Quando, hoje, buscamos
referências sobre o início do Cristianismo, muito freqüentemente nos debruçamos
nos documentos canônicos que constituem o chamado Novo Testamento, ou seja, os
Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, o texto intitulado Atos dos
Apóstulos, as Epístolas de Paulo, de Pedro, de João e de Tiago, e o Apocalipse
de João. Subsidiariamente, podemos consultar os escritos do judeu romanizado
Flávio Josefo, em especial sua obra Guerras Judáicas, e alguns parcos comentários sobre o nascente movimento dos
cristãos feitos por escritores romanos muito depois da morte de Cristo. Mas é pouco lembrado, porém, que os
textos oficiais do Novo Testamento foram estabelecidos como tais em uma época
bastante posterior aos acontecimentos que envolveram a vida de Jesus e o trabalho
desempenhado por seus discípulos diretos, pois o cânone oficial só veio a ser
estabelecido em 397 d.C. durante o chamado Concílio de Cartago, onde as
diretrizes do que seria a Teologia Romana - paradoxalmente extremamente ligada
aos processos políticos e administrativos do mesmo Império que havia perseguido
tão duramente os cristãos - foram cristalizadas, num desdobramento político que
veio se fazendo desde que Constantino oficializou o cristianismo como a Religião
do Império - sem que tivesse, contudo, postergado diretamente a religião
pagão anterior.
Por esta época estavam sendo erguidos os estatutos da
instituição chamada Igreja - na verdade, mais especificamente os da Igreja
Romana, incentivada pelo imperador Constantino, e que, por isso, deveria ser a
hegemônica por estar ligada diretamente à sede do Império, pois várias eram as tradições cristãs vigentes, como as da Igreja
Grega, a Igreja de Alexandria, a Igreja de Antioquia, a Igreja de Éfeso, a
Igreja Copta, a Igreja Gnóstica e outras tradições, nem uma delas mais poderosa
que as demais, com excessão, talvez, da Igreja de Alexandria, cujas
profundidades ou idéias eram divergentes das de Roma e que seriam vistas e
condenadas como ameaças ao poder do núcleo romano, sendo, pois, consideradas
heresias. Parte destas igrejas orientais permaneceram críticas da teologia
construída por Roma, com especial ênfase na primazia quase supra-humana do
bispo de Roma, o Papa, o que levou, no século XI, ao cisma definitivo entre a
Igreja Romana e as do Oriente, hoje conhecidas como Igrejas Católicas
Ortodoxas.
Os textos que se tornaram a base da Bíblia Cristã oficial
foram escolhidos, como hoje sabemos, entre vários outros que circulavam sobre a vida de Cristo à
época - alguns extremamente fantasiosos, mas outros com aprofundadas informações
sobre Jesus e o pensamento dos cristãos da época - e que, a partir de então, em
especial com São Jerônimo, foram editados e copiados em um processo que,
atualmente sabe-se, não escapou de ser cheio de manipulações e adaptações aos
interesses da nascente instituição religiosa, em especial na construção e
edição de um
texto dirigido a leitores romanos, orgulhosos de sua nacionalidade e da história
de seu Império, o que levou a expedientes como o recheio dos textos com enxertos
de frases, supressões ou adendos interpretativos que procuravam dar uma visão de
mundo que fosse concorde com os interesses da Igreja que se estabelecia como
instituição. Um dos exemplos deste tipo de manipulação é o esforço para se
minimizar a participação dos romanos na execução de Jesus, jogando a
responsabilidade quase que completamente em cima dos judeus (a esta altura já
dispersos pelo Império depois da destruição de Jerusalém por Tito no ano 70),
esquecendo-se que o Galileu foi vítima de dois processos: um
político-religioso, da parte dos judeus, e outro político, por parte dos
romanos.
Esta temática será desenvolvida mais adiante.
Os atuais estudiosos das Orígens do Cristianismo, porém,
às custas de um esforço hercúleo ainda pouco reconhecido, relativamente livres,
em sua maior parte, da pressão política e teológica das Igrejas estabelecidas
(sejam Católicas - do Ocidente e/ou do Oriente - ou Protestantes), conseguiram,
a partir dos dados de novas descobertas arqueológicas, como os achados vários
documentos arqueológicos da época de Cristo (Manuscritos do Mar Morto;
inscrições) ou próxima a ela (Evangelho de Tomé), estudos interpretativos e análise de textos,
delinear um quadro mais aceitável da história da formação do Cristianismo do que
a que se tinha até o início do século, e que era ainda a dada pela teologia
oficial.
Após a morte de Jesus
que, ao que tudo indica as mais recentes pesquisas (c.f. Bibliografia ao final
do texto), teria ocorrido no ano 30 d. C. ( tendo Jesus nascido
entre os anos - 8 a - 4 a. C. estando, portanto, nosso calendário errado em ao
menos quatro anos ), o incipiente movimento por Ele liderado só não se dissolveu
diante da crua realidade da execução do mestre e da forte oposição teológica,
policial e política do Sinédrio -- preocupado em manter a ordem pública e
evitar a ira de Roma, conseguindo, através de manobras, envolver
o movimento galileu num falso halo de conspiração política que despertou a
atenção da Administração Romana, o que levou Jesus
à morte sob o peso de duas acusações: uma religiosa (blasfêmia) e outra política
(Jesus como pretendente ao trono de Davi), sendo a primeira, crime capital pelas
leis judáicas; a segunda, crime capital pelas leis de Roma -- por conta
das chamadas aparições póstumas do próprio Cristo diante
de seus abatidos discípulos, o que lhes estimularam e fortaleceram em seus
ideais e lhes deram confiança e coragem para levar adiante o movimento de
renovação espiritual, com conseqüências sociais notáveis, iniciado por Jesus. Convém
notar, entretanto, que se tais aparições foram o impulso necessário ao maior
sucesso religioso de todos os tempos, também causou, logo no princípio, uma
mudança de ênfase, nos discípulos mais exaltados, do sentido da mensagem
universalista do Nazareno, seu legado mais importante, para o da figura
extraordinária do próprio Jesus, que passou a ser visto como muito mais que um
iluminado profeta e homem que atingiu o pico mais alto de desenvolvimento humano
para o de um Ser não humano, e com Paulo levou paulatinamente à idéia de que
Cristo era o próprio Deus.
Não devemos nos espantar com o fato de que o movimento
cristão primitivo se aglutinou ante os fenômenos que hoje chamamos de psíquicos,
mediúnicos ou paranormais como, por exemplo, os das aparições póstumas de Jesus.
Geddes MacGregor, em seu estudo dos vários movimentos cristãos paralelos que
floresceram durante os primeiros quatro séculos de nossa era, é mesmo taxativo a
este respeito ao dizer que "Toda a literatura do Novo Testamento, para não
dizer a vasta literatura não canônica do cristianismo primitivo, foi escrita por
e para pessoas que haviam desenvolvido considerável sensibilidade aos fenômenos
psíquicos" (Cit. in Miranda, 1992, p. 29), e sobre os quais os vários
relatos contidos nos Atos dos Apóstolos, em especial a Conversão de Paulo, por
exemplo, são ricos exemplos. Mesmo que não se aceite o fenômeno, convém porém
lembrar que foi a convicção dos discípulos nestas aparições que se tornaria o
"Big Bang" do maior sucesso religioso de que se tem notícia na História (
sucesso no sentido de se expandir uma doutrina que teve orígem em Jesus, mas que
não foi tão bem sucedida da conservação e transmissão da real mensagem original
do Cristo, como nos mostram vários estudiosos ).
Apesar das novas idéias e revigoração da ética humana
trazidas por Jesus, o grupo galileu ainda era - e assim se via até a diáspora
judáica do ano 70 - um movimento de
renovação dentro do judaísmo, baseado na herança teológica deste povo, e que
visava passar adiante uma mensagem mais espiritualizada e humana da relação
entre Deus e os homens e, através desta, uma nova forma de relação ética entre
estes, baseada na fraternidade que resulta do fato de todos sermos filhos do
mesmo Deus (C.f. a home page Jesus e Sua Mensagem
e os livros abaixo relacionados).
Na verdade, apesar
da ignomínia e covardia que o Sinédrio havia cometido para com Jesus, ninguém no grupo
dos nazarenos pensou em romper com
o judaísmo, até mesmo porque, apesar das manipulações de Anás e Caifás, haviam
simpatizantes do movimento de Jesus dentro mesmo do Templo e, como judeus
que eram, com toda a tradição e história típicas da raça, não havia sequer a
possibilidade de pensarem em ser outra coisa que não judeus que acreditavam ser
mensageiros de uma atualização da Lei mosáica contida na Torá. Mas com a
evolução dos acontecimentos, o que de início começara como um movimento de
questionamento e de novas idéias sobre o judaísmo logo iria se transformar em
algo mais: teria, aos olhos dos demais judeus, conotações de uma seita - ainda
dentro do judaísmo - para, por fim, se delinear como um movimento plenamente
independente, em especial a partir da dispersão dos judeus pelo Império - como
conseqüências de duas sublevações nacionalistas contra Roma - e do ministério de
Paulo pelos países adjacentes à Palestina até chegar em Roma.
De início ainda titubente, diante das forças do Sinédrio
e de Roma, mas com a segurança que só a convicção mais absoluta logra obter, os
discípulos de Jesus, após as suas últimas aparições e depois do Pentecostes,
começaram a sair e se fazer cada vez mais presentes na comunidade judáica, de
início em Jerusalém e, logo após, por toda a Palestina. O sucesso da mensagem do
Cristo - ou ao menos da parte de sua mensagem que chegou até nós, ainda assim
plena de acréscimos, cortes e manipulações, como o demonstram os estudos de
experts vários em cristologia (veja a Bilbliografia sugerida abaixo) - se
deve em grande medida à força da convicção destes homens e mulheres heróicos nas primeiras décadas da segunda metade do século I de
nossa era, muito embora já a ênfase começasse a ser dada, devido ao impacto ocorrido com as aparições de Cristo, mais à figura do histórica de Jesus que ia
se transformando em mito - pois para eles, Jesus era o "super-homem" que havia
Ressuscitado (ou melhor, se dado a ver algumas vezes "estando as portas
trancadas", como disse João em seu Evangelho) - que à sua mensagem propriamente
dita, o que era o mais importante.
Eles eram conhecidos, inicialmente, como os Nazarenos ou representantes
de um movimento que se intutulava O Caminho e, a rigor, nos primeiros anos, só
se diferenciavam de tantos outros braços e correntes do judaismo, como os
Fariseus, Saduceus, Essênios, Zelotes e outros, pela sua impetuosidade, pela
minoria nômica e pelas
idéias - que poderíamos chamar, mantendo a devida diferenciação com a
conotação da palavra nos dias de hoje, de socialistas - o que explica, como muito
bem nos aponta Mircea Eliade, que de toda produção intelectual da cultura
ocidental apenas o Cristianismo e o Marxismo tenham chamado realmente a atenção
de outros povos e civilizações, como a Oriental ou a Africana, por exemplo,
exatamente porque ambas têm como objetivo resgatar o homem enquanto homem das
amarras negras que o prendem, seja por conta de uma visão de mundo ainda brutal,
seja por conta de uma visão patriarcal e xenófoba, como no caos do judaísmo ao
tempo do Cristo, seja por conta de um sistema econômico explorador, como no caso
do Capitalismo, muito bem dissecado por Marx . Outro
ponto em comum entre Cristo e Marx foi o fato de que seus seguidores acabavam
por os interpretar à sua maneira, como veremos mais adiante, pois muito do que
foi dito por Cristo foi recebido de acordo com o entendimento e maturidade
espiritual de quem o ouvia, o que não deixou de trazer várias interferências na
mensagem original de Jesus.
Devido ao orgulho pátrio, à crença na superioridade do
Povo Escolhido de Deus e na esperança da vinda de um Messias que restabeleceria
a glória de Israel frente às demais nações, em especial à odiada Roma, por cujo
jugo estavam submetidos, bem como a um não completo entendimento da missão
espiritual do Mestre, paulatinamente os futuros cristãos mesclariam ainda mais o
entendimento parcial da doutrina de Jesus às várias revelações apocalípticas
vigentes então, que viam o domínio de Roma sobre Israel um sinal de decadência
drástica ao qual só uma reforma radical do mundo, marcando um fim do mundo
antigo e trazendo um vitorioso Reino de um Deus dos Exércitos, o Yhavé de
Moisés, poderia fazer renascer uma nova humanidade. Daí o cunho escatológico tão
freqüente na narração dos Atos dos Apóstolos e nas Epístolas de Paulo, o que não
deixou de se refletir especialmente na redação dos Evangelhos, cujos textos
iniciais foram escritos bem depois de Jesus, mais ou menos na época da
destruição do Templo no ano 70.
Isso não significa, porém, que já na época de Cristo não
houvesse algum ou alguns textos ou mais especificamente algumas anotações
feitas por admiradores alfabetizados, contendo os principais pontos de
sua doutrina e que tenham servido de base aos debates entre os discípulos e aos
demais textos posteriores. Possivelmente estes existiam, se
não diretamente contemporâneos a Cristo, ao menos esboçados pouco depois de sua
morte. Hoje existe quase uma unanimidade em relação à existência de, ao menos,
uma fonte primitiva escrita, que se perdeu. Este texto fonte primário
(quelle em alemão) é conhecido entre os especialistas como o Evangelho Q
(de quelle), cujos traços podemos ver nos demais evangelhos e que tem,
provavelmente, sua expressão mais aproximada no chamado Evangelho de Tomé (ou de
Tomás) que foi encontrado, aliás, redescoberto (pois já tínhamos conhecimento da
existência deste evangelho nos primeiros quatro séculos de nossa era por meio
de citações dos primeiros teólogos da Igreja) em 1945 no
Egito, isso se não for quase todo ele, ou boa parte dele, o próprio Evangelho Q,
como pensam alguns.
A força da personalidade de Jesus (cujo nome em hebráico
é Yoshua sendo Jesus a adaptação latina da forma grega Iesous), junto com
a eletrizante notícia de suas aparições iria se amalgamar na imaginação dos
novos discípulos que cada vez mais se juntavam aos primeiros para se fazer
nascer a crença, com poucas exceções, de que Jesus seria realmente o Messias
reformador esperado, tendo poderes supra-humanos no imaginários popular e que não apenas iria fazer surgir uma nova espiritualidade e
uma ética social revolucionária decorrente desta - seu real objetivo -, mas que
iria, de fato, estabelecer fisicamente um Reino de Deus na Terra em sua segunda
vinda ao orbe - tema este que surgiu devido à exaltação dos discípulos e a uma
má interpretação das palavras de Jesus, o que se justifica, em parte, pelo fato
de que nos primeiros séculos, as várias comunidades cristãs eram formadas por
grupetos de gente que estavam espalhadas em áreas díspares, especialmente depois
da diáspora dos judeus na década de 70 do século I. Era difícil o contato entre
estas comunidades, e muito do que se sabia sobre Cristo era esparso,
fragmentário e transmitido oralmente. Nestas comunidades, aos poucos, a ênfase
recaia nos talentos de cura extraordinários de Jesus e em seu carisma pessoal, o que
fortalecia ainda mais a esperança de ser ele o Messias político esperado, o que,
infelizmente, eclipsou grande parte de sua mensagem, e fez nascer a imagem
mítica de um ser sobrenatural, singular, cada vez mais distante da humanidade. A ênfase
messiânica acabou por contaminar mesmo os escritos evangélicos em detrimento
de uma melhor apresentação de sua mensagem e na distorção de certos fatos
históricos.
Com o constante crescimento dos simpatizantes da causa do
Cristo entre os judeus - não nos esqueçamos que este movimento ainda era visto
como um movimento de Reformas dentro do Judaísmo, pelos discípulos, muito
embora a visão de Jesus fosse universalista - o Sinédrio se inquietou ainda
mais, em ressonância com o crescente clima de rebelião que se fazia sentir em
toda a Judéia ocupada. Se antes eles eram relativamente tolerados até mesmo dentro do Templo por
demonstrarem seguir as normas das cerimônias ortodoxas, o aumento geométrico de
simpatizantes trouxeram os mesmos receios na elite sacerdotal que provocara a
morte de Jesus. Pedro e outros apóstolos foram detidos mas escaparam da morte
com a ajuda dos aliados que tinham em meio aos sacerdotes - e que, infelizmente,
devido às urdiduras de Caifás, não puderam comparecer em grande número ao
julgamento de Jesus. A mesma sorte, porém, não tiveram outros discípulos, como
por exemplo, Estevão, que foi morto a pedradas, não porque lhe faltassem
defensores, mas por causa do ardor de seu posicionamento diante da Doutrina de
Cristo, o que feriu muito as susceptibilidades dos Doutores da Lei. Entre os que
estavam presentes, um dos mais irados foi Saul de Tarso, que se fizera um
implacável combatente das idéias do Cristo (e dos seus discípulos). Ele foi o
responsável direto pela prisão de inúmeros discípulos e simpatizantes do
Cristo.
Saul (ou Saulo) era exaltado e inteligente, de
temperamento forte e com extremo espírito combativo, um futuro sacerdote
exemplar do
Templo. Mas seu posicionamento ante o cristianismo iria dar uma completa
reviravolta.
Em uma de suas viagens, Saul passou por uma experiência
psíquica que lhe impactou tanto que de perseguidor passou a ser o maior defensor
do cristianismo entre os judeus e, posteriormente, entre os não judeus, chamados
por estes de gentios. Na estrada para Damasco, onde iria levar a cabo mais
perseguições e prisões de cristãos, Saul teve ele mesmo uma experiência não
usual ao ver o próprio Jesus diante de si (os que o acompanhavam presenciaram
igualmente "alguma coisa" que não souberam definir).
Ao mesmo tempo, os primeiros judeus helênicos e egípcios,
junto com gentios destes mesmos países e que tinham entrado em contato com Jesus
e sua doutrina, começaram a formar núcleos em Antioquia e em Alexandria, no que
seria os primeiros passos reais do cristianismo pelo mundo.
Após as primeiras perseguições, os ânimos do Sinédrio, em
especial diante da atitude moderada de sacerdotes como Gamaliel, se acalmaram
por um certo tempo, outros problemas políticos melindrosos com relação à
Roma se tornaram mais importantes, mas o movimento Galileu não foi
negligenciado totalmente, e por uma década os discípulos que
haviam escapado dos primeiros embates diretos com o Sinédrio passaram a retomar
à divulgação da Boa Nova com maior sucesso especialmente na Galiléia, região
relativamente livre do domínio direto de Roma e mais distante do braço
fiscalizador do Sinédrio. O núcleo de Jerusalém ficou sob o comando de um irmão
de Jesus chamado Tiago, o Justo (assim chamado por ser fiel cumpridor de grande
parte da ortodoxia judáica que não se chocava com as idéias do irmão).
Enquanto isso, Pedro iria ser um grande divulgador da
mensagem de Cristo nas demais regiões (muito embora tenha sido ele a começar a
fazer de Jesus mais que um Messias espiritual, desenhando-o cada vez mais como o
Filho Unigênito de Deus e como o Messias militar que era esperado pelos judeus).
Tiago, porém, iria ser morto ao redor do ano 62 por ordem dos sacerdotes do
Templo. Esse foi o início de uma nova fase de perseguição aos cristãos na região
da judéia, tendo muitos, por isso, procurado refúgio da Galiléia e em outras
localidades, até mesmo em outras países, como foi o caso, por exemplo, de Tomé,
que foi à Índia, ainda que pelo caminho tenha pregado a outros povos, como os
Egipcios e os Persas. Foi Tomé o autor do evangelho que leva seu nome, e que se
julgava perdido até que foi reencontrado, como já dissemos, junto com outros
documentos, em 1945 no Egito, perto da cidade de Nag Hammadi, uma cópia copta
deste evangelho, o que trouxe uma retumbante reviravolta nos estudos
cristológicos e históricos, talvez potencialmente maior que a descoberta dos
Manuscritos do Mar Morto, que foi feita em 1947. Estudiosos como Elaine
Pagels, Helmut Koester, Hans Jonas e outros admitem que os aforismos contidos
neste evangelho são os mais próximos das palavras autênticas de Jesus - o que
serve como referência para se saber o que foi enxertado na mensagem dos
Evangelhos sinóticos oficialmente reconhecidos pela Igreja, sem falar de outros
pontos que só são encontrados neste evangelho, o que muito ajuda a esclarecer o
real pensamento de Jesus, que é um tanto diferente de muitos pontos defendidos
pelas igrejas cristãs oficiais. Para um estudo aprofundado sobre este tema,
aconselhamos a leitura de "O Evangelho de Tomé - Texto e Contexto" de Hermínio
C. Miranda, 1992, Editora Arte e Cultura, Niterói; e de "O Evangelho de Tomé" de
Marvin Meyer, Editora Imago, Rio de Janeiro, 1993.
Ao mesmo tempo, por esta época, a situação política na
Judéia tinha chegado a um grau explosivo, com muitas subvleções contra o
domínio romano, em especial diante da militância do movimento dos Zelotes, que
possuiam vários líderes carismáticos que se supunham, um após outro, serem o
próprio Messias.
Em 66 d. C., a maior parte dos judeus se rebelaria contra
Roma e seu jugo. A maior parte dos cristãos, que eram pacifistas, se mudaria
para cidades neutras, quase nada sofrendo. A destruição definitiva do Templo por
Tito e seus soldados fora entendida pelos cristãos como a concretização das
palavras de Cristo de que não restaria pedra sobre pedra da esplêndida
edificação, refeita há mais de setenta anos por Herodes, o Grande, e que era o
coração mesmo da religião judáica. Os judeus que foram dispersos viram com
despeito o fato de que os judeus cristãos estavam seguros em cidades ao
redor do Jordão, na galiléia e em núcleos judeus no Egito e Síria, onde, aliás,
haviam outras correntes do judaísmo com pontos em comum com o cristianismo, como
os Essênios e os Terapeutas, e sabiam o que estes diziam a respeito da
destruição do Templo. O ódio que começou a se alastrar entre os judeus dispersos
e os cristãos acabariam por cindir definitivamente as duas correntes.
Com a expulsão dos judeus de Jerusalém e da Judéia - a
diáspora -, os apóstolos e seus discípulos passaram a ser mais atuantes entre os
judeus mais abertos à mensagem de Jesus em vários centros cosmopolitas, indo de
Damasco à Roma. Enquanto Felipe marcou profunda presença na Samaria e em
Cesaréia, João seria o responsável pela fundação de um dos mais importantes
núcleos cristãos em Éfeso e outras regiões da Ásia Menor.
Pedro, ao lado de Paulo, era um dos mais infatigáveis
divulgadores de Jesus como um ser muito mais divino que humano, esquecendo-se
que o próprio Jesus fazia questão de estabelecer a irmandade de todos os filos
de Deus, sendo ele o que conseguiu atingir o propósito da vida e se fazer UM com
com os desígnios do Pai. Sua pregação se fez em especial pelas regiões
adjacentes à Ásia Menor, Capadócia, Bitínia e Ponto, tendo ido várias vezes à
própria Roma até ser finalmente cruxificado na cidade imperial em 64 d. C. Foi
por intermédio de Pedro e Paulo, exatamente pela presença de ambos em Roma, que
se atraiu a atenção e a conversão não só de judeus, como de muitos gentios. Com
Pedro, o cristianismo viria a adotar muitos dos elementos do judaísmo, em
especial sua ênfase escatológica em um fim dos tempos que estaria próximo, e
várias festas tradicionais judáicas, em especial a Páscoa. Com o tempo, a mescla
de cerimônias judáicas seria visto pelos cristãos romanos como uma brecha para
que outras cerimônias e vestimentas, dos antigos ritos pagãos, fossem igualmente
mesclados ao cristianismo.
Como nos fala muito lucidamente Albert Paul Dahoui, "a
diáspora facilitou o desenvolvimento do cristianismo, pois o movimento dos
judeus de um lugar para outro, suas ligações com o Império, especialmente
financeiro, ajudado pelo comércio, pelas estradas e pela paz romanas, acelerou a
expansão do novo credo. No entanto, se em Jesus e em Pedro (especialmente neste
último) o cristianismo era judeu, em Saul metamorfoseou-se em grego e no
catolicismo tornou-se romano" (DAHOUI, 1999, volume VII, p. 301).
A partir da década de 70 em diante, as primeiras edições
dos textos que dariam orígem aos evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas)
começaram a circular entre as comunidades cristãs, mas estas sementes estavam em
meio a muitos outros textos que foram totalmente perdidos, ou que nos chegaram
na forma de fragmentos ou como textos apócrifos, ou seja, não reconhecidos pela
Igreja. Hoje sabemos, como já o dissemos, que os três sinóticos citados acima se
basearam em uma fonte em comum que, antes, se pensou ser um texto primitivo do
que seria o Evangelho de Marcos, mas hoje já se ventila a hipótese de que esta
fonte (quelle em alemão), o famoso evangelho Q seria um conjunto de
aforismas e anotações dos ditos de Jesus muito próximos do que se acha inscrito
no Evangelho de Tomé, podendo ter algumas anotações biográficas em um outro
texto que faria parte do Evangelho de Mateus. Já o Evangelho atribuído a João
teve o início de sua redação no fim do século I e tem um linguajar bem
diferente, especialmente diante do público alvo a que se dirigia, ou seja, aos
gregos. É o mais gnóstico dos quatro evangelhos e o mais próximo, no seu
espírito, ao evangelho de Tomé, mas é, igualmente, o que melhor permite ver que
foi amplamente modificado em vários pontos, ou seja, que foi escrito por mais de
uma mão. Mas, de qualquer forma, deve-se ter em mente que todos foram escritos
tendo por objetivo divulgar uma imagem do Cristo, e muito do que foi narrado (e
não foi adulterado posteriormente por copistas e editores) ainda assim deve ser
visto com certo cuidado, pois se baseiam nas memórias de discípulos das
ocorrências de quase quarenta anos antes.
O ministério de Paulo foi, de longe, o mais atribulado do
dos demais discípulos do Cristo, ainda que Paulo nunca tivesse tido contato com
o próprio Jesus quando este vivia na Terra. Impetuoso, Paulo viajou por quase
todo o Império onde haviam comunidades judáicas e teve sérios atritos com os
demais discípulos. Tentou apresentar Cristo como um dos grandes Filósofos iniciados, em Atenas, mas teve um êxito desprezível neste primeiro momento. Suas
viagens estão narradas nos Atos dos Apóstolos e em documentos vários, como suas
Epístolas (ao menos, às que lhe são atribuídas e que não sofreram ainda maiores
interferências posteriores que os Evangelhos, sem falar de outras que
simplesmente desapareceram depois do século IV). Morreu em Roma, após anos de
prisão. Foi este o período em que Saul se transformou em Paulo, o apóstolo dos
gentios, e que devido à distância com os demais colegas discípulos e aos anos em
meio a várias outras culturas, teve tempo de formar a primeira Teologia
sistemática cristã que é um tanto diferente da mensagem original de Cristo, em
especial por conter uma forte ideologia patriarcal bem judáica, conter um
halo mítico a existência de Cristo e que mais ênfase dá na figura de Jesus que
em sua mensagem. Foi dele, embora inconscientemente - ou talvez nem tanto assim
- a idéia que, mal interpretada, se insttituiu o dogma da Ressureição física -
que por um erro de interpretação posterior, que passou por cima do que Paulo
chamava de "Corpo Espiritual" do Cristo, para dar início a uma tradição que iria
admitir a volta de Cristo à vida no próprio corpo físico, o que provocou
interpolações nos sinóticos, como no caso de João, em que fizeram Tomé - talvez
exatamente o mais lúcido dos discípulos - a tocar as chagas de um cadáver que
teria retomado a vida, e não pela presença gloriosa de Cristo que se fez
presente e visível através da materialização de seu espírito.
Foi Paulo também que instituiu grande parte da idéia de
que Cristo morreu para redenção do mundo, tirando parte da responsabilidade
pessoal de cada um por seu próprio progresso espiritual, bastando qualquer
pessoa se converter para ser salva, devido à fé, e a qualquer tempo durante a
vida, e ganhar o paraíso. Esta idéia foi retomada com ardor pelos protestantes
15 séculos depois, e seria a principal marca das Igrejas Reformadas.
Mas a teologia de Paulo foi realmente levada em conta
quando as primeiras gerações de cristãos, as que conheceram Jesus ou seus
apóstolos, já havia desaparecido. Com o desejo de Constantino de ter um Império
com um só Imperador e uma só Igreja, as epistolas de Paulo (já devidamente
"editadas" junto a outros documentos que lhe eram atribuídos) foram usados como
fundamento para o sistema da teologia Católico-Romana.
Nos fala Alberto Paul Dahoui que "foi através de Paulo
que nasceu a teologia cistã, mas este fato não aconteceu de imediato. Um século
depois de morto, Saul havia sido esquecido e somente quando as primeiras
gerações de cristãos haviam passado, a tradição oral dos apóstolos desapareceu,
e as heresias começaram a desorientar o espírito cristão, é que as epístolas de
Paulo foram ressuscitadas. Passaram a servir de arcabouço para um sistema de fé
que uniu as esparsas congregações em uma poderosa Igreja Central
"Saul havia criado um novo mistério, uma nova forma do
drama da ressurreição, que iria sobreviver a todas as demais versões. Ele
mesclou a ética utilitária dos judeus com a metafísica dos gregos e transformou
o Jesus dos evangelhos no Cristo Invicto da teologia. Para Saul, Cristo morreu
na cruz para a redenção do mundo, pois, com sua morte, ele retirou o pecado
original do orbe e oferecia, com sua paixão na cruz, a salvação.
"Saul continuaria, entretanto, obscuro e esquecido até
que a reforma protestante de Lutero levantou-o das cinzas do passado, e Calvino
também encontrasse nele os textos na crença da predestinação. Os dois não
entenderam que Saul havia preconizado que o homem justo será salvo
pela fé, e não que todos seriam salvos pela fé (...). Com o
desvirtuamente das palavras de Saul, qualquer um que aceitasse Jesus estaria
imediatamente salvo.
"O protestantismo foi o triunfo de Saul sobre Pedro, e o
fundamentalismo foi o involutário triunfo de Saul sobre Cristo e ambos só
atestaram que a doutrina de Jesus foi parcialmente esquecida. Jesus, que queria
que a maior prova do homem fosse a virtude, acabou sendo substituído pela [mais
cômoda] fé preconizada por Saul. Para Jesus, o reino de Deus era uma nova
atitude íntima perante a vida, que desembocaria numa sociedade mais justa e
fraterna, e para os que usaram Saul de forma indevida, era apenas adesão"
(Dahoui, 1999, volume VI, pp. 306-307).
