedral, o palácio do governo, a municipalidade (Câmara Municipal) e outros edifícios principais mostram a beleza do centro histórico de Lima. As velhas varandas coloniais, feitas de madeira talhada, são apadrinhadas por empresas privadas que financiam o seu restauro - deste modo, o centro tradicional de Lima torna-se merecedor da sua nomeação como Património Universal da Humanidade. Um grupo folclórico, patrocinado pelas autoridades municipais, começa a dançar ao ritmo de uma pequena banda e os transeuntes vão rodeando os alegres bailarinos e bailarinas, contagiados pelo entusiasmo dos seus movimentos e vestes coloridas. Não podemos demorar-nos muito porque nos espera um amigo que nos levará a visitar umas ruínas ao sul de Lima. Para diminuir os efeitos do calor comemos um óptimo gelado de lúcuma, fruta típica do Peru. O nosso amigo preocupa-se em fazer-nos beber um copo de chicha morada, refresco feito à base de milho morado, açúcar, limão e pedaços de ananás. Assegura-nos que o restaurante é de confiança e que a água que usam é fervida. Bebemos com prazer e saímos correndo, antes que nos dê vontade de almoçar. Já não temos muito tempo... temos que ir às ruínas de Pachacamac e isso demora um pouco por causa dos engarrafamentos provocados pelos grupos de católicos que se manifestam contra o aborto concentrando-se na praça principal antes de assistir a uma missa celebrada na catedral. Mas com um pouco de sorte, lá conseguimos sair da confusão de trânsito rumo a Pachacamac.
Ao sul de Lima, no quilómetro 31 da estrada Panamericana Sul e a menos de um Km do Oceano Pacífico, depois de passar por diversos aglomerados habitacionais recentes, pobres e muito povoados, encontra-se Pachacamac.
Pachacamac (600 - 1500 D.C.) é um conjunto de pirâmides com rampas, templos, palácios e outras construções menores de origem pré-inca e inca, que constituem o complexo arqueológico mais importante da costa central do Peru. O centro religioso, construído quase exclusivamente em adobe, adquiriu prestígio como oráculo, convertendo-se num lugar de peregrinação, com visitantes provenientes de terras longínquas. Reconhecendo a relevância deste santuário, os incas converteram-no num centro administrativo cerimonial e construíram, entre outras edificações, o Templo do Sol e a Acllahuasi de las Mamaconas (lugar de preparação das mulheres escolhidas nas diversas regiões do antigo Peru e cujo destino seria servir o culto do sol ou o concubinato da nobreza).
O caminho traçado para os visitantes está a ser delimitado, para impedir que os nossos passos deteriorem ainda mais as apreciadas ruínas. Subo por uma rampa de uma pirâmide truncada com a intenção de tirar uma foto panorâmica e, já em cima, avisto ao longe um homenzinho que, fazendo-me gestos, se vai aproximando até dizer que não é permitido o acesso ao lugar onde estava; que se alguém me assaltava, a minha segurança já não era da sua responsabilidade. Desci sem entender muito bem a sua advertência...
Desde a parte superior do Templo do Sol, construído em forma de pirâmide, pode apreciar-se o imponente Oceano Pacífico, campos de cultivo e uma moderna praça de touros. O crescimento urbano das zonas próximas atenta contra a integridade deste tesouro arqueológico sul-americano. A antiga adoração a Pachacamac, deus protector contra os terramotos foi, segundo Maria Rostworowsky, progressivamente cristianizada até se converter na maior manifestação pública religiosa do mundo católico: a Procissão do Senhor dos Milagres, que se realiza anualmente, no mês de Outubro, em Lima.
À saída da zona arqueológica surpreendemos dormindo um curioso "perro sin pelo del Peru" (cão sem pelo do Peru), uma espécie nativa de cão à qual se atribuem poderes curativos (especialmente contra a artrite), devido ao calor do seu corpo sem pelos, bem como de... botija de água quente, óptima para suportar as frias noites andinas. Amanhã conheceremos o frio dos andes, já que iremos a Cuzco e visitaremos as famosas ruínas de Machu Pichu.
Saímos de Pachacamac conscientes de que muita coisa aconteceu no Peru antes dos incas e que há, ainda hoje, muita coisa por descobrir da história peruana, mal contada pelos espanhóis. O nosso amigo convence-nos a ir "almoçar" a uma praia ao sul de Lima. Após vinte minutos de viagem chegamos a Santa Maria. Está cheia de edifícios modernos e de casas construídas sobre rochas quase banhadas pelo mar. Entramos no restaurante de um clube e devoramos um ceviche, prato à base de pequenos troços de peixe, cebola, sal, picante e bastante sumo de limão. Pedimos um pisco sour, e aproveitando os últimos raios de sol terminamos a visita com um passeio pela orla do mar. Muitas gaivotas e outros pássaros marinhos, que geralmente vivem em zonas mais a sul, aproximam-se ousadamente de nós, esperando que lhes dêmos algo de comer. Estão mortos de fome. O fenómeno do El Niño fez fugir os peixes e, por isso, quando nos disseram que os lobos marinhos comiam pelicanos, não quisemos acreditar... mas depois de vermos zarcillos (larosterna inca), guanays (phalacrocorax bougainvillii) e até pinguins esfomeados, em zonas pouco habituais, qualquer coisa poderia acontecer. Mais tarde, ao vermos alguns pássaros moribundos acabou-se-nos a alegria. Já de regresso ao hotel, em cada semáforo vermelho aproximavam-se vendedores de todo o tipo de produtos e crianças que subiam ao pneus do carro para tentar limpar o pára-brisas - uma senhora mostrava-nos as suas bebidas, gasosas com dois litros, e desafiava o nosso calor intenso. à noite, depois de um duche refrescante, jantámos num restaurante de San Isidro, uma zona residencial da classe alta de Lima, onde nos serviram um tamal (espécie de pastel de milho com um pedaço de carne de porco dentro, tudo cozido dentro de folhas de milho), anticuchos (espetadas de coração de vaca), arroz de pato (à base de coentros) e, como sobremesa, uma mazamorra limeña (espécie de pudim feito à base de chicha morada tornado mais espesso pela junção de farinha de batata doce e de muitas frutas secas, e polvilhado com canela moída). Esquecemo-nos de que não devíamos ter comido demasiado - era necessário prepararmo-nos para a viagem do dia seguinte; esperavam-nos as moléstias do famoso soroche, efeitos da altitude típicos em Cuzco, e que um bom chá de coca ajuda a aliviar.
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