VERSIONES 20

Año del Tigre - Junio/Julio de 1998


Director, editor y operador: Diego Martínez Lora.
Versiones se elabora desde la ciudad de Vila Nova de Gaia, Portugal


Renato de Caldevilla:
O ciganito da fronteira


Marcelino viajou a surrada manga do casaco pelo nariz, limpando o ranho amarelado que lhe escorria por uma das narinas, franzindo a testa e abrindo os grandes olhos negros, trejeito habitual quando qualquer coisa não se lhe harmonizava bem dentro da cabeça, sempre confusa desde que se conhecia no meio-ambiente da sua família cigana.

Deitado no cimo do monte e encostado a uma frondosa árvore, sentia a erva queimada pelo tempo e passagem das cabras raspar-lhe o ventre, a cada movimento que fazia para ganhar um nova posição. Examinava atentamente o horizonte ao fundo do caminho de terra que bifurcava com a estrada principal, na tentativa de vislumbrar a carrinha que costumava transportar até à fronteira a carrega de passageiros que pretendiam atravessar clandestinamente a raia, para Espanha, nem todas as vezes com sucesso, sobretudo quando passadores sem escrúpulos deixavam toda aquela gente abandonada em qualquer campo, depois de terem sacado umas dezenas de contos aos seus atribulados e traídos clientes, a fugirem de um recrutamento para servirem de carne de canhão em África, ou à procura de melhores condições de vida e trabalho, na França ou Alemanha.

Nessa circunstância os emigrantes eram interceptados pela Guarda e recambiados como prisioneiros a entregar à secreta, porquanto na década de sessenta, a ditadura não tinha contemplações para aqueles que, embora sem condições de viverem uma vida decente no seu país, procuravam deixá-lo para tentarem uma nova sorte no estrangeiro, incentivados pela mesma experiência de outros amigos ou familiares que, como eles, tinham conseguido emigrar a salto, por terras de Bouro ou do nordeste, eludindo mil vigilâncias e arrostando com os imensos perigos de que aquela aventura era fértil !

O pequeno cigano já por algumas vezes se interpusera entre a Guarda e aqueles homens abandonados à sua sorte, servindo-lhes de guia por veredas inóspitas e traiçoeiras, ele que conhecia como as suas próprias mãos, todos os quelhos, atalhos e carreiros, rotas de contrabandistas no eterno jogo-de-escondidas com os soldados da guarda e dos seus iguais do lado de Espanha. Os aflitos e espoliados emigrantes acabavam por lhe ficar muito agradecidos pela sua intervenção, acabando por lhe pagar a ajuda complementar para atravessarem a raia, dinheiro que Marcelino guardava em secreto esconderijo.

A sorte não lhe sorria naquele dia. Já com a noite a aproximar-se fria, nem vivalma se avistava ao fundo do caminho de saibro com ligação à estrada.

Arranhado por tojos e silvas e a tremer devido à baixa temperatura que se fazia sentir, Marcelino levantou-se e iniciou o regresso à tenda, distante ainda daquele local, uma puxada meia légua, com a convicção de que existiam dias para o caçador, outros para a caça. Num saltitar meio corrido, rapidamente alcançou o acampamento, sendo rodeado à chegada por uma chusma de crianças mais novas que o puxavam, querendo saber das suas aventuras e se receberiam dele uns rebuçados, certos, quando conseguia uma das bem sucedidas incursões, ajudando uma leva de emigrantes abandonados e famintos a transpor a fronteira a salvo. Sabia-lhe bem tornar-se solidário com os eventuais homens que ajudava.

Abandonando daquela vez os desiludidos companheiros dirigiu-se para junto da fogueira crepitante, no centro do acampamento, onde algumas mulheres aqueciam a sopa em grandes potes de ferro, negros. E queimados por muitas horas ali, ao lado do fogo, com as suas três pernas cravadas num monte de cinzas e no meio de grandes tocos de madeira semi-ardidos. A mãe olhou-o com a aparente neutralidade que existe em cada cigana e logo lhe deixou uma malga a fumegar entre as mãos, percorridas agora por um generoso calor que começou a tomar-lhe o corpo todo. Cheio de sono e feliz por se encontrar junto dos seus sem ter de percorrer extensas distâncias para conseguir trabalho e prover o sustento de afastadas famílias, Marcelino enrolou-se num cobertor e adormeceu.