Mais adiante, o mesmo autor arremata:
"O cristianismo não iria destruir o paganismo. Pelo
contrário, o novo cristianismo [Romano, mais tarde cindido entre as duas Igrejas
Católicas, a do Império Romano do Ocidente e do Império Romano do Oriente,
conhecido como Igreja Católica Ortodoxa], que nada tinha a ver com Yeshua de
Nazareth, iria adotar os ritos e idéias dos pagãos, assim como de outras
religiões existentes na época. Substituiria a profusão de deuses subordinados a
um distante Deus criador, por uma multidão de santos subalternos a Jesus Cristo.
O espírito grego ressurgiu na teologia e na liturgia da igreja. A língua
clássica grega foi usada durante séculos na liturgia, para depois ser
substituída pelo latim, mas, mesmo assim, tornou-se o veículo da literatura e
ritual cristãos".
Nesse sentido, convém notar que o estabelecimento do dia
25 de dezembro como sendo o dia de Natal do Senhor convinha ao Império por ser a
data tradicional de celebração do solstício de inverno, onde se celebrava a
volta do Sol Invictus, símbolo adotado por Constantino. O solstício de inverno
era também comemorado em outras culturas pagãs e representava o ponto máximo do
inverno, o ponto onde recomeçaria o ciclo da volta do sol.
As conseqüências da oficialização e institucionalização do
cristianismo pelo Império - ou melhor, a adaptação romana da mensagem original
do Cristo - não tardou a dar estranhos frutos: exatamente na época da
"conversão" de Constantino (entre aspas, pois o imperador manteve implicitamente
a liberdade de culto às demais religiões e aos muitos ritos, tradições e
costumes pagãos, sendo ele mesmo o incentivador de que todos os considerassem
uma espécie de encarnação divina, adotando o emblama tradicional do Sol Invictos
dos cultos pagãos como estandarte e selo próprios) em 325, sendo o bispo de
Roma, à época, Silvestre I, a promoção pelo Imperador, por desejo pessoal, com
base num jogo de táticas políticas, e sem levar em consideração o que pensasse o
bispo (ou papa) de Roma, do Concílio de Nicéia, tendo expulso neste perto 1.700
participantes do conclave composto por 2.048 pessoas, exatamente os que se
recusaram a aceitar a imposição do imperador em declarar, a partir de então,
como meio de realçar ainda mais as ligações entre a religião e o Estado de um
Único Poderoso Imperador, que Jesus não era tão só o filho de Deus, mas o
próprio Deus, e, portanto, Imperador do Universo do qual Roma e seu Império
deveriam ser espelhos. Desde então, passou-se a construção de uma Teologia
Católico Romana, que se esforçou para eliminar qualquer traço de oposição ou
crítica ao que passou a ser imposto como o cristianismo oficial, pleno de traços
e ritos adaptados do paganismo, incluindo o uso de roupas sarcerdotais especiais,
o uso do incenso, ritos, imagens, etc.
Portanto, depois de vinte séculos, só agora o esforço
devotado de inúmeros pesquisadores sérios em todo o mundo pôde levantar o mofo e
a poeira de séculos de dogmas e doutrinas espúrias e fazer sobressair, aos
poucos, e ainda em seus luminares mais brandos, parte da real mensagem que um
meigo jovem da Galileia teve a genialidade e a coragem de lançar ao mundo e que,
mesmo que truncada, maquiada e manipulada, teve força suficiente para modificar
a história, se mostrando ainda mais linda e impressioanante em sua pureza
original que a versão mítica e enviesada que as Igrejas impuseram às massas
nestes quase dois mil anos e que, no máximo de deturpação da mensagem de Jesus,
deu origem à aberrações sangrentas como as Cruzadas, a "Santa" Inquisição (que,
ao contrário do que se pensa, ainda está ativa, embora de forma mais branda, no
chamado Conselho para Defesa da Fé, no Vaticano, de que não escaparam de terem
suas obras censuradas nem Pierre Teilhard de Chardin, nem Leonardo Boff), e
movimentos extremistas como a TFP, por exemplo, no lado Católico e, no lado dos
evangélicos, a Igreja Universal do Reino de Deus, entre outros históricos e
tristes exemplos. Mas, aos poucos, a mensagem original está sendo regatada, quem
sabe para fazer com que o Cristo realmente renasça em cada um e por cada
um...
João Pessoa, Paraíba, 15 de janeiro de 2000
Bibliografia
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