Governo do varejo

Artigo do jornalista Villas Boas Corrêa publidado no Jornal do Brasil em 06 de outubro de 1999

Como o que o governo planeja a longo prazo não dá certo, ele vai encolhendo para o trivial no varejo, correndo, aflito, para tapar os rombos que os azares de cada dia esburacam nos sonhos de recuperação da credibilidade em frangalhos e da popularidade que baixa, com razão, a índices desqualificantes.

As agruras do momento sopraram o pó que assentara sobre o finado Plano Plurianual, pouco conhecido e desacreditado pelo apelido de "Avança Brasil". Como badalação no lançamento foi das maiores promoções da temporada, mobilizando a renovada equipe de marketing palaciano e merecendo o espetáculo da convocação de todos os ministros e a claque dos assessores, governadores, lideranças parlamentares, convidados especiais, ampla cobertura pela mídia e, claro, o fecho do gogó de ouro em discurso que entremeou texto preparado pela vitoriosa equipe econômica e os improvisos confeitados pelo brilho cultural do sociólogo.

Por alguns dias, o "Avança" Brasil pairou nas alturas como pipa em céu sem nuvens e sem a brisa que a sustente. As últimas pesquisas abanaram o sopro de alento, com índices estacionários na queda livre da popularidade, cruzando com as desanimadoras evidências de que a sociedade torcia o nariz e virava o rosto vincado pela descrença.

O governo não está sendo levado a sério. A indignação arrefece no miolo, dissolvida pela indiferença; fermenta nas beiradas radicais.

Atingida em cheio pela unânime decisão prevista e anunciada do Supremo Tribunal Federal (STF), o arremedo de reforma da Previdência Social foi para o espaço. Com a irrecorrível sentença de morte da declaração da inconstitucionalidade da cobrança de contribuição previdenciária dos inativos, recomeçou o corre-corre para calafetar os furos nas previsões de redução do déficit gigantesco de bilhões ( que poderia ser, em parte, sanada diante da revisão dos favores dado aos ruralistas na questão previdenciária).

E assistimos à azáfama governista escorregando no chão liso da contradição. Justamente quando o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (Bird) vergam o espinhaço esclerosado por décadas na mais gelada insensibilidade social e entoam o canto do fingido remorso de preocupação com a miséria e a pobreza que ameaçam virar o mundo de pernas para o ar, o presidente Fernando Henrique vara as noites e consome as tardes em reuniões nervosas com a sua trupe de economistas e os inimigos íntimos da base parlamentar para cortar gastos e inventar meios dissimulados de meter a mão no nosso bolso e catar os níqueis para compensar os estragos.

Certos desmentidos são tão descarados que dão cambalhotas no picadeiro e pousam na serragem com o rosto pintado do deboche. O governo afirma, e repete demais para ser levado a sério, que os cortes pouparão as dotações para os investimentos na área social. Exemplifica com o óbvio dos planos para a Saúde e Educação.

Quem embarca em tais potocas? A reviravolta das promessas de retomada gradual do desenvolvimento empacotadas no PPA - a sigla pimpona do Plano Plurianual - entortou o fio do discurso otimista e lançou o governo na histeria de proteger, a qualquer custo, a bóia do real, a que se agarra como náufrago nas águas turvas do insucesso. Todos os anéis podem ser atirados nas mãos dos credores. Menos a estabilidade econômica.

Os arrependimentos de crocodilo do FMI, o lacrimejar de novela do Bird não afagam o governo, mobilizado para o varejo miúdo de alinhavar remendos nos fundilhos puídos.

Desatento por vício e desanimado pelo caiporismo que não o larga desde o primeiro dia do mandato da reeleição, o governo não deu a mínima atenção a uma das raras ofertas de ajuda que brotou no canteiro seco dos seus aliados no Congresso. Pois não é que a deputada Zulaiê Cobra (PSDB-SP), agraciada com a batata quente da relatoria da reforma do Judiciário, recolheu no chão um desprezado palpite e resolveu incluí-lo no relatório, que deve ser votado, esta semana, pela Comissão Especial. Simples como os bons achados. Liquida com a ridícula querela sem fim em que se distraem os presidentes da República, do STF, do Senado e da Câmara para fixar o teto dos vencimentos para os três poderes. A pendenga empacou em embaraço patusco. O presidente Fernando Henrique fincou o pé nos R$ 10.800,00 dos salários dos ministros do STF. Mas, três ministros rodopiam, em rodízio, compondo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e recebem pela sinecura a gratificação de R$ 1.920,00. A qual, somada ao fixo, engorda o total para os R$ 12.720,00 das suspiradas exigências da magistratura.

Esperta como uma serpente, a deputada Zulaiê Cobra extrai o veneno do sofisma, propondo simplesmente que os três ministros do STF sejam substituídos, no TSE, por ministros do Tribunal Superior de Justiça (STJ) que não desfrutam o privilégio do direito à gratificação para os períodos em que servem à Justiça Eleitoral. E que, como se sabe e é óbvio, só se apoquentam com sobrecarga de serviço nos espaçados períodos de campanha eleitoral e de realização de eleições.

Alegações escapistas dos beneficiados pipocam na panela dos desapontados com o ovo que a deputada, amassando a casca, colocou de pé.

Villas Boas Corrêa

Repórter político do JORNAL DO BRASIL
E-mail: villasbc@unisys.com.br

 

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