Crise e Autogestão

Négation  #3, 1973 

Este texto, traduzido pelo Grupo Autonomia, é o terceiro capítulo de “LIP and the Self-Managed Counter-Revolution”, publicado originalmente em 1973, pelo jornal francês Négation (com o título "Lip et la contre-révolution auto-gestionnaire"). Em 1975, Foi publicado como panfleto, em inglês, por Black & Red (Detroit, EUA), e posteriormente disponibilizado na internet por For Communism – John Gray Website, no endereço http://www.oocities.org/~johngray/lip.htm

 Crise e Autogestão

Este é o caminho a tomar:

Primeiro, motivar mais os trabalhadores. Isto é, não permitir nove horas de trabalho seguidas sem uma assembléia para que cada trabalhador entenda o que está acontecendo na empresa como um todo, para onde ela vai, qual o motivo do trabalho e o que significa para a sociedade.

Depois, será necessário que a sociedade responda às aspirações dos trabalhadores... Talvez algumas pessoas assumam responsabilidades, talvez as responsabilidades sejam rotativas. Quando alguém assume responsabilidades, algo acontece; ele aprende a aceitar muitas outras coisas; se ele entende o motivo, então ele pode muito bem aceitar muitas outras coisas.

- Charles Piaget, Lip Interview

 

1. A Comunidade Operária e a Comunidade Humana

Além da autogestão, muito se falou sobre a Lip: calor humano, a redescoberta da alegria de viver etc. E não somente nas grandes assembléias e marchas de solidariedade, mas também dentro da própria empresa. Estas idéias aparecem repetidamente nas entrevistas com os “Lips”: finalmente nós nos conhecemos; todos foram capazes de se exprimir... Inclusive, muitos daqueles que reconheceram os limites da luta se deixaram levar pelo clima de carnaval do início.  Eles acreditaram que algo daquela atmosfera seria mantida e que a forma de luta dos “Lips” tinha uma “dinâmica” toda própria, independente do seu limitado conteúdo.

Na verdade, o caráter arcaico do processo produtivo da Lip Watch Co. não somente não impediu os trabalhadores de querer salvaguardar a empresa por todos os meios possíveis, mas permitiu formar um grupo homogêneo confrontando um inimigo personificado: seu patrão. Quando o patrão faliu e desapareceu devido ao caráter não-competitivo de seu Capital, os operários se encontraram com suas ferramentas e seu processo de produção negados e parados. A condição pela qual eles recomeçaram o processo de produção por conta própria só poderia ser sustentada pelo entusiasmo que afirmou um novo sentido de comunidade.

Todo colapso de uma comunidade, cedo ou tarde, leva à formação de uma nova comunidade que, no início, provoca entusiasmo. Mas, para os trabalhadores da Lip Watch Co., a ruptura com a comunidade anterior foi profunda não só porque, como proletários, eles foram privados dos meios de subsistência (o que foi a origem do novo sentido de comunidade) mas especialmente porque eles poderiam utilizar mais uma vez os objetos e gestos dos quais tinham sido privados. A reformação da comunidade da Lip como coletivo capitalista, com base no desaparecimento do constrangimento “exterior” dos chefes, diretores etc., deve ter repentinamente suscitado um tremendo entusiasmo.

Sobretudo, podemos diretamente comparar esse tipo de associação com a formação de cooperativas de trabalhadores no século XIX e, mais recentemente, as inúmeras comunidades de trabalho que surgiram na França no fim da II guerra mundial. De fato, mesmo neste nível mais simples, há diferenças fundamentais, mas, antes de considerá-las, é necessário entender os pontos de semelhança e a origem deles.

As comunidades de trabalho que surgiram da guerra se desenvolveram em áreas onde foi grande a destruição das forças produtivas, e nos setores de produção nos quais havia inicialmente pouco Capital constante. De um modo geral, o renascimento dessas comunidades numa forma que as aproxima das cooperativas de trabalhadores se tornou possível pelo rejuvenescimento do Capital operante durante a guerra, combinado com o caráter geralmente arcaico do capitalismo francês como um todo. Proclamando salários iguais e igualdade na gestão, os poucos indivíduos envolvidos nessas novas unidades produtivas evidentemente acreditaram com total sinceridade que estavam fundando empresas socialistas à maneira do movimento operário do século XIX! Um bom exemplo disto é fornecido pela comunidade de trabalho Boimondau (fabricantes de caixas de relógio Dauphine) em Valence e no Drôme.

Essa comunidade foi fundada por socialistas cristãos, anarco-sindicalistas e outros militantes socialistas que se conheceram na Resistência em Vercours (as regiões de Drôme e Ardéche testemunharam uma enorme destruição de homens e materiais devido a sua importante célula da Resistência).  Isto envolveu uma fábrica de relógios, em cujo entorno uma cidade residencial foi construída para a instalação desse minicapitalista coletivo e suas famílias. O agrupamento de fábrica-habitações recebeu o sugestivo nome de Cidade Relógio. