Ana Cecília Ferri Soares(*):
Panarício
A Wilma era de um moreno claro, quase da cor da casca do jatobá. Sorriso mais branco não podia ter. Olhos japoneses, só que bem grandes, acesos... de uma lerdeza muito esperta. Amiga e companheira nos dias de solidão, na vida de festa, no sul da Bahia. Falava pouco, mas quando falava...
Um dia, Dona Patroa acordou como dedo indicador inchado e muito doído. Latejava...
A borda da unha lustrosa e escura. E latejava... Foi até a cozinha, onde ela preparava o café e perguntou:
-Ó Wilma! O que será isso aqui no meu dedo?
Ela se aproximou, tomou o dedo em suas mãos, observou com aqueles sábios olhos, encostou a bochecha, depois os lábios e disse solenemente:
-Tá quente.... É panariço!
-Panarício, Wilma! Como é que se cura isto?
Ela era toda cheia de remédios de plantas. Aprendeu muitas coisas com sua avó índia, mas desta vez, estranhamente, não receitou nada. Sorriu baixando a cabeça, mas não de humildade, nem de desconhecimento. Sorriu um sorriso maroto, bem safado e depois disse:
-Isso aí, no seu caso, é coisa prá médico. Num dá prá curá isso, no modo da roça, em gente que nem a senhora...
Doía tanto que Dona Patroa resolveu mismo ir ao médico.
Dr. Guides, seu bom amigo, lhe deu receitas de antibiótico, anti-inflamatório e analgésico.
Passou na farmácia do Tonho, para pegar os remédios. E começou a tomar.
Teve mais uma noite daquelas: Latejava... inchava mais.
No dia seguinte quando entrou na cozinha, lá estava a Wilma.
Não lhe disse nem bom dia. Foi logo exclamando:
-Tá enrroxando... Hum... Seu dedo tá enrroxando... Isso é um perigo!
-Pois é, e esta doendo muito!, respondeu Dona Patroa sofrendo.
-Já fui ao médico, já estou tomando os remédios e continua assim...
Ela sorriu de novo, aquele sorriso estranho do outro dia e comentou:
-É, mas o Tonho da farmácia é da terra... pordia ensinar outra coisa!
-Que outra coisa, Wilma?
-Num sei não, senhora... Mas posso chamar o pai do Manel prá benzê isso aí!
-Então chama, Wilma, pois está doendo demais...
Ela voltou com o pai do Manel, a mãe do Manel, o Manel e os irmãos do Manel, que não eram poucos. O homem, dizia saber tudo de benzimento de panarício. Foi logo pedindo a farinha de mandioca, o cravo e o óleo. Colocou tudo num pote de barro e fez, no fogo, uma goma com aquilo!
E rezava e corria o corpo de Dona Patroa com galhos de arruda. As folhas ficaram amassadas e murchas. E ele dizia:
-É... tava carregada...
E todos olhavam para ela com muita compaixão.
E rezou mais um pouco e esquentou muito mais aquela goma.
Quando menos esperava, ele enfiou-lhe o dedo, com panarício e tudo no meio da goma!
Santo Cristo! Que dor medonha! Mas Dona Patroa se conteve... Afinal o homem estava rezando!
Para seu espanto, ele disse que a cerimônia tinha que ser repetida por mais duas vezes...
Dona Patroa aproveitou a deixa para perguntar:
-Não há um jeito mais rápido para se curar isso?
A Wilma olhou para a mãe do Manel, que também tinha sangue de índio e as duas sorriram aquele sorriso estranho, baixaram levemente a cabeça... sem responder.
-Fica com o dedo aí dentro até esfriá-, disse o pai do Manel, -Amanhã eu volto prá benzê de novo.
Ah! Meu Deus, do jeito que aquilo era quente, não ia esfriar nunca!!!!
Dona Patroa agradeceu e foi para dentro, com o dedo enterrado na papa de farinha.
No dia seguinte, de novo na cozinha, o dedo latejava que ia explodir. E a Wilma de novo:
-Tá enrroxando! Enrroxou mais...
