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António de Morais Silva - Um gramático inovador1

 
Carlos Costa Assunção
Universidade de Trás-os-Montes
e Alto Douro - Portugal

1. António de Morais Silva nasceu no Rio de Janeiro a 1 de Agosto de 1755 e faleceu em Pernambuco a 11 de Abril de 1824.2 Bacharel em Direito, pela Universidade de Coimbra, seguiu a carreira da Magistratura e, em 20/7/1779, foi acusado por um condiscípulo de ideias deístas e racionalistas, que não negou totalmente. Depois de ter sido condenado pelo Santo Ofício, para evitar a prisão, fugiu para Londres. Aí trabalhou numa « revisão resumida do Dicionário de Bluteau3 », publicado em 1789, em Lisboa, tendo dirigido ainda outras edições deste dicionário que, acrescentado com o Elucidário de Viterbo, acabou por formar o Dicionario da lingua portugueza4. Em 1806, em Pernambuco, foi novamente processado pela Inquisição de Lisboa, por « viver escandalosamente, por comer carne em dias de magro, sem causa legítima, e de , nem ele nem sua mulher e filhos, ouvirem missa, nem a ela mandar os seus escravos, os quais eram forçados a trabalhar em dias de preceito»5. No entanto, o processo acabou por ser arquivado. Em 1817, por ocasião da Revolução Republicana, o povo « nomeou- -o membro do governo provisorio; porem elle recusou tomar parte nos acontecimentos, conservando-se a elles completamente estranho»6.

2. António de Morais Silva é conhecido essencialmente como lexicógrafo e não como gramático. Referenciam-no como gramático José Maria Rodrigues, Otoniel Mota e Brício Cardoso, entre outros.

Herdeira do que mais sadio e válido esplendeu no Iluminismo, a gramática de Morais pode, ainda hoje, ser um dos instrumentos a utilizar para que o ensino/aprendizagem do português, passados quase dois séculos, proporcione a formação necessária ao cidadão para saber ler, escrever e falar com correcção.

Epitome de grammatica da lingua portugueza de Morais7, escrito a nosso ver para professores, pois apresenta uma linguagem bastante densa não direccionada para o ensino/apredizagem de crianças e adolescentes, não tem tido nem por parte dos linguistas da língua portuguesa nem por parte dos lusitanistas a atenção que merece. Seguindo uma orientação purista, defende que se fale e escreva com correcção, bem à maneira de Francisco José Freire, e exemplifica as regras com os bons autores clássicos, citando sempre as fontes, o que revela erudição para o seu tempo : « Não te contentes (...) com as noções elementares deste compêndio; sirvam-te somente de guia para leres os bons autores (...). Deles tirei os exemplos que te propus, neles te exercita. Conversa-os de dia e de noite, porque, se basta o estudo de um ano para saberes meamente um idioma estrangeiro, quando quiseres saber a lingua patria perfeita e elegantemente, deves estudar toda a vida e com muita perfeição os autores clássicos, notando principalmente as analogias peculiares ao genio do nosso idioma. (...). E deste modo poderás imitá-los, não repetindo (...) as suas palavras e frases (...), mas dizendo coisas novas sem barbarismos, sem galicismos, italianismos e anglicismos, como mui vulgarmente se lêem» (p.V) .

