Desde que a Psicologia foi levada ao reconhecimento científico e acadêmico a partir dos trabalhos de Wundt, William James e Max Wertheimer, que a academia buscou consolidar seu posicionamento frente às demais ciências mediante a adoção, mais ou menos estrita - dependendo dos teóricos - dos parâmetros das ciências exatas, notadamente a física clássica, como critérios de validação das pesquisas em Psicologia.
Posteriormente a revolução provocada
por Sigmund Freud e seguidores causou uma verdadeira divisão de
águas nas principais áreas de estudos humanos: surgia a Psicanálise
como um modelo ao mesmo tempo mecanicista, e, por isso, atrelada ao paradigma
da física clássica, e, igualmente, a-mecanicista por se basear
em termos de uma nova estrutura explicativa do comportamento: o inconsciente.
A partir daí, as teorias psicanalíticas da personalidade,
principalmente em seus dois pilares mais básicos, Freud e Jung,
exatamente por se aterem, principalmente em Freud, aos princípios
postivistas próprios das ciências biomédicas do século
XIX, passaram a ditar, por sua enorme influência nos meios médicos,
a visão de homem psíquico que imperou (e ainda impera em
grande parte) em quase todo o século XX: o homem é um sistema
energético (muito embora não se saiba muito bem definir como,
em sua essência), cuja estrutura é semelhante a de um aparelho
hidráulico ou térmico. A energia e a sua expressão
através do comportamento humano se mantém em virtude de um
contínuo intercâmbio com o meio externo. Este intercâmbio
visa manter a estrutura funcionando, adaptando-a às necessidades
do meio, a reprodução da espécie e, no caso mais em
Jung, o prosseguimento do processo de maturação
psicológica total (individuação).
Um dos principais problemas desta visão
de mundo (no caso, mais em Freud que em Jung, que foi extremamente holístico
em termos de coooperatividade entre self e ambiente), é
a de que o homem assim entendido acaba por se encaixar numa visão
já existente na biologia: a da sobrevivência dos mais aptos,
na disputa pela vida; e de uma visão econômica própria
do capitalismo: a da competitividade onde os fins, os ganhos individuais,
justificam os meios. Tal quadro conceptual acaba por justificar e icentivar
certos comportamentos em detrimentos de outros, certas tendências
ao invés de outras. Estimula o hiper-desenvolvimento, por exemplo,
de tendências auto-afirmativas competitivas mais que as tendências
integrativas, fraternas. Causa, pois um desequilíbrio entre dos
aspectos complementares do ser.
O ser, enquanto indivíduo, é o
foco, atraindo mais atenção para o individual, e o seu destaque,
mais que seu relacionamento, enquanto relacionamento em sí, em termos
de coletividade, sociedade e meio-ambiente. Ainda que Jung
tenha atingido insights da importância da rede ambiental-social
na individuação da pessoa, sua estrutura teórica,
em linhas gerais, continuava a ser a da psicologia do Indivíduo.
Nesse caso, as duas principais correntes psicanalistas tinham muito a dever
a Charles Darwin. Nesta herança, o darwinismo psíquico acabaria
por aceitar, em parte, uma visão seletiva em que que algumas pessoas,
a partir de qualidades estruturais internas, seriam mais ajustadas naturalmente
que outras para a realização da adaptação ao
meio e ao trabalho com o mesmo.
A partir daí, o estudo de casos patológicos, ou de comportamentos "anormais", tomou um vulto de enorme importância dentro da Psicanálise mais ortodoxa de Freud, a tal ponto que a teoria Psicanalítica clássica se fez, quase que em toda a sua totalidade, em cima do comportamento neurótico de pacientes da classe média mais abastada, tendo, mais tarde, sido ampliada para tentar enquadrar todo o funcionamento emocional humano, dentro do mapa teórico originalmente construído em cima do material trazido pelos pacientes (notar o termo médico) "não-saudáveis", inclusive em relação ao comportamento social, coletivo.
