clique para imprimir este documento
A literatura dos PALOP e a teoria pós-colonial
Russell G. Hamilton
Universidade de Vanderbilt-EUA Ao longo das décadas de oitenta e noventa, nos meios académicos anglo-americanos, e especificamente nas faculdades de letras e ciências sociais, vinha verificando-se um crescente interesse na pós-colonialidade e na teoria pós-colonial. Aliás, nos anos noventa já saíramm só nos Estados Unidos e Inglaterra, pelo menos onze livros sobre o assunto. Um dos mais recentes destes livros intitula-se Contemporary Postcolonial Theory: A Reader (Teoria pós-colonial contemporânea: um livro de leituras), publicado na Inglaterra em 1996. Este volume, organizado por Padmini Mongia, um professor de inglês no Franklin & Marshall, um colégio universitário norte-americano, reúne 19 artigos e ensaios sobre pós-colonialismo e pós-colonialidade. Estes artigos e ensaios são da autoria de estudiosos conceituados, inclusive Edward Said e Kwame Anthony Appiah. Por falar em Edward Said, um professor de literatura na Universidade da Columbia, em Nova York, muitos acham que o seu conhecido livro, Orientalism, publicado em 1979, deu início à teoria pós-colonial. Segundo outros, o primeiro texto a elaborar uma teoria pós-colonial éThe Empire Wrties Back: Theory and Practice in Post-Colonial Literatures (O império responde escrevendo: Teoria e prática nas literaturas pós-coloniais), publicado em 1989 por Bill Asrehcroft, Gareth Griffiths, e Helen Tiffin, Devo explicar que "the empire Writes back" constitui um jogo de palavras sugerido pelo conhecido The Empire Strikes Back: Race and Racism in 70's Britain (1982; O império domina combatendo: raça e racismo na Grã Bretanha nos anos 70). Também convém chamar atenção ao fato de que o já referido Kwame Anthony Appiah é o autor dum estudo fundamental sobre a Africa com referências discernentes. Este livro, publicado originariamente em ingles, foi traduzido para o português por Vera Ribeiro e publicado em 1997 pela Editora Contraponto do Rio de Janeiro. A versão em língua portuguêsa intitula-se Na Casa de Meu Pai: A Africa na Filosofia da Cultura.. O relevo atual do pós-colonialismo deve-se, em grande parte, à controvérsia que a teoria e a sua aplicação vêm gerando entre académicos de diversas proclividades metodológicas e ideológicas. A tal controvérsia faz parte das chamadas guerras culturais lutadas nos campos de batalha de várias teorias pós-modernistas, sejam elas o feminismo, o multi-culturalismo ou os estudos homoeróticos. As polémicas despertadas pelo pós-colonialismo iniciam-se em torno duma falta de concordância de opinião a respeito da própria definição do termo. No seu artigo, "Marginal Returns: The Trouble with Post-Colonial Theory" (um rendimento duvidoso: o mal da teoria pós-colonial), Russell Jacoby, um professor de história na Universidade da California - Los Angeles, assevera que para alguns o pós-colonialismo refere-se àquelas sociedades que surgiram depois da chegada dos colonialistas. Para a maioria esmagadora dos estudiosos, porém, a independência política de determinada colônia dá início ao período pós-colonial. Jacoby também declara que o próprio termo "colonial" é uma espécie de significador flutuante. Segundo alguns estudiosos, tanto colonial como pós-colonial se referem exclusivamente à América Latina, Africa e certas partes da Asia. Por outro lado, alguns estudiosos, uma minoria diria eu, aplicam os dois termos aos territórios dos chamados colonos brancos: isto é, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e mesmo os Estados Unidos. Os autores do já citado The Empire Writes Back acreditam que, com efeito, uns tres quartos do mundo já existiram sob alguma forma de colonização. Mesmo o prefixo "pós-" tem provocado debates sobre o seu sentido intrínsico e à meneira em que modifica "colonial". Um dos estudos mais profundos sobre o assunto é do já referido Kwame Anthony Appiah e tem como título a pergunta: "Is the Post- in Postmodernism the Post- in Postcolonial?" (Será que o pós- do pós-modernismo é o pós- do pós-colonial?) Appiah chega à conclusão que há diferenças fundamentais entre um e o outro. Não obstante estas diferenças, segundo Appiah o pós- dos dois termos significa um "gesto de abrir novos espaços". Além do mais, o pós- do pós-colonialismo, igual ao do pós-modernismo, desafia as narrativas legitimadoras anteriores. Dentro de pouco volto à questão das diferenças. Abro aqui uma parêntese para notar que alguns estudiosos esrevem pós-colonial com traço quando