Quando se levantou no dia seguinte, começou por acreditar que seria agora. A sorte ia mudar e antevia se na escolta de um numeroso grupo de emigrantes clandestinos. Depois de comer um pedaço de pão ressequido dirigiu-se de novo para o local da véspera, após ter passado por uma enorme fraga, debaixo da qual, encoberto por uma pedra mais pequena, foi sacar do seu improvisado cofre, unas moedas com que compraria na aldeia mais próxima, dois pães e um coirato de porco, para se alimentar durante o dia e parte da noite. Estava decidido a prolongar a vigília e ajudar a caravana com que sonhara a atravessar a fronteira a salto, pelos caminhos por ele indicados.

Excitado por ter dormido mal na noite anterior quando congeminara o procedimento a tomar no dia seguinte, acabou por fechar os olhos no seu posto de observação, sob a sombra daquela árvore que o protegia discretamente da leve brisa que soprava.

Acordou sobressaltado já no principio da tarde, observando o caminho e a estrada ao longe.

Os seus sentidos, habituados a denunciar o menor ruído, acabavam de lhe transmitir o barulho de um motor distante onde lobrigou o cinzento da carrinha transportadora dos emigrantes, através dos seus olhos ainda ensonados. O veículo não demorou a aproximar-se do local em que se encontrava e a parar a cerca de uns cem metros. Da cabine sairão dois homens mal vestidos e de fraco aspecto, tendo identificado um deles como o vigarista, habituado a abandonar os "clientes" antes de terminar o trabalho para que fora pago. Ambos se dirigiram às traseiras da carrinha, abriram a porta e falaram durante algum tempo com os homens que transportavam, provavelmente avisando-os da necessidade de estarem ali até anoitecer sem sairem para o exterior, amedrontando-os com a eventualidade de se poderem denunciar e motivarem a aproximação da guarda, tudo no intuito de ganharem o tempo suficiente para atingirem uma tranquila distância de afastamento quando os deixassem. O diálogo foi rápido e os dois homens afastaram-se, seguindo pelo caminho de saibro até à estrada principal. Ali ficaram junto ao campo inculto ladeado por um muro de pedras soltas sobrepostas umas às outras, com entrada por um espaço onde tinham levantado um toro de madeira velho e desbotado de um ocre baço.

Marcelino esperou um bom bocado deixando que os passadores desaparecessem, prevendo a possibilidade de a guarda poder surgir a qualquer instante e deitar mão aos que se encontravam no bojo do veículo. Logo que viu não existir esse perigo bateu à porta que não abriu de imediato para evitar ser eventualmente agredido por qualquer um dos aterrorizados emigrantes. Explicou-lhes depois que os passadores jamais voltariam a buscá-los como já o haviam feito anteriormente sendo ele a única esperança de transporem a fronteira, pelo conhecimento que o contrabando lhe grangeara no percorrer do terreno e os melhores trajectos a evitarem o encontro com a guarda, tanto do lado português, como do lado espanhol. Disse-lhes também da sua .relação e amizade com os profissionais espanhóis, na ajuda de que necessitavam para atravessarem o país vizinho. Sugeriu-lhes que deixassem de imediato a carrinha onde se encontravam e o seguissem até um lugar mais seguro, esperando pela noite para iniciarem a viagem para o outro lado. Entre plagas e ameaças contra aqueles que os tinham logrado, os cinco homens acabaram por concordar e agradecer a ajuda que lhes surgia, como por milagre, pagando umas centenas de escudos ao ciganito para o compensarem do seu trabalho.

Já noite, ao iniciarem a marcha, Marcelino recomendou-lhes o máximo silêncio e que não fumassem, perguntando-lhes previamente se se encontravam abastecidos de alimento bastante para enfrentarem largas horas de caminho. Os homens disseram-lhe estar providos da comida necessária, prometendo seguirem à risca todas as suas instruções.

O percurso era feito por autênticas picadas através do mato da montanha, sendo preciso, por vezes, desbastar tojos e silvas e aproveitar as sendas de javalis, os braços, peito e cara arranhados, os pés mordidos por seixos e fragas agudas e resvalantes.

