VERSIONES 22

Año del Tigre - Octubre/Noviembre de 1998


Director, editor y operador: Diego Martínez Lora.
Versiones se elabora desde la ciudad de Vila Nova de Gaia, Portugal


Paulo VIcente Salvador(*):
Para além das telenovelas



Quando se chega a um país novo, vai-se cheio de estereótipos. Por mais que se vá com o espírito aberto... E então na cultura portuguesa, o Brasil, a um nível talvez só comparável aos EUA, é um dos países mais estereotipados. Sem dúvida influências do audiovisual. É muito difícil a um português da minha geração não dever à telenovela a maior parte da sua ideia do Brasil.

NORDESTE

Recife, capital do Pernambuco, a maior cidade do Nordeste. Fundada pelos holandeses no século XVII ao longo de canais construídos no delta de um rio pantanoso, uma manifestação dessa predilecta forma de urbanização dos holandeses. Com a reconquista portuguesa, a cidade desenvolveu-se em direcção às zonas que os lusos preferem : as praias. E é na praia da Boa Viagem que termina, por hoje, a minha boa viagem desde a Portela. O ar húmido e de cheiros permanentes, agridoces dos trópicos instala-se instantaneamente no meu novo quotidiano. Gestos lentos e sorrisos fáceis e generosos desenham-se em corpos com todos os tons de castanho. E ritmos lentos, em equilíbrio com as raras exigências tropicais.

Ficarei apenas uma noite no Recife mas acertei em cheio: está-se em plena Recifolia, uma festa da cidade cuja dimensão os locais comparam ao Carnaval. Mas entretanto uma nova aprendizagem: ascensores de lógica incompreenssível, acabamentos baratos, manutenções por fazer... Toda a cidade parece estar na rua. Na marginal, com a praia pela direita (onde ondas tímidas esbarram contra a contínua barreira coralífera e apenas conseguem acariciar a areia branca), e os arranha-céus de apartamentos turísticos pela esquerda (onde famílias se juntam nas espaçosas varandas para apreciar a festa enquanto tomam sossegadamente o seu "chopp"), grupos musicais tocam em camiões alegóricos seguidos e precedidos por multidões de adolescentes usando todos "T-shirts" iguais e avançando a uma velocidade cansativamente lenta. Tomo a minha primeira água de coco numa barraca e delicio-me a assistir a exibições de "capoeira" que rapazes e raparigas fazem num pedaço de areia na praia. Essa mais marçial das dancas traz consigo indícios de uma outra era, a da casa grande e sanzala, a do amo e seus escravos, que continua a ser hoje, mais de 100 anos desde o fim da escravatura, associada ao Nordeste. De novo os estereótipos afloram ˆ mente: de toda esta gente, quem será cangaceiro e quem será "coronéu"? Zeca Diabo ou Odorico Paraguaçu ? Infelizmente a visita é demasiada curta para catalisar o banho da realidade e esses estereótipos sobreviverão na minha percepção. E para desfrutar a sagradíssima trindade do sol, areia e mar.

O Recifolia estender-se-á pela noite dentro e terei que lutar contra o ruído festivo para conseguir dormir umas magras horas.

PÁTRIA GAÚCHA

Rio Grande do Sul. Uma outra variação de Brasil, e quase desconhecido na velha Europa onde se reconhecem os termos "gaúcho" e "pampas" mas se associa ˆ Argentina ou ao Uruguai. Os Rio Grandenses do Sul consideram-se aliás, e com orgulho, os menos brasileiros dos brasileiros. Foram os únicos desses brasileiros que até hoje tentaram deixar a grande nacao tropical, e só ao fim de 10 anos de luta se renderam ˆ forca do então imperador do Brasil, em 1835. Entretanto o Uruguai aproveitou essas lutas intestinas para se separar do Brasil e proclamar a sua independência que mantêm até hoje. O Uruguai e o Rio Grande do Sul são uma espécie de irmãos gémeos separados à nascença pelas circunstâncias da história.

Comparando com as outras regiões do Brasil, o Rio Grande do Sul é frio, montanhoso, rico e ... alemão. Em todos os indicadores de desenvolvimento social este mais meridional dos Estados está em primeiro.

A Lagoa dos Patos, pantanosa e pouco profunda, a maior laguna da América do Sul, separa o coração do Estado do mar em quase toda a sua extensão. O Rio Grande do Sul tem sido obrigado a viver virado para a terra. Por isso é terra dos gaúchos, de gado, de bife -e de rodízio (tal como o Texas foi terra de "cow-boys" e gado e bife- e "barbecue"- antes de ser terra do petróleo, e onde também os pântanos separam o mar do coração do Estado).

O texano considera-se também o menos americano dos americanos. Texas foi o único dos 48 Estados contíguos que foi independente (entre 1836 e 1847) e também foi sobretudo povoado por alemães (embora aposte que por sobretudo alemães do norte e protestantes enquanto o Rio Grande do Sul por sobretudo bávaros e hessianos, do sul e católicos). E no topo do prestígio social, nestes dois semelhantes Estados, a mesma figura do rancheiro. Vinda do subconsciente, sem dúvida, esta procura de semelhanças entre o Rio Grande do Sul e o Texas. Nao se consegue fugir ao instinto de estruturar, de classificar, de integrar percepções novas num todo já conhecido, que traz sempre a tão desejada segurança... É que assusta estar rodeado de demasiadas coisas novas.