o termo refere-se, cronológica e simplesmente, a "depois" do periodo colonial. Sem traço, póscolonialismo refere-se ou a "por causa do colonialismo", que inclui elementos do colonialismo, ou, à rejeição das instituições impostas pelo antigo regime colonial. Portanto, neste último sentido o póscolonialismo, sem traço, significa anti-colonialismo e anti-neo-colonialismo. Contudo, tanto a teoria como a prática tornam-se bastante complexas. Pois, como demonstra Appiah, quando falamos sobre Africa temos que levar em conta tais fenômenos como o neo-tradicionalismo e o hibridismo. Do mesmo modo convém levar em conta que a expressão cultural africana em geral frequentemente vem a ser mercadoria para consumo internacional. Appiah faz umas observações sobre o que ele designa o "batismo da arte negra como uma estética". Ele assevera que tal batismo «...enquadra-se bem no proceso da cultura expressiva africana a tornar-se mercadoria internacional, isto requerendo, pela lógica do gesto de abrir um novo espaço, o processo de fabricar a alteridade, ou, seja, o Outro.» (69). Tudo isto relaciona-se, mutatis mutandis, à literatura pós-colonial. No âmbito da literatura africana, particularmente o romance, para Appiah e outros a pós-colonialidade significa também um tipo de pós-ótimismo. Sem dúvida alguns dos primeiros romances pós-coloniais, destacando-se A Man of the People (1966; Um homem do povo) do nigeriano Chinua Achebe, não apenas rejeitam o neo-colonialismo, também censuram a classe governante destes novos estados-nações da Africa da pós-independência. O aspecto oposicional e contestatário do pós- na designação pós-colonialismo abrange também o essencialismo racial e étnico, promulgado por tais ideologias como a negritude e o que podemos denominar o neo-nativismo. Há também outras considerações importantes, como as tensões entre as línguas européias e indígenas e, subsequentemente, o transculturalismo e o hibridismo. Appiah, quem nasceu em Gana, filho dum pai do grupo étnico achante e duma màe inglesa, aborda a questão da autenticidade por rejeitar a idéia purista duma cultura africana "unitária" ou genuinamente africana. Vê-se, portanto, que Appiah, como Paul Gilroy, autor de The Black Atlantic: Modernity and Double-Consciousness (1993; O Atlântico negro: modernidade e dupla conciência), e outros conceptualizam o hibridismo como componente inevitável da pós-colonialidade. Se bem que haja muito mais a considerar em torno das complexidades e contradições do teórico, acho que dispomos dum entendimento suficiente da problemática a fim de podermos abordar a questão da literatura dos PALOP no contexto da pós-colonialidade. E´ escusado afirmar que há variedades da pós-colonialidade africana. Embora os PALOP possuam muito em comum com as ex-colônias anglófonas e francófonas, há também algumas diferenças históricas que fazem com que Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, em conjunto e individualmente, tenham umas singularidades marcantes no contexto africano. Uma diferença que tem tido um efeito importante em certas áreas da expressão cultural, e particularmente da expressão literária, é a presença, entre os intelectuais oriundos dos estratos médios dos centros urbanos das então colônias portuguesas, de mestiços e brancos. Com a possível excepção da Africa do Sul e Rodésia austral, hoje Zimbabwe, não havia nenhuma sociedade anglófona com uma intelligentsia multi-racial significante como a que se encontrava em Angola e Moçambique. Por razões tendo que ver com a apartheid, o multi-racialismo da Africa do Sul diferia bastante do de Angola, especialmente, mas também do de Moçambique. A partir dos anos 40, nas duas colônias portuguesas grupos relativamente pequenos, porém significativos, de intelectuais e escritores negros, mestiços e brancos uniam-se sob a bandeira do anti-colonialismo. Quanto às semelhanças entre as então colônias francófonas e as lusófonas, havia certamente a política oficial da assimilação promulgada tanto por Portugal como França. Contudo, ao contrário do que aconteceu em Angola e Moçambique, nos territórios francófonos poucos colonos e filhos de colonos se integraram nas fileiras dos escritores anti-colonialistas. As peculiaridades da história das cinco colônias também têm contribuído à singularidade da expressào literária dos PALOP. Se bem que seja de certo modo uma simplicação, consta-se que mais ou menos durante as tres derradeiras décadas da época colonial era a expressão literária de reivindicação cultural, protesto