-É vem o pai do Manel...
E reza e bota o mingau de farinha e bate com galho de arruda... E comenta:
-Num qué saí!
No terceiro dia. Na cozinha. É ela:
-Tá enrroxando... Sei não... tá feio...
E pai do Manel e papa de farinha pelando e reza e arruda...
Já estava desanimada, quando a Wilma veio chamar para irem à feira, comprar tempero!
-Tempero, Wilma? Mas é assim tão urgente? Você sempre vai sozinha...
-É. Mas hoje carece da senhora ir comigo.
Ela estava estranha... Com ar de conspiração... Sorrindo daquele jeito de novo...
Insistiu tanto que Dona Patroa resolveu ir com ela.
Chegando lá, ela foi direto para a barraca de uma baiana muito velha já muito encolhida pelo tempo e pelo sofrimento, mas com aqueles olhos espertos, vivos que só a sabedoria proporciona.
A baiana velha já foi perguntando:
-Essa é ue é a muié do panariço?
-É.
-Tô vendo. Tá roxo. Se num tratá vai caí... o dedo! Tu num sabe tratá isso não, moça?
Dona Patroa começou a contar dos remédios, do médico, da reza do pai do Manel... Mas ela logo interrompeu nauqele tom estridente, que toda baiana tem, depois de ficar surda, de tanto ouvir rádio:
-Bom prá isso é cú de galo!
-Como minha senhora?
-É bom é cú de galo!
-Mas...
-Tu tem que comprá um galo escuro de quintal, não serve de granja. Tu mete o dedo doente no galo e espera, até o galo quietá! Tu vai vê como sara... na mesma da hora! Esses médico num sabe nada e o Tonho da farmácia...é porque não vende isso na farmácia dele!
Não tinha mais para onde o dedo inchar... Dona Patroa já ouvia o barulho do latejar, parecia um bombo em dia de festa... O Roxo já era quase preto. Nâo sabia mais o que fazer... Olhou para a Wilma e ela deu aquele sorriso, mas desta vez não baixou a cabeça.
O sorriso agora parecia mais de desculpa, de "eu tava com vergonha de ensinar isso..."
Ela, adivinhando, como sempre, os pensamentos de Dona Patroa, sabendo que ela não sabia o que falar para aquela sábia baiana, foi logo dizendo:
-Nóis vai pegá o galo, na mão do seu Verdinho. Ele tem.
E foi puxando a Dona Patroa para o automóvel, sem comprar tempero nemhum. Ela engendrara por dois dias a compra do tempero... Preocupou-se achando que a reza não dera resultado... é certo que combinara com a baiana, aquele encontro na feira... Sabe-se lá em quantas coisas pensou ...Estava com medo. O caso era sério! Queria cuidar da grande amiga! E por causa de tudo isso, Dona Patroa ainda ia ter que passar por mais esse vexame!
Foram para a casa do Seu Verdinho, sem dizer uma palavra. Ela só ia indicando o caminho com a mão. Não olhava, mal respirava... Chegando lá, ela saltou correndo do carro e gritou:
-Péra aí que eu já volto!
Ordenando que Dona Patroa não descesse, enfiou-se pelo fundo da casa... Ela não queria deixar que Dona Patroa passasse por mais um constragimento, agora diante do Seu Verdinho...
Pouco tempo depois, ela voltou desapontada... dizendo que não tinha galo escuro, porque era Sábado e todos haviam sido vendidos na Sexta-feira, para os trabalhos do terreiro, mas que o Seu Verdinho ia buscar uns na roça e mandava avisar quando chegassem.
Dona Patroa respirou aliviada!
Por sorte, por remédio, ou pelo calor da goma de mandioca com cravo (que é um excelente anti-inflamatório), naquela noite, o panarício veio a furo!
No dia seguinte, na cozinha, ao ver o dedo, a Wilma gritou feliz:
-Tá sarado! A Senhora tá livre do panariço!...
E susurrou baixinho:
-...e do galo também...