É portanto irónico, mas justo, que o meu destino no Rio Grande do Sul seja Rio Grande, uma cidade que ja viveu melhores dias, algo violenta e degradada, situada na boca da Lagoa dos Patos, virada para o mar e não para a terra, lugar de peixe e não de carne, e originalmente povoada por pescadores açoreanos. Junto ao molhe sul de 3 quilómetros que protege a entrada na barra, inicia-se a praia do Cassino, que me disseram ser o mais extenso areal ininterrompido do mundo, 220 quilómetros até a fronteira uruguaia, uma distância de dimensão digna do Texas.

CIDADE MARAVILHOSA

Muitas garotas em Ipanema, na praia ou na esplanada, de minisaia ou "jeans" e "tops" justos e outras vestimentas leves sentindo alegremente a passagem do tempo sob a ternura quente do Sol. Enquanto isso eles, os cariocas, jogam interminavelmente futebol ou voleibol, no areal extenso que separa a área de banhos da larga avenida marginal. Inesperada, esta obsessão pelo desporto na praia. Aliás apercebo-me que os cariocas fazem tudo na praia excepto deitaram-se sobre uma toalha na areia e portarem-se como lagartos. Tambem nao são muito de mergulharem na água, surpreedentemente fria, do Atlântico tropical. Ou seja, a cultura de praia do carioca é muito diferente da dos portugueses, que ora preferem a prostração ora o conforto fresco da água do mar. As praias são fabulosas e situam-se mesmo no interior da cidade. As da baía de Guanabara - Urca, Botafogo, Flamengo são as mais conhecidas - há muito que estão impedidas a banhistas uma vez que as águas são demasiado paradas para poderem reciclar a poluição que recebem constantemente da cidade e do enorme porto. Mas foram nelas que a famosa relação do carioca com a praia se desenvolveu. As praias do Atlântico, as que ficam para sul do Pão de Açucar - Copacabana, Ipanema, Leblon, São Conrado, Barra da Tijuca, etc. - estão ainda ambientalmente perfeitas.

O centro histórico, reciclado como centro financeiro e de negócios, faz-se ver ˆ distância pelos seus arranha-céus sob os quais uma actividade frenética se desenvolve. O Rio de Janeiro é também uma cidade viva que procura ajudar o Brasil na construção de um futuro glorioso.

Há tambem um lago, em forma de borboleta, a Lagoa Rodrigo de Freitas, que permite uma certa tranquilidade mesmo no centro da cidade. Os ricos moram nas suas margens, perto do "jockey club", do heliporto e do Jardim Botânico (uma verdadeira preciosidade) onde podem passar os seus muitos momentos de ociosidade. E há os famosos montes a pique, cobertos de verdes férteis, surgindo em todos os campos de visão, muitas vezes feridos pelos castelos de cartas das favelas, que, apesar da sua pobreza, nao dispensam os discos receptores de TV satélite em cada barraca. Num deles, o Corcovado, uma estátua de Cristo de mãos abertas e levantadas tenta abraçar toda a cidade. O Corcovado e o Pão de Açucar são sérios rivais para o título de local mais visitado na cidade pelos turistas. A ambos se deve ir uma vez e não mais uma vez que perderam a alma por troca com o dolar fácil.

E há a Floresta da Tijuca, a maior floresta urbana do mundo, a trazer a antítese da cidade ˆ cidade. Aparentemente foi cultivada por uma só familia de escravos, ao longo de muitos anos, ao longo das inúmeras encostas, por milhares de veredas, com incontáveis variedades de plantas. Gostaria de saber mais sobre esta heróica familia mas nunca abunda, em lado nenhum do mundo, a informação pessoalizada sobre escravos. Embora escrava esta família deu mais ao mundo que a maior parte das pessoas livres. Não há tempo para mais do que impressões dos tons de verde e dos odores frescos. Que pena. Fica para a próxima vez.

Que falta então ao Rio de Janeiro ? Nada. Eis uma possibilidade, muito forte, para o paraíso. Mesmo os seus problemas, que estão facilmente à vista de todos, são como os temperos na comida, isto é, melhoram a profunda experiência que é penetrar nos segredos desta grande cidade.

PARTINDO

O Brasil é um país imenso, que procura sofregamente o futuro. A memória do passado é aqui irrelevante, ainda mais que nos EUA. País imenso nos objectivos, mas também nos problemas. Cheguei esperando encontrar esperança na voz do povo mas não a encontrei. "Quem quer ter um futuro vem para o Brasil", dizia eu (parece-me natural esta proposição, sobretudo da parte de um português, visto que o pequeno rectângulo luso parece estar já sobreexplorado e sobrepovoado). "O meu avô quando veio para cá, há setenta anos, já dizia isso", responde sempre uma voz irada, "e olha como ainda estamos hoje". Mas a verdade é que hoje o Brasil é um gigante e há setenta anos era um anão. Com os seus 600 biliões de dólares de PIB, é a oitava economia do mundo. A imensidão do que o Brasil já conseguiu só parece pouca perante a imensidão do que ainda falta conseguir.

Mas o futuro ainda não foi definitivamente conquistado. O Brasil vive actualmente na corda bamba. V


(*)Paulo Vicente Salvador Engenheiro químico português. Mora em Inglaterra.




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