Unidos uns aos outros para se não perderem no meio da escuridão, os cinco homens e o seu guia seguiam aos zig-zagues, ora subindo, ora descendo em furtivo caminhar, apenas iluminado pelas longínquas estrelas do céu.

Numa pequena paragem que fizeram, olharam o fundo do vale onde cintilavam as luzes de um casario, tendo-lhes dito Marcelino que aquela aldeia ainda ficava em Portugal, distando da fronteira pouco mais do que um quilómetro, Do outro lado e a cerca de mais de três léguas, ficaria o ponto de encontro e de salvação para todos eles, local que contava atingir já de manhã. Aproveitaram a paragem para comer e descansar o corpo, sempre em silêncio de patrulha militar em território inimigo.

Ofuscante foco de luz interrompeu-lhes o descanso. Soaram ameaçadoras vozes intimando-os a ficarem onde estavam sob pena de virem a ser alvejados. Era um contingente da guarda fiscal, a pouca distância do grupo.

Á detonação proveniente da arma de um dos emigrantes, seguiu-se o estilhaçar da lanterna e um tropel de passadas em fuga, ladeira abaixo, sem cuidar de silvas ou tojos, num torvelinho desaustinado, envolvente, precipitando os acontecimentos e uma saraivada de balas, ao acaso, sobre os vultos em corrida. Estava iniciada a caça desorientada do grupo que não parava na desfilada. Marcelino ia à frente e já ouvira o silvar de duas balas bem perto da cabeça. Não sabia até que ponto os - companheiros estavam ilesos ou, se algum deles já caíra, atingido pelo fogo dos guardas. No fundo da vertente que desciam, parou num pequeno regato e, ao tentar lobrigar os homens que o seguiam, sentiu o corpo de um deles esbarrar com o seu. Os olhos arregalados, fora das órbitas, o suor escaldante a descer-lhe pela cara, o emigrante passou por ele à desfilada, 1ogo seguido por mais três. Faltava um deles provavelmente ferido ou morto no meio da montanha, a menos que se tivesse perdido por entre o mato. Marcelino continuou a fuga, atrás dos seus quatro companheiros.

Agora o ciganito não tinha ilusões. Do outro lado a guardia civil já estaria também avisada daquela tentativa de passagem clandestina e era necessário adverti os restantes homens do grupo para seguirem por outro atalho mais longo, mas menos sujeito ao encontro com os soldados espanhóis.

A subida era bastante mais penosa naquela correria, impedindo a ofegante garganta de qualquer um dos fugitivos de soltar um grito ou pedido de ajuda, servindo apenas de passagem ao sofrego ar, inalado aos arrancos dos músculos em esforço. Para o ciganito a sobrevivência era tão importante como o objetivo de levar a bom termo a condução dos seus amigos, naquela altura empenhados em atingir o novo país onde iriam trabalhar, para mais tarde ali juntarem a família e conviverem com uma maior dignidade e riqueza. Para os guardas perseguidores, cumprirem ordens de intercepção de elementos contrários aos desígnios do governo, de manter uma guerra ultramarina para manutenção de territórios ou não de obra barata, através de trabalhadores quase sem protecção sindical a conferir-lhes horários e condições laborais mal remuneradas e abusivas.

A liberdade daqueles homens era importante para Marcelino, habituado desde o berço a gozá-la quase plenamente, não fosse ela um dos atributos da vida cigana. Toda a acção que estava a desenvolver, obedecia a essa alegria de compartilhar com os fugitivos, tal sentimento de felicidade que lhe percorria cada célula do corpo.

Estava já junto dos amigos, um pouco mais, apenas ligeiros metros quando se sentiu projectado para a frente, estatelando-se no pedregoso chão de borco, os braços abertos e o gosto na boca de um líquido adocicado e quente. Fora atingido !

Os olhos enevoados o pensamento do ciganito dirigia-se para o seu pequeno esconderijo de pedra onde restava algum dinheiro que seria bastante útil a sua mãe e irmãos mas que, como ele, para sempre ficaria enterrado no fundo daquela terra raiana, sem esperança de uma sobrevivência renovada na ajuda de todos aqueles que lutariam por uma vida.V


(*)Renato de Caldevilla, poeta e jornalista português. Mora no Porto.




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