social e combatividade que vinha preparando a cena nos cinco PALOP para a atual escrita pós-colonial. Naturalmente, os poemas, contos, romances e peças teatrais de reivindicação, protesto social e combatividade opunham-se ao regime colonial. Aliás, há quem afirme que de menor ou maior grau uma obra literária de qualquer sociedade e de qualquer época ou apoia ou contesta o regime vigente. Assim, nos PALOP, seguindo-se á vitória ganha pelos respectivos movimentos de libertação, surgiu uma literatura que celebrava a derrota do regime colonial, proclamava a revolução social e celebrava a (re-)construção nacional. Juntamente com uma expressão literária abertamente circunstancial, na forma de obras patrióticas e nativistas, também começava a aparecer, nos primeiros anos após a independência, uma literatura intimista, experimentalista e reformista. Na categoria da literatura "séria", em contraste às obras politicamente comprometidas, circunstanciais e mesmo panfletárias, verificava-se uma tendéncia entre escritores nacionais a re-escrever e assim re-inventar a Africa e os seus respectivos países, tanto do período pré-colonial como colonial. Surgiam um neo-tradicionalismo e neo-nativismo. Na poesia há vários exemplos de obras de índole épica. Uma das primeiras obras pós-coloniais deste gênero é O Primeiro Livro de Notcha, publicado em 1975, um poema cabo-verdiano ufanisticamente épico, por Timóteo Tio Tiofe, isto sendo o pseudônimo de João Varela. Neste ponto abro uma parêntese para abordar de novo a questão do pós- do pós-modernismo e do pós-colonialismo. O pós-modernismo transcende o modernismo, tanto o científico, racional do iluminismo como, no âmbito literário, o romântico e realista do século dezenove e, no século vinte, o modernismo hispano-americano e brasileiro. Portanto, em termos estéticos o pós-modernismo é uma espécie de vanguardismo. Com respeito ao pós- do pós-colonialismo, penso que temos que levar em conta que o colonialismo, ao contrário do modernimo, traz logo à mente uma carga de significadores e referentes políticos e sócio-economicos. Portanto, os antigos colonizados e os seus descendentes, mesmo com o fim do colonialismo oficial, avançam para o futuro de costas, por assim dizer. Isto é, ao contrário dos pós-modernistas, que carregam o passado nas costas mas que fixam os olhos no futuro, os pos-colonialistas encaram o passado enquanto caminham para o futuro. Quer dizer que por mal e por bem o passado colonial está sempre presente e papável. Está presente na forma da ameaça ou realidade do neo-colonialismo, isto sendo uma dependência econômica com respeito à antiga metrópole e às multi-nacionais. Os des-colonizados ainda tem que viver com a herança indelével do colonialismo. Os cidadãos destas novos países vêem-se obrigados a aceitar instituições sociais e usos culturais impostos pelo colonizador. As próprias fronteiras dos novos estados foram traçadas não pelos povos indígenas e sim pelos europeus durante a chamada corrida para Africa. Uma preocupação, já um assunto de longos debates entre intelectuais e escritores africanos e africanistas em toda parte, é sem dúvida a questão da língua imposta pelos colonizadores. A respeito deste debate no âmbito lusófono, José Luandino Vieira, o exímio escritor angolano, alguns anos depois do fim do colonialismo político defendeu português como a língua oficial do seu país. Luandino declarou que a língua portuguesa era um "trofeu de guerra", pelo qual milhares de angolanos morreram durante a guerra de libertação. E em 1979, Luís Bernardo Honwana, o autor de Nós Matamos o Cçao Tinhoso, a célebre obra moçambicana, depois de proferir uma palestra nos Estados Unidos, na Universidade de Minnesota, respondia a perguntas feitas pelos ouvintes. Uma das perguntas mais provocantes foi: «agora que Moçambique é um país independente, porque vocês não abandonam o idioma do colonizador para falar e escrever na sua própria língua?» Honwana respondeu, calmamente, porém com convicção: «a língua portuguesa é nossa também». A questão das chamadas línguas nacionais e o português como a língua veicular e oficial é complexa e merece ser analisada com cuidado. Por enquanto, limito-me a responder à uma pergunta frequentemente ouvida nos meios acadêmicos: pode haver uma literatura autenticamente africana escrita numa língua não africana? A resposta imediata e simples é sim, pois tal literatura já existe. Aliás, é lícito perguntarmos em que consiste a autenticidade africana e se as línguas de origem europeia implantadas