Escrita em 1802 e publicada, pela primeira vez, em 1806, em Lisboa, na Off. de Simão Thaddeo Ferreira, a gramática de Morais é uma pedrada no charco das ideias gramaticais rotineiras, ainda muito arreigadas à gramática latina, desenvolvidas pelos gramáticos portugueses setecentistas. Com efeito, Morais, influenciado por Condillac8, que em 1780 condenava fazer-se gramática francesa pela latina, e pela corrente logicista portroialina, corta quase definitivamente a ligação à gramática latina ao afirmar que em português não havia casos latinos e mostra-se muito mais actualizado que Reis Lobato9, primeiro gramático oficial da língua portuguesa. Também não dividiu a gramática como soía fazer-se com base na gramática latina (Etimologia, Sintaxe, Ortografia e Prosódia), nem se limitou a fazer uma descrição/enumeração de items de cada uma dessas partes, e a omitir quase por completo a sintaxe, tendência usual nesse tempo. Charles Bally, mais tarde, em 1912, haveria de tecer críticas contundentes a esta tendência: « Les Grammairiens partent des formes grammaticales; comment ne voit-on combien cette méthode paralyse les études de syntaxe? Quand on y réfléchit, c´est une chose monstrueuse que la description d´un état de langage qui procède par énumération des emplois des modes, des temps, des conjonctions, des prépositions, etc. Cette métothe est le chaos organisé»10.

Com efeito As partes orationis das gramáticas até finais do século dezoito ocupavam parte substancial dos compêndios gramaticais, ficando a sintaxe relegada para um plano secundário. Dos dezoito livros das Institutiones Grammaticae de Prisciano, apenas três são dedicados à sintaxe e os restantes à morfologia; João de Barros conferiu, igualmente, um papel secundário à sintaxe: dezanove páginas à sintaxe e cinquenta à morfologia; os autores da GGR (Port-Royal) ocuparam a sua gramática com oitenta páginas de morfologia e seis de sintaxe; Lobato dedica cento e sessenta e três à morfologia e quarenta e nove à sintaxe; a gramática da RAE apresenta-se com trezentas e quarenta e oito páginas de morfologia e cento e vinte e oito de sintaxe.

A tendência de sobrevalorizar a Morfologia em relação à Sintaxe teve continuidade e, na primeira metade do século XX, encontramos compêndios gramaticais de autores portugueses e brasileiros consagrados, que a omitem quase por completo. Tal comportamento tipifica-o no Brasil Amadeu Torres: «No Brasil, o panorama era idêntico, ainda não há muito. Nas cerca de 630 páginas de texto, a História da língua portuguesa (1957), de Serafim da Silva Neto, dá-nos simplesmente 9 de sintaxe; a Gramática histórica (1938), de Ismael Lima Coutinho, contenta-se com a história, a fonética e a morfologia da nossa língua; M. Said Ali, em Gramática histórica da língua portuguesa (1931), reservou 200 páginas para a fonética e lexicologia, 35 para o estudo da formação de palavras e 96 para a sintaxe, o que pela raridade é de salientar»11.

Morais apresenta uma divisão tripartida da gramática : Ortoépia (que consta na Introdução, ainda que não tenha esta designação, e que se desenvolve apenas em cinco páginas), Das Palavras por si sós, ou partes da Sentença e Sintaxe (Da Composição ou partes da Sentença entre si, ou Syntaxe), correspondendo a cada uma das duas últimas partes um livro. Parece-nos que Morais foi o primeiro gramático do português a interpretar e a desenvolver criticamente o que Apolónio Díscolo, dezoito séculos antes, já compreendia perfeitamente : « assim como com las sílabas, las quales, satisfechas las ordenaciones adecuadas, constituyen la palabra (...) se sigue también que las palabras, que son parte de la oración perfectamente construida, reciben la ordenación coherente, pues el significado subjacente a cada palavra es, en cierta medida, una letra de la oración ; y del mismo modo que las letras dan lugar a las sílabas en virtud de sus combinaciones, así también la ordenación de los significados dará lugar, por así decirlo, a sílabas mediante combinaciones de palabras; más aún, igual que de las sílabas se constituyen las palavras , lo mismo la oración perfecta de la coherencia de los significados»12.

Esta divisão tripartida da gramática é completamente inovadora na tradição gramatical portuguesa e só é retomada oito décadas mais tarde por Epifânio Silva Dias na sua Grammatica Portugueza Elementar13.