Ainda assim, com todo o sucesso que a Psicanálise clássica atraia devido a sua aceitação pelos meios médicos e seu enquadre biomecânico, outras pessoas não aceitavam o reducionismo de uma concepção estritamente biofísica de homem. A Gestalt, na alemanha, por exemplo, foi uma das escolas que questionavam este tendência. Da mesma forma, a Sociologia e a Antropologia se fortalaleciam como disciplinas independentes, da mesma forma que a Pedagogia passou a compreender o papel que desempenhava na formação de valores coletivos. Os sociólogos deram largas mostras de que o homem, enquanto conjunto de atitudes e comportamentos visíviveis, é produto de sua cultura, classe social e das instituições de seu meio; os antropólogos, por sua vez, foram até os chamados "primitivos" ou "selvagens", de regiões remotas do mundo, e demonstraram que o a aprendizagem humana é incrivelmente flexível, e o seu comportamento, maleável. Assim, tudo demonstrava que o homem também é produto das influências do meio em que vive, e não apenas uma caixa hidráulica cujos comportamentos são ditados unicamente a partir de choques energéticos e/ou de desvios de pulsões internas.
Gradualmente, estas ciências sociais foram
se adentrando nos estudos de Psicologia, afastando muitos dos estudantes
e teóricos do que eles consideravam uma formulação
reducionista e projetiva intolerável, fruto de uma metáfora
feita com um artefato humano, a máquina, que se enquadrava muito
bem num desejo igualmente humano: previsão e controle do comportamento.
Muitos dos mais importantes seguidores de Freud, entre eles o próprio
Jung, não suportaram por muito tempo aquilo
que parecia ser um defeito de percepção do pai da Psicanálise:
os condicionamentos sociais da personalidade - portanto, muito mais que
o do núcleo básico pai-mãe que formaria o complexo
de Édipo. Entre os mais importantes teóricos que passaram
a considerar uma adaptação da teoria psicanalítica
à luz da Psicologia Social estão Alfred Adler, Karen Horney
e Erich Fromm. Adler, segundo Fromm, foi o primeiro psicanalista a observar
e enfatizar a natureza social na constituição dos seres humanos.
Posteriormente, tanto Fromm quanto Horney utilizaram esta idéia
como fundamento contra a tendência extremamente "instintivista" da
psicanálise freudiana ortodoxa, o que vem sendo feito ainda hoje,
aliás, principalmente hoje, no que, segundo alguns, se chama "a
desconstrução da Psicanálise" enquanto teoria calcada
quase exclusivamente em termos da sexualidade, sendo, atualmente, resgatado
o conceito, percebido por Freud, mas não desenvolvido suficientemente
por ele, de desamparo.
Erich Fromm
Nascido em 1900, em Frankfurt, Alemanha, Erich
Fromm estudou Psicologia e Sociolgoia em Heidelberg, Frankfurt e Munich.
Dotorou-se em Filosofia em Munich e recebeu sólida formação
psicanalítica no Instituto Psicanalítico de Berlim. A partir
de 1933, ano da ascenção de Hitler ao poder, passa a exercer
o cargo de professor nos EUA, em Chicago, e, posteriormente, a exercer
a clínica em Nova York. Foi professor em várias universidades,
inclusive no México. E seus livros passaram a se ater em questões
humanistas que atraíram a atenção de profissionais
de vários campos, como Sociologia, Filosofia e Teologia. De certa
forma, muitas de suas idéias foram contemporâneas das de várias
abordagens humanistas, especialmente, em Psicologia, das formuladas por
Carl Rogers.
Fromm sempre se mostou profudamente impressionado pelo que ele via como uma poda da liberdade humana, pelo modo como as pessoas se submetiam, inconscientemente, a desempenhar papeis mecânicos dentro da sociedade exclusivista estruturada na ideologia da capitalismo. Ele sempre se mostou particularmente impressionado pela obra de Karl Marx, particularmente, assim como ocorreu com Karl Popper, com seus primeiros trabalhos, como Os Manuscritos Econômicos e Filosóficos, de 1844. Fromm, então, magistralmetne faz uma comparação entre Freud e Marx, estudando suas idéias, e propondo uma síntese entre ambas. Em sua ótica, Fromm chega mesmo a considerar Marx mais profundo que Freud, e, portanto, usa a psicanálise como um complemento das lacunas deixadas pelo pensamento de Marx. Ao mesmo tempo, Fromm aponta algumas das limitações de Marx, e tentar propor um humanismo espiritual, um humanismo social e, como ponte, um humanismo dialético, todos altamente congruentes e adjacentes entre si, como forma de desenvolver as potencialidades humanas naquilo Maslow chamaria mais tarde de Metavalores.
O tema central da obra de Fromm é profundamente
humanista, ou eco-ético-humanista: o homem se sente desamparado
e só (tese que os atuais psicanalistas de ponta acreditam ser a
alternativa mais propícia à ênfase na sexualidade)
porque se separou ou deixou de desenvolver suas qualidades, potencialidades
ou natureza mais propriamente humanas e deixou, por isso mesmo, de ter
contato com as mesmas potencialidades e natureza das demais pessoas. Esta
situação de alienação social, mesmo que maquiada
- e principalmente enquanto tal - é uma característica trágica
e que se encontra apenas entre os seres humanos, especialmente quando as
condições materiais criam uma hierarquia de dominação.
Em um de seus livros mais famosos, Medo da Liberdade, Fromm propõe a tese de que o homem, paralelamente à liberdade material que tem conquistado através da história, tem se isolado cada vez mais de seus semelhantes, na busca por espaço e sucesso material. E, em paradoxo, a mesma liberdade material torna-se uma condição que assusta, e do qual tende a escapar, maquiando-a em situações de posse e de poder, ou de submissão passiva às autoridades e/ou de conformação à sociedade, o que lhe daria a ilusão de "TER" algo, ou de "PERTENCER" a algo que lhe permita sentir-se menos só. Como opção mais saudável, haveria o reconhecimento da riqueza do "outro" e da importância da cooperação e da solidariedade, num espírito de fraternidade onde o bem-estar social deveria ter a primazia, garantindo o bem-estar individual. Neste caso, a criatividade e as potencialidades humanas seriam usadas para sedimentar a liberdade co-responsável dentro de uma sociedade equilibrada; no primeiro caso, o homem construiria um novo tipo de servidão, aliás, bem conforme aos ideias do neoliberalismo e da globalização, extremamente selvagem em sua ganância e anulação do homem, enquanto indivíduo criativo.
Como base disto, Fromm aponta para o fato de
que somos, ao mesmo tempo, animais e humanos, com necessidades fisiológicas
importantes e imprescindíveis que precisam ser satisfeitas, assim
como temos consciência, razão e compaixão, quer precisam
ser exercitadas. Assim, no reconhecimento do humano dentro e ao lado das
necessidades básicas, levaria a sociedade madura a perceber que
a solução de seus conflitos está no reconhecimento
de que nossas necessidades todas, inclusive as humanas, exige a participação
de todas as demais pessoas. Além disso, existe também a necessidade
de transcendência, como seria depois confirmado por Abraham Maslow,
Carl Rogers e pela Psicologia Transpessoal, e
que já foi utilizada por Jung, que se refere
à necessidade humana de superar sua natureza animal, de tornar-se
uma pessoa criativa e criadora. Se seus impulsos transcendentes forem bloqueados,
o homem se torna neurótico, e sua criatividade acaba canalizada
para a destruição. Estes mesmos conceitos básicos
encontrei na linguagem incisiva e lúcida de Paulo Freire. Através
de estradas aparentemente diversas, a Pedagogia e a Psicologia, Fromm,
Freire e Rogers atingem, todos, o mesmo ponto focal: a causa da miséria
ética e moral do homem pós-moderno está em sua renúncia,
semi-inconsciente, aos seus próprios potenciais de desenvolvimento
e integração sinérgica fraterna. Esta renúncia
se expressa à perfeição ao nível de egoísmo
homicida e de extrema ganância individual contra o delicado equilíbrio
biossocial que o envolve, e que, hoje, pode ser enquadrada perfeitamente
na ideologia neoliberal, ideologia que mostra a sua crueza por não
possuir, para a refrear, o contrapeso de valores, idéias e ideais
que lhe façam frente. O Socialismo, enquanto desempenho de tal freio,
parece ter sido definitivamente vencido pelo capitalismo, pelo menos enquanto
ideologia. E com eles, parecem terem-se ido também a crença
no humano. Esta aceitação de tal idéia condiciona
toda uma forma atual de ver o mundo. Só aproveitando a saudade do
paraíso perdido, enquanto humanismo, podermos resgatar a ética
e, com ela, os conceitos aparentemente vencidos de Liberdade, Igualdade
e Fraternidade. Resgatar o sonho e a utopia de que o mundo não é,
como algo definitivo, mas torna-se aquilo que esperamos que ele seja, sempre
e sempre...