em várias ex-colônias já foram adaptadas à visão do mundo dos habitantes destes novos países. E entre os que responderiam que sim, esta literatura já exustem são escritores como Luandino e Honwana, assim como o anglófono Chinua Achebe e o francófono Sembène Ousmane. No seu conjunto, os fatores linguísticos, políticos, sócio-econômicos e culturais, dão relevo à problemática que gira em torno da teoria pós-colonial. Tornando de novo a nossa atenção à questão da natureza da expressão literária nos quase vinte e cinco anos desde que os cinco PALOP ganharam a independência, faço fincapé na crescente tendência, particularmente entre romancistas, de re-escrever o passado pré-colonial e colonial de cinco sociedades ainda em formação. Entre os romancistas angolanos mais conceituados quem, desde a independência, têm abordado temas históricos sobressaem Henrique Abranches, José Eduardo Agualusa e Pepetela. Um dos mais recentes dos romances históricos angolanos é A Gloriosa Família: O Tempo dos Flamengos da autoria de Pepetela. O autor fez um levantamento cuidadoso dos fatos verídicos em torno da vida em Angola do século 17 de Baltazar Van Dum, um aventureiro flamengo lendário que prestou o seu nome a uma prestigiosa família da nação kimbundu. O aventureiro flamengo é, aliás, um longíquo antepassdo do escritor angolano Domingos Van-Dúnem, entre outros Van-Dúnem bem conceituados na vida cultural, cívica e política de Angola contemporânea. Consta-se, portanto, que A Gloriosa Família afirma uma grande tradição dentro do regionalismo luandense assim como da noção da nacionalidade, ainda embrionária, angolana. Dentro deste imperativo de narrar ou mesmo re-inventar o passado, seja o passado longiquo ou recente, tornando-o válido desde uma perspectiva pós-colonial, há outra tendência notável. Nota-se uma crescente tendência a re-mitificar a história dos cinco PALOP. Alguns dos melhores exemplos desta re-mitificação verificam-se nos romances dos moçambicanos Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa. Ualalapi, o termo tsonga para "aquele que dorme", o primeiro romance de Ba Ka Khosa ostenta, no âmbito das re-mitificações pós-coloniais, elementos estilísticos e temáticos do realismo mágico latino-americano. E Mia Couto, no seu Terra Sonâmbula , re-mitifica, por meio de cenas surrealistas e situações fantasiosas, um episódio da recednte história pós-colonial de Moçambique. Re-escrever e re-mitificar o passado é, de certo modo, uma estratégica estético-ideológica visada a protestar contra as distorções, mistificações e exotismos executados pelos inventores colonialistas da Africa. Além do mais, a re-mitificaçao é componente do neo-tradicionalismo que caracteriza aspectos importantes da condição pós-colonial. Um romance re-mitificador como O Desejo de Kianda, da autoria de Pepetela, vem a ser uma evolução pós-colonial da reivindicação cultural que caracteriza muitas obras de protesto contra o regime colonial. Portanto, o ruir de prédios em Luanda é, metaforicamente, o desmantelamento das estruturas da cidade tipo europeia mais antiga da Africa ao sul do Saara. (Luanda foi estabelecida em 1575.) A vingança de Kianda pode ser vista como uma espécie de reivindicação das velhas tradições do povo kimbundu. Paradoxalmente, atravês de novos discursos literários, o desmantelamento das estruturas e instituições herdadas do colonialismo é também uma maneira estético-ideológica de questionar, se não contestar, os regimes instalados depois da independência política. Esta estratégia faz parte, portanto, do pós-otimismo. Mesmo no período mais Marxista-Leninista na Angola independente, surgiu pelo menos uma obra, escrita por um aderente do governo revolucionário, que orla a sátira social e política. Refiro-me a Quem Me Dera Ser Onda (1982), uma novela cômico-satírica da autoria de Manuel Rui. Apesar de parodiar certas instituições e práticas burocráticas da sociedade socialista em vias de se estabelecer nos bairros de Luanda, Quem Me Dera Ser Onda, foi galardoado com o Prêmio Camarada Presidente. Nesta altura convém referir-me a umas das poucas obras literárias que censuram categoricamente os regimes africanos da pós-independência. Sob o título provocativo de Os Anões e os Mendigos, no seu romance, publicado em Portugal em1984, Manuel dos Santos Lima, um angolano politicamente desafecto, tacha os regimes africanos estabelecidos depois da independência como neo-colonialisados, querendo dizer, portanto, dependentes, econômica e, por consequência, politicamente, das potências dos primeiro e segundo mundos. Santos Lima, ele mesmo um antigo militante anti-colonialista e membro dos Novos Intelectuais de Angola, tem vivido fora do seu país natal por três décadas. O interessante é que não obstante o seu afastamento, tanto geográfico--ele mora atualmente em Portugal--como ideológico, a maioria dos membros da União dos Escritores Angolanos aceita Santos Lima como colega. Um caso sumamente fascinante é o de Sousa Jamba, um angolano, quem com dez anos de idade foi para a Zâmbia, onde viveu entre 1966 e 1976. Nesse mesmo ano Sousa Jamba regressou a Angola, onde trabalhou por dois anos como jornalista nas zonas controladas pela União Nacional da Independência Total de Angola (UNITA). Em 1986 Sousa Jamba ganhou uma bolsa para estudar na Inglaterra. Também tem trabalhado nos Estados Unidos, no Brasil e em Portugal. Ele mora atualmente na Inglaterra, onde escreveu, em ingles, e publicou, em 1990. o seu primeiro romance, intítulado Patriots--em 1991 saiu Patriotas, uma tradução portuguesa. Jamba também escreveu, em inglês, A Lonely Devil, publicado, em 1994, na Inglaterra. A versão em português intítulada Confissão Tropical, saiu em 1995. Este romance do absurdo, cuja ação se passa em Henrique, um país fictício localizado ao sul de São Tomé e ao oeste de Angola, é a história autobiográfica dum cidadão sócio-pático que comete toda ordem de crimes para granjear as simpatias do regime ditatorial de Henrique. Na verdade, Sousa Jamba, como também fez Santos Limas, conseguiu abrir novos espaços linguísticos e contestatórios. O escritor ex-patriado também tem dado um novo toque à expressão culural africana como artigo estético-ideológico e mercadoria. Dentro de pouco volto à problemática da produção literária dos PALOP e à questão da expressão cultural como mercadoria. A esta altura quero frisar que com respeito ao exercício literário de contestar o regime vigente e abrir novos espaços pós-coloniais, a tal estratégia estético-ideológica não se limita àqueles dissidentes vivendo no auto-exílio. Também alguns escritores que ainda moram nos PALOP e que se consideram partidários do regime vigente abrem novos espaços com um discurso e situações que questionam se não abertamente censuram certos aspectos dos processos de construir uma sociedade alicerada no mercado livre e supostamente baseada em preceitos democráticos. Vem logo à mente O Eleito do Sol, o primeiro e até agora único romance do conhecido poeta cabo-verdiano Arménio Vieira. A ação deste romance, publicado em 1989, desenrola no Egito dos tempos dos faraôs. Este romance tragi-cômico lê-se como uma alegoria que satiriza a situação política em Cabo Verde dos tempos pós-coloniais. Outro caso, a meu ver também fascinante, é o de Abdulai Sila, o primeiro romancista pós-colonial da Guiné-Bissau. O que é especialmente irônico é que Mistida, o terceiro romance de Abdulai Sila, saiu em março de 1997, e em junho de 1998 estorou a guerra civil em Bissau que eventualmente resultou no afastamento do presidente João Bernardo "Nino" Vieira. Lido no contexto da situação política da Guiné-Bissau desde 1980, Mistida exige o derrubamento do Presidente Vieira. De acordo com a questão dos novos espaços abertos por escritores pós-coloniais, convém nesta altura considerarmos as múltiplas conotações inerentes no título do romance de Abdulai Sila. "Mistida" é um vocábulo crioulo que deriva-se do verbo "misti", o qual quer dizer "gostar". Apesar da minha familiaridade com a etimologia e disgnação do vocábulo, ao ler o romance fiquei nas dúvidas sobre o que significava "mistida" no contexto estético-ideológico do romance. Portanto, comuniquei com Adbulai Sila via e-mail, pedindo que ele fornecesse uma definição mais detalhada. E ele fez o favor de responder com a seguinte explicação: "'Mistida' significa amor, desejo, ambição, afazer, etc. No entanto deve-se salientar que, ultimamente, este termo tem adquirido outros significados, que não têm nada a ver com a sua origem etimológica, nomeadamente, negócio, compromisso, etc. De facto, o seu significado só pode ser determinado no contexto de uma frase específica, tantos são seus possíveis significandos e/ou sentidos. Deste modo, safar uma mistida (esta é a expressão que se usa) pode significar tanto ir beber um copo de vinho de caju, como concretizar um negócio, participar numa reunião do partido ou ainda fazer amor com uma amante." Esta explicação constitui mais um exemplo do abrir de novos espaços que caracteriza a pós-colonialidade. Naturalmente, no contexto do romance os múltiplos sentidos do termo servem para disfarçar uma intenção anti-governamental por parte do autor implícito. Entre as narrativas que questionam aspectos da atual construção nacional nos PALOP, A Geração da Utopia, de Pepetela certamente qualifica como uma obra-prima no gênero. Ao contrário do caso de Mistida, o título deste romance angolano não apresenta nenhum problema quanto ao seu significado. Por outro lado, talvez sim apresente problemas relativos a mais de um nível de significado. Por via das dúvidas, encontrando-me na companhia de Pepetela durante a minha passagem por Lisboa em dezembro de 1997, atrevi-me a perguntar ao ilustre escritor se o seu título quer dizer "a geração que vem da utopia, que procura a utopia, que é utópica, ou quê?". Pepetela ficou calado, pensando. Finalmente, ele respondeu dizendo que era uma boa pergunta, mas que infelizmente ele não sabia dizer com toda a certeza o que significa. Ele acrescentou, porém, que pode ser que o título abranja todas as possibilidades a que eu tinha aludido na minha pergunta. Ora bem, para quem leu o romance com cuidado, esta resposta faz sentido. O que quero dizer com isso é o seguinte. Os que já leram A Geração da Utopia talvez se lembrem que o romance começa assim: "Portanto, só os ciclos eram eternos". E os leitores atentos de A Geração da Utopia também se lembram que o romance termina com um epílogo não epílogo que diz: "Como é óbvio, não pode existir epílogo nem ponto final para uma estória que começa por portanto". A história da geração da utopia retratada no romance é, metaforicamente, como a história de Angola colonial e pós-colonial. O passado recente, assim como o presente e o futuro da nação angolana constituem um espaço temporal, geográfico, social, político e cultural sem definições restritas. O romance, enfim, é, como a própria pós-colonialidade. Como dizemos em inglés, é open-ended, ou seja, sem encerramento definitivo. Há muito mais que poderíamos abordar relativo às características da obra pós-colonial produzida por escritores angolanos, cabo-verdianos, guineenses, moçambicanos e sào-tomenses. Pois nem falei sobre a poesia experimentalista e até audaciosa produzida depois da independência. LImito-me a concluir com uns breves comentários sobre quem é autenticamente um escritor angolano, cabo-verdiano, guineense, moçambicano ou são-tomense e sobre a literatura africana em português com respeito à sua produção editorial e o seu consumo como mercadoria estético-cultural. Mais uma vez recorro a explicaçoes baseadas nos novos espaços abertos e nos limites sem restrições da condição póscolonial. Nas derradeiras décadas do colonialismo, e particularmente durante o período no qual prevalecia uma literatura de reivindicão cultural, protesto social e combatividade, havia uma exclusividade, baseada, de maior ou menor grau, no grau da consciencialização dum escritor quem se indentificava como angolano, cabo-verdiano, guineense, moçambicano ou são-tomense. Nesta a terceira década da independência, verifica-se, porém, uma crescente inclusividade, tanto com respeito a autores contemporaneos como aos da época colonial. Esta falta de limites restritivos atribui-se ao estado da pós-colonialidade como um processo de abrir novos espaços, de gerar novas estruturas trans-regionais, trans-nacionais trans-linguísticas e, como consequência, trans-culturais. Os espaços geográficos, nacionais e culturais que constituem a comunidade de países de língua portuguesa também definem o conceito controversial e algo aberto, embora afetivo, da lusofonia. Quanto ao consumo das obras literárias produzidas por escritores dos PALOP, se o tempo permitisse eu abordaria tais questòes como índices de alfabetismo, escolaridade e poder de compra nesses países em vias de desenvolvimento econômico. Sabemos, contudo, que muitos dos autores africanos mais lidos conseguem publicar seus livros no exterior, principalmente em Portugal. Caminho e Dom Quixote, em Lisboa, e Campo das Letras, no Porto, são as editoras portuguesas que têm publicado os livros, particularmente romances, de autores como Pepetela, Mia Couto, Arnaldo Santos, José Eduardo Agualusa, Boaventura Cardoso e Germano Almeida, entre outors. A questão editorial levanta uma série de outras questões sobre não apenas o consumo das obras, mas também até que ponto os leitores implícitos estrangeiros exercem uma influência na própria natureza de determinada obra literária dentro do mundo de espaços abertos pela pós-colonialidade. |