Morais recebe influência muito acentuada da Gramática Filosófica da Língua Portuguesa de Bernardo de Lima e Melo Bacelar14 e de Condillac15, influência logicista marcada logo pela definição de gramática : arte, que ensina a declarar bem os nossos pensamentos por meyo de palavras  (p.13). Porém não é nosso objectivo desenvolver aqui esta ligação, trabalho que ficará para outros rasgos.

Na terceira parte faz o melhor estudo de sintaxe que se conhece até ao tempo. Leite de Vasconcelos, que ignora completamente Morais como gramático, referenciando-o apenas como lexicógrafo, no estudo sobre as ideias gramaticais em Portugal16, afirma que a sintaxe «pela primeira vez em Portugal recebeu foros de cidade em livros de aulas »17 com Epifânio Silva Dias : «De muito cedo o Sr. Epiphanio planeou levar mais longe o estudo da gramática portuguesa, e escrever uma Gramática histórica: para isso começou também muito cedo a colher elementos. Colhia, colhia, sem terminar a colheita, principalmente no campo da Fonética e da Morfologia, até que um dia o demovi a só se dedicar à Sintaxe. Assim aconteceu. Pôs em ordem tudo o que possuía, e escreveu a Syntaxe, que chamou histórica. O plano total era muito vasto, e se não se resolve a organizar depressa a Sintaxe, nem Gramática, nem Sintaxe, nada viria a publicar, porque a morte não o consentia. Vanglorio-me, pois, do que fiz».18

Não tinha razão o filólogo português, pois cerca de sete décadas antes já Morais Silva tinha desenvolvido a sintaxe num trabalho muito inovador, pleno de senso crítico para o tempo podendo e devendo considerar-se, a este nível, como o grande percursor de Epifânio. Porém esta falta de interesse pelo estudo da gramática de Morais é generalizada em ambos os lados do Atlântico. Lembremos, a este propósito, que, em 1996, é publicada uma obra sobre as ideias linguísticas portuguesas do séc.XVIII, por um autor brasileiro19, e nem por uma só vez o nome de Morais Silva é referenciado.

Malaca Casteleiro, já no início da década de oitenta, alertou para a necessidade do estudo dos nossos gramáticos : «O estudo dos gramáticos portugueses (salvo uma ou outra excepção) tem sido bastante descurado entre nós, ao contrário do que sucede com os gramáticos das outras línguas românicas, e não só. (...) tal estudo (...) permitir-nos-ia determinar a contribuição portuguesa para a história da gramática, no Ocidente; (...) representaria uma enorme contribuição para a história da língua portuguesa, na época posterior ao século XV; (...) forneceria vários elementos para a história da metodologia do ensino da língua portuguesa; (...) e permitiria redescobrir descrições de aspectos da língua portuguesa, inovadores e fecundos, mesmo em termos de linguística moderna»20. E se hoje já há algum trabalho realizado, muito há ainda por fazer.

2.2.1.

Pela primeira vez, depois de Contador de Argote21 (1721), que fizera um esboço, em cento e cinco páginas, a sintaxe portuguesa mereceu estudo meticuloso.

Sobre a sintaxe, Morais, logo no prólogo Ao Leitor Benevolo, afirma: «Quasi todos os Grammaticos, que tenho visto, engrossão os seus livros com conjugações: as regras da composição, parte tão principal das Grammaticas, reduzem nas a muito poucas. Eu cuido que te expliquei esta parte da Grammatica com assás curiosidade, propondo-te o que nela é mais recondito, e muitos exemplos dos bons autores, que seguramente imites, porque tambem a copia delles te fará cair mais facilmente na intelligencia , e applicação das regras» (p.IV).

No Livro II, Capítulo I, faz uma introdução e começa por salientar que para produzir uma frase correcta é necessária uma boa "composição" (concordância e colocação) das palavras. Entende por frase correcta aquela que transmite o sentido pretendido por quem a enuncia: «Da boa composição das partes da oração entre si resulta a sentença, ou sentido perfeito, com que nos fazemos entender, falando com palavras» ( p. 82).

