O que é Bruxaria Tradicional Irlandesa?
Por Gustavo Elias

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Bruxaria Tradicional é um termo utilizado para definir um conjunto de crenças e práticas baseadas em elementos da cultura de uma determinada região européia. Nossas práticas são baseadas em elementos pagãos e folclóricos irlandeses, tendo como uma das principais fontes de conhecimento não apenas a rica tradição literária irlandesa como também os estudos históricos, antropológicos e arqueológicos sobre esta cultura. Com isso, é possível elaborar uma prática reconstrucionista a fim de viver os antigos costumes daquele povo. 

Um dos principais equívocos entre praticantes de Wicca e Bruxaria Moderna é acreditar que a bruxaria havia sido a ‘Antiga Religião’ da Europa, ou que existia um culto ancestral ao ‘Grande Deus Cornífero’, o qual havia sobrevivido em segredo até o século XX, período de ressurgimento do interesse pela prática de bruxaria na Europa. Tais conceitos, totalmente rejeitados pelo meio acadêmico moderno e, conseqüentemente, por praticantes de Bruxaria Tradicional, foram propagados pela antropóloga inglesa Margaret Murray através de seu primeiro livro ‘The Witch-Cult in Western Europe’[i], publicado pela primeira vez em 1921. As teorias de Murray (dentre várias fontes esotérico-ocultistas) foram utilizadas por Gerald Gardner durante o período em que concebeu a Wicca por volta do início da década de 50[ii]. Ao afirmar em seus livros que as teorias de Murray eram verdadeiras, Gardner enfureceu o meio acadêmico de sua época. Apesar disto, suas idéias foram perpetuadas e transmitidas pelas várias tradições de Wicca formadas no século vinte; e ainda hoje, existem vários outros conceitos provenientes da Fé Wicca que causam polêmicas entre wiccanos e bruxos tradicionais.

Em primeiro lugar, como dito acima, a bruxaria nunca foi uma religião. Não existiam templos, sacerdotes, escrituras, liturgias, cosmovisão ou regras em comum que caracterizassem a bruxaria como um culto coeso apto de ser chamado de religião. As práticas identificadas como ‘bruxaria’ já existiam na Europa pagã e foram mescladas às praticas cristãs durante toda a Idade Média.

Além disso, quando nos referimos às práticas de feitiçaria da Europa medieval como “Bruxaria Tradicional” estamos justamente nos referindo as práticas folclóricas de magia coexistentes em uma sociedade Cristã. Essas práticas possuíam, evidentemente, resquícios de antigos elementos pagãos, mas estavam longe de representarem, por exemplo, um reflexo nítido do antigo mundo celta irlandês. O que fazemos hoje, como bruxos tradicionais é justamente resgatar as antigas crenças pagãs, buscando uma prática o mais coerente possível com o passado histórico.

Podemos, atualmente, encarar a Bruxaria Tradicional como religião? Este é um assunto controverso, pois embora a prática da Bruxaria Tradicional possa ter um caráter devocional e ser chamada de ‘minha religião’, ela jamais poderá se enquadrar na categoria de Religião em meio a outras religiões estabelecidas como o Cristianismo, o Budismo, e etc., por não possuir os elementos já mencionados.

Vejamos alguns dos elementos básicos que caracterizam a nossa prática:

Na Bruxaria Tradicional não se traçam círculos para estar ‘entre os mundos’ ou para ‘tornar o espaço sagrado’.  A terra para nós já é sagrada, e essa conexão é buscada nos portais encontrados na própria natureza. Logo, jamais nos fecharemos em um círculo se estivermos em meio às árvores, em um bosque ou floresta, ou em uma praia em meio às rochas e o mar. Até mesmo dentro de um apartamento círculos não serão traçados, pois confiamos em nossa conexão com os deuses, ancestrais ou quem quer que estejamos convocando.

Conseqüentemente, a prática wiccana de invocar os quadrantes, derivada de práticas ocultistas da Hermetic Order of the Golden Dawn (Ordem Hermética da Aurora Dourada), cujas origens jazem nos trabalhos do matemático e astrólogo Inglês John Dee[iii] (1527-1608), não fará parte de nossa prática.

Outro elemento estranho às práticas tradicionais é a idéia de que “todos os Deuses são um só Deus e Todas as Deusas são uma só Deusa”. Este conceito foi difundido pela primeira vez em 1938 pela ocultista e escritora galesa Dion Fortune[iv] (1890-1946) em seu livro “The Sea Pristess”, e é baseado em ensinamentos da Golden Dawn a qual fez parte de 1919 a 1921.  Algumas décadas depois, foi incorporado a Wicca, por Gerald Gardner e posteriormente absorvido por crenças e práticas de Bruxaria Moderna. A Bruxaria Tradicional, por outro lado, reconhece a individualidade dos deuses. Nenhum deus ou deusa é maior do que o outro. Não existe também a idéia de um Deus ou uma Deusa suprema que rege o Todo.  Somos estritamente politeístas, assim como os antigos pagãos celtas o eram; alem disso, cultuamos única e exclusivamente o panteão irlandês. Entretanto, em nossas Festividades, é de costume honrar primeiramente os deuses e espíritos da Terra Sagrada onde habitamos, antes de convocarmos deidades estrangeiras. Por este motivo, o estudo das tradições indígenas locais adquire, também, notável importância.

Na medida em que vamos pesquisando e nos aprofundando em nossas práticas, começamos a nos desapegar de certos elementos utilizados no início, como alguns instrumentos ritualísticos. Na Bruxaria Tradicional usa-se o mínimo necessário na realização de um feitiço ou durante um dos quatro festivais celtas irlandeses. Logo, nossos altares serão bem mais simples e muitas vezes faremos uso de elementos encontrados na própria natureza. Na cultura celta o mundo era dividido em Terra, Céu e Mar. Estes três reinos são partes da cosmologia da maioria dos povos indo-europeus, e não equivalem aos elementos ‘terra, fogo, ar e água’ do mundo grego helenístico, trazidos até a era moderna pelas tradições mágicas cerimoniais. Por conseguinte, Não existe a representação destes quatro elementos gregos em um altar de bruxaria tradicional irlandesa. Nem tampouco representamos os ‘quatro’ tesouros da Irlanda como sendo substitutos a estes elementos. Tal associação foi feita de forma empírica no final de 1800 pelo influente poeta irlandês W.B. Yeats enquanto membro da Golden Dawn.[v] Na realidade utilizamos apenas elementos relacionados com o simbolismo da festividade a ser comemorada ou que estejam correlacionados as deidades envolvidas.

Depois de escolher todos os itens necessários para o ritual ou celebração a ser realizada, colocamo-las em um altar. Este altar está geralmente voltado para a Irlanda, Terra Natal de nossos deuses; mas pode estar também voltado para direções específicas utilizando a simbologia encontrada na cultura gaélica. O Norte (cath) está ligado basicamente ao orgulho, à batalha e ao conflito; o Sul (séis) à música e aos espíritos; o Leste à prosperidade e à fertilidade; e finalmente o Oeste (fios) ao conhecimento e à sabedoria. Estas serão as direções utilizadas caso estejamos trabalhando, por exemplo, feitiços os quais possuam esta temática.

Trabalhamos todo o tipo de feitiço dependendo do grau de necessidade que determinada situação exija. Na Bruxaria Tradicional, a execução de qualquer ato mágico é fortemente baseada na ética. É ela que determina quais medidas deverão ser tomadas nas diferentes situações em nosso dia-a-dia. Não somos regidos por uma ‘Lei Tríplice’[vi] que nos beneficiará três vezes por determinada ação ou que nos punirá três vezes por qualquer ato mágico mal-intencionado; até mesmo porque, como dito acima, nosso sentimento de ética impede que pratiquemos o mal gratuito. Ela nos dita ‘faça a sua vontade, mas saiba o que faz’. Gozamos do livre arbítrio de tomarmos decisões baseadas em nossa intuição e bom-senso. Conseqüentemente, tomamos responsabilidades por nossas ações; algo que aprendemos desde o início.

O treinamento de um bruxo tradicional leva muitos e muitos anos. A vida poderá ser um dos nossos principais instrutores. Além disso, nossos inimigos também têm muito a nos ensinar. São eles que põem em prova nossa ética, autocontrole, e equilíbrio interno. Os deuses, em meio a estes elementos, também terão um papel importante.

Quando começa o treinamento de um bruxo tradicional? Aqueles que nascem em famílias praticantes de Bruxaria Tradicional Irlandesa passam por um longo período probatório onde são observadas suas aptidões para a prática da bruxaria. Em geral, são estimulados dons como a intuição, a percepção e talvez a clarividência ou clariaudiência. Ao término da adolescência esta mesma pessoa decide se deseja ou não trilhar o Caminho e então é formalmente apresentada a outros membros praticantes da família; quando então, será dado início a um longo período de treinamento.  É claro que nem todos em uma família se sentirão aptos ou inclinados a esta prática. Em algumas gerações poderemos ter um ou dois praticantes, ou até mesmo nenhum! Obviamente a idéia moderna de que o indivíduo se torna um bruxo ao passar por uma iniciação a qual ocorre após um ano e um dia de busca ou autodedicação não se aplica a este caminho. Não existe o conceito ocultista de iniciação na Bruxaria Tradicional, nem tampouco a idéia de graus.  Logo, jamais poderão existir Sacerdotes ou Sacerdotisas neste caminho e muito menos Sumos Sacerdotes ou Suma Sacerdotisas. Bruxos Tradicionais poderão organizar-se em Famílias ou Grupos[vii], mas nunca em Covens ou organizações de estrutura similar.

Por último, é importante enfatizar o fato de que a Bruxaria Tradicional Irlandesa é um caminho que requer constante pesquisa e estudo. Não é um caminho fácil, especialmente para aqueles que não nasceram em famílias de bruxos tradicionais irlandeses, como é o caso de nós, brasileiros. Contudo, nossas práticas são regidas por um espírito de simplicidade inicialmente tão difícil de se atingir, mas ao mesmo tempo tão poderoso e tão completo que após este período inicial, nossa relação com os ancestrais e com os deuses muda para sempre.

 

 

 



[i] No Brasil, “O culto das Bruxas na Europa Ocidental” Ed. Madras.

[ii] Vide Hutton, Ronald Paganism and Polemic: The Debate over the Origins of Modern Pagan Witchcraft
© 2000 Folklore Society in association with the Gale Group and Look Smart;
leia também: Hutton, R. "The Roots of Modern Paganism." In Paganism Today, ed. Graham Harvey and Charlotte Hardman. 3-15. London: Thorsons, 1996; Hutton, R. “The Triumph of the Moon: A History of Modern Pagan Witchcraft”. Oxford: Oxford University Press, 1999.

[iv] Mais informações sobre Dion Fortune em: http://www.wisdomofsolomon.com/DF-bio.html ; http://www.angelfire.com/az/garethknight/aboutdf.html ;

Leia também o livro “A Sacerdotisa do Mar” Ed. Pensamento 1988; Em inglês: The Sea Priestess Ed. Wellingborough 1938: re-edição Aquarian Press, 1989.

 

[v] WB Yeats desenvolveu um profundo interesse pela cultura gaélica irlandesa, e participou intensamente de um movimento chamado de ‘A Revitalização Literária Irlandesa’, durante um período conhecido como ‘A Revitalização Gaélica’ – período este que buscava ressuscitar além da língua irlandesa, a antiga literatura, canção e dança gaélica. Yeats foi o membro fundador da ‘Sociedade Literária Nacional Irlandesa’. E formou o ‘Teatro Literário Irlandês’ com sua amiga Lady Augusta Gregory em 1898. Ambas organizações serviram como veículos para divulgar vários aspectos da cultura irlandesa, como a mitologia e o folclore, não esquecendo, é claro, o nacionalismo irlandês. Em 1903 o ‘Teatro Literário Irlandês’ tornou-se a ‘Sociedade Teatral Nacional Irlandesa’ e finalmente em 1904 mudou-se para o famoso ‘Abbey Theatre’ em Dublin (o qual continuou sendo dirigido por Yeats e Lady Gregory).

 

[vi] Lei Tríplice: trecho do poema Wiccan Rede – O Conselho dos Sábios

http://draknetfree.com/sheathomas/ (excelente site sobre a história do Wiccan Rede!)

http://www.oocities.org/astraeaaradia/harmnone.html (outro site, desta vez resumido)

“Green Egg Magazine” Vol. III. No. 69 (Ostara 1975) (a edição mais famosa de uma das revistas mais marcantes do mundo pagão contemporâneo)

 

 

 

 

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