De acordo com o sentido ou a mensagem a transmitir, afirma que «todas as sentenças se reduzem a declarar o que julgamos das coisas (...) ou aquillo que queremos que as pessoas ou coisas sejão, fação ou sofrão» ( p. 82). Divide a sentença em sujeito, atributo e verbo, divisão tripartida, influenciada pelos logicistas, mas que se atribui já a Aristóteles:

O Sujeito ( de quem se affirma - p. 82) pode ser um adjectivo articular + nome (Este homem virtuoso foi infeliz), um nome + adjectivo atributivo (Este homem virtuoso foi infeliz), um nome + preposição+nome (O templo de Deus é lugar santo) .22

O Atributo «que se declara por» ( p. 83) adjectivos atributivos (Este homem virtuoso foi infeliz) , Preposição + nome (Pedro é sujeito de verdade).

O verbo « affirma e ajunta os atributos aos sujeitos« (p.83) (Tu és amante); «exprime a vontade e mando» ( amante); «significa acção, que se emprega no paciente e termina em alguem» (Dei o livro a Pedro) (V+P+T)

Note-se que o autor faz referência aos verbos copulativos e aos verbos transitivos directos e indirectos, adoptando porém uma terminologia diferente da actual: ao complemento directo chama paciente(P) e ao indirecto termo(T). Embora não considere essenciais, refere também, como modificadores da acção que o verbo significa, os complementos circunstanciais de lugar, tempo, modo, instrumento, fim, etc. A função de modificador também pode ser desempenhada pelos «articulares relativos» (p. 83), que introduzem sentenças que «modificão uma palavra da sentença principal, explicando-a mais» e «determinando-a» (p. 83). Estes articulares relativos conjuntivos são os pronomes relativos, e as orações que eles introduzem (relativas) são «incidentes, que podem ser explicativas ou determinativas» ( p. 84): A virtude, que sempre é respeitável, nem sempre é amada (Incidente explicativa); A casa, que hontem vimos, é minha (Incidente determinativa).

2.2.1.1. « As regras que ensinão a mostrar as connexões entre os nomes e os adjectivos e os verbos, se dizem Syntaxe de Concordancia» ( p. 84), ou seja, a Sintaxe da Concordância será, assim, a parte da Gramática que estabelece as regras da concordância entre as palavras variáveis: nomes, adjectivos (articulares e atributivos) e verbos. Desta forma, os adjectivos concordam com os nomes em género e número: bom(s)homem(s) / mulher(es) honesta(s).

a. os adjectivos, quando uniformes) colocar-se-ão junto dos nomes a quem pertencem
(nobre marido da senhora / marido da nobre senhora);
 
b. o verbo concorda com o sujeito em número e pessoa.

Morais não inclui aqui os pronomes pessoais pelo facto de a uns considerar casos e a outros artigos.

Quando estas regras não são cumpridas, ou ocorre um erro, ou se está perante uma « concordância figurada» (p. 87) a que o autor dedica o capítulo II do segundo livro e de que não nos ocuparemos nesta breve comunicação.

2.2.1.2. «As regras que ensinão a mostrar as relações entre os nomes por meyo de preposições e casos ou da collocação são a Syntaxe da Regência» ( p 87).

A correlação entre nomes faz-se através da colocação tripartida: antes ou depois do verbo, através dos casos, nas línguas em que eles existem, e através de preposições.

1. Colocação antes ou depois do verbo:

a) Se o sujeito é um nome sem caso ( representado por um substantivo e não por um pronome) e o verbo tem paciente ( complemento directo ), antepõe-se o sujeito ao verbo, a que se segue o paciente (S+V+P): (A águia matou a serpente);

b) Mas, quando o sujeito e o paciente são de número diferente, pode-se alterar a ordem porque, concordando o sujeito com o predicado, não é possível gerar-se a ambiguidade (P+S+V)(P+V) (Ambos uma alma anima, ambos sustenta);

c) Quando o verbo pode concordar tanto com o sujeito como com o paciente, resolve-se a ambiguidade juntando ao paciente a preposição a: E não será gran destroço,Pois o amo quer a ama, Que a moça queira a o moço (S+V+P+P);

d) A junção da preposição a ao paciente também se deve fazer quando este se encontra afastado do verbo: Enquanto eu estes canto, e a vós não posso (P. próximo + P. afastado).

2. Casos:

Em Português não se pode falar da existência de casos, mas encontramos reminiscências dos casos latinos nos pronomes pessoais. Morais chama-lhes mesmo casos, através dos quais também se estabelecem relações entre os nomes.

Distingue os casos sem preposição: me, te, se, lhe, nos, vos, lhes, dos casos com preposição: mim, ti, si, migo ,tigo, sigo, nós, vós, nosco (não faz referência à forma vosco, talvez por engano, porque esta forma aparece referida no Livro I).

Quando o paciente é a primeira ou a segunda pessoa diz-se me ou te; se é uma terceira pessoa, diz-se elle/ella antecedido de a ou o (este pronome pessoal é designado como artigo pelo autor). Se se coloca a terceira pessoa em relação consigo mesma, isto é, se ela é o agente e o paciente, dizemos elle (agente) e se (paciente): Matou-me - primeira pessoa - , Matou-te - segunda pessoa - Matou-o/Matou-a, Matou a ele/Matou a ela, Ele matou-se - terceira pessoa.

Quando a oração começa pelo paciente, ou há dois pacientes, também se diz a mim, a ti, a si, etc (com preposição): A mim buscavas?- A ti buscava; Matas a mim e a ti.

Muitas vezes, «por mais energia» (p.92), ou seja, como reforço, juntam-se os casos me e a mim, te e a ti, se e a si, o e a ele: Melhor siso me deu a mim Deus; Quem te vera então a ti tão vanglorioso?; Quem o capacitará a ele?

Sempre que o verbo tem um termo da sua acção (complemento indirecto) e é a primeira ou a segunda pessoa, usa-se me e te; se for a terceira pessoa, usa-se lhe e se ou a ele/a ela: (V+T+P) Deu-me o livro; Deu-te o livro; Deu-se mil tratos; Deu-lhe mil tratos; A quem o deste? A ele mesmo.

Quando a sentença começa pelo termo ou há dois termos, usa-se a mim, a ti, a ele, a nós, a vós, a eles, a si, com preposição: A quem o darei? A ti ou a ele?; A ti peço, ó bom Deus! (T+P+V).

Tal como acontece com o paciente, também nos termos se repetem os casos com e sem preposição (me e a mim, lhe e a ele, etc), para reforço: Se ele me quizera a mim como eu lhe quero (S+T+V+T).

Quando se invoca, exorta ou chama alguém ou alguma coisa, o verbo vem no imperativo (mandativo) ou no conjuntivo. Assim, o «objecto invocado» (p. 93), cuja função corresponde ao actual vocativo, não se confunde com o sujeito, o paciente ou o termo, independentemente do lugar que ocupa na frase: Meu Deus, valei-me (objecto invocado, vocativo + imperativo).

3. Preposições.

As relações entre os nomes sem casos estabelecem-se, muitas vezes, como já vimos, pela sua colocação na frase. No entanto, os conectores principais dessas relações são as preposições, até porque elas são, muitas vezes, pedidas pelos próprios verbos: «As relações diversas das apontadas, em que representamos os nomes sem casos, indicão-se pelas preposições (...)» (p.94). E são as seguintes preposições que Morais apresenta: a, ante, perante, após, até, com, contra, de, desde, em, entre, para, por, sem, sob, sobre.

Sobre cada uma, o gramático explica os seus diversos significados e emprego, ilustrando-as com exemplos.

Por exemplo, relativamente à preposição a, diz: « a indica o paciente; e o termo da acção; o lugar para onde algua coisa se move; que outra está proxima; v.g. mora ao arco da Graça; o modo porque algua coisa se faz; v.g. à pressa; ir a cavallo; suspirar a medo; estar a tento; (...) o tempo em que aconteceu; v.g. á noite, aos três dias (...); o preço; v.g. vende-se a vinte; o lugar ocupado; v.g. estar á janela: o instrumento; morto a ferro; o fim; sai a ver; a causa; morto á fome; a proximidade do termo; v.g. está a partir; o acto mesmo; v.g. ao sair da porta» ( p. 94).

3. António de Moraes Silva foi o primeiro gramático a reflectir mais e melhor sobre a sintaxe. Desta breve exposição, parece-nos ser possível afirmar que Morais dedica especial atenção à sintaxe da regência, e, dentro desta, a maior reflexão é feita sobre o uso das preposições e da regência verbal, que não desenvolvemos. Em relação às primeiras, o autor faz uma análise detalhada atendendo aos seus valores e empregos muito específicos. Consideramos que, apesar de algumas disparidades, relativamente à sintaxe actual, ou a algumas das tendências da sintaxe actual, esta gramática ainda é uma obra de referência obrigatória e esperamos que alguém se abalance a ela numa tese de doutoramento, pois pelos raros passos que apresenta, pelo arejamento cultural que a enforma, pela autoridade intelectual do autor, bem merece ser tirada do ostracismo a que tem sido votada pelos linguistas de ambas as margens do Atlântico. A história da língua portuguesa, em geral, e a gramatologia, em particular, muito beneficiariam com o estudo da gramática de Morais. E se, em alguns casos, há omissões e até erros, outros há, em que a importância dada ao pormenor e o recurso a muitos e variados exemplos motivam, ainda hoje, uma reflexão que conduz à problematização de muitas das práticas gramaticais dos ensinos secundário e universitário.


Notas

1. Declaro que a minha participação neste Congresso foi patrocinada pelo Instituto Camões e FCT, através do programa Lusitânia.

2. Cfr. Francisco Innocencio da Silva, Diccionario Bibliographico Portuguezestudos de Innocencio Francisco da Siva, applicaveis a Portugal e ao Brasil, Lisboa, Imp. Nac. Casa da Moeda, 1863, Tomo I, p. 209-210. Dados recolhidos em vários documentos não são confirmados por Inocêncio Francisco da Silva, que aponta, como data provável de nascimento, 1756 a 1758 (estas datas são também referidas por Rodrigo de Sá Nogueira, Cfr. Questões de língua portuguesa, Lisboa, Liv. Clássica Editora, 1942, p. 202), embora refira a existência de registos que apontam para 1777. Esta data é também contestada por Inocêncio, pois « se assim fosse, teria doze annos d'edade quando, em 1789, publicou pela primeira vez o seu Diccionario».

3. Cfr. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Lisboa/Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia Lda, s/d., Vol.XVII, p. 827-827.

4. A propósito da 10º edição, revista, corrigida, muito aumentada e actualizada por Augusto Moreno, Cardoso Júnior e José Pedro Machado, Harri Meier tece crítica contundente a este Dicionário, dizendo que « salta à vista a precipitação, a superficialidade, a falta de um critério filológico seguro (...)», que apresenta muitas gralhas e lapsos, que « certas etimologias se podem confirmar facilmente, e outras não resistem ao mais leve exame crítico»(Cfr. Harri Meier, "O dicionário de Morais", Boletim de Filologia, Tomo IX, fascículo IV (Lisboa, 1948), 396-397). Parece sobressair a ideia de que o Dicionário original, ao ser corrigido e aumentado, terá sofrido erros que não devem, portanto, ser atribuídos ao autor, pois este é referido, por Meier, como um « grande lexicógrafo luso-brasileiro», cuja autoria continua a ser aproveitada por motivos «editoriais e comerciais». Para J. de Sá Nunes, « o que há de mais notável no dicionário de Morais são as citações clássicas, que dão luz a várias acepções de termos, especialmente dos verbos» e para Camilo Castelo Branco, «entre nós há apenas um lexicólogo que deve consultar-se: é o Morais»(Cfr. Verbo Encicliopédia Luso-Brasileira da Cultura, Lisboa, Ed. Verbo, s/d, Vol. XIII, p.1322-1323).

5. Cfr. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Lisboa/Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia Lda, s/d., Vol.XVII, p.827-827.

6. Cfr. Francisco Innocencio da Silva, Op. Cit., p.209-210.

7. Antonio de Morais Silva, Epitome de grammatica da lingua portugueza, Lisboa, Off. de Simão Thadeo Ferreira, 1806.

8. Étienne Bonnot de Condillac,Oeuvres philosophiques - Cours d´études pour l´instruction du Prince de Parme, texte établi et présenté par Georges Le Roy, Paris, PUF, I, 1947.

9. Antonio Jose dos Reis Lobato, Arte da Grammatica da lingua portugueza. – composta e offerecida ao II.mo sr. Sebastião Jose de Carvalho e Melo, Marquez de Pombal, etc., Lisboa, Reg. Off. Imp., 1770, 1ª edição.

10. Cfr. Germanisch-romanische Monatsschrift, Leipzig, 1912, Vol. IV, p. 605.

11. Cfr. Amadeu Torres, Gramática e Linguística – Ensaios e Outros Estudos, Braga, Centro de Estudos Linguísticos da Fac. Fil. da UCP, 1998, p.166.

12. Cfr. Apolónio Díscolo, Sintaxis, introdução, tradução e notas por Vicente Bécares Botas, Madrid, Gredos, 1987, p. 73-74.

13. Augusto Epiphanio da Silva Dias, Grammatica Portugueza Elementar – Obra approvada pela Junta Consultiva de InstrucçãoPublica, Porto, Liv. Universal, 1881, 4ª ed., revista.

14. Cfr. Bernardo de Lima e Melo Bacelar, Grammatica philosophica e orthographia racional da lingua portugueza, para se pronunciarem e escreverem com acerto os vocabulos d'este idioma, Lisboa, Off. de Simão Thadeo Ferreira, 1783, 8º, de 196 páginas. Esta obra foi reeditada em 1996, em Lisboa, pela Academia Portuguesa da História, com introdução e notas de Amadeu Torres. Nas págs. 6/7 (52/53) Bacelar define deste modo a gramática: «he hum´a colecção de Leis, com que arrazoadamente fabricamos e dispomos os sons, que communicão aos outros os nossos conceitos».

15. Cfr. Étienne Bonnot de Condillac, op.cit, p. 421: « Qu´est-ce que la grammaire? C´est un système de mots qui représente le système des idées dans l´esprit, lorsque nous les voulons communiquer dans l´ordre et avec les rapports que nous apercevons».

16. Cfr. Leite de Vasconcelos, Opúsculos, Coimbra , Imprensa da Universidade, 1929, vol. IV, p. 885-888.

17. Id. Ibidem.

18. Cfr. Augusto Epifânio da Silva Dias, Sintaxe histórica portuguesa, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1970, 5ªed. , p.375-376.

19. Leonor Lopes Fávero, As concepções lingüísticas no século XVIII – a gramática portuguesa, Campinas, Editora da Unicamp, 1996.

20. Cfr. João Malaca Casteleiro, "A doutrina gramatical de Jerónimo Soares Barbosa", Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, Classe de Letras , 21, (Lisboa, 1980) 197.

21. Jeronymo Contador de Argote, Regras da Lingua Portugueza, Espelho da Lingua Latina, ou disposição para facilitar o ensino da lingua Latina pelas regras da Portugueza, Lisboa, Officina da Musica, 1725, 2ª Impressão.

22. A partir desta frase e até ao final do texto os itálicos são do autor e os sublinhados utilizados no corpo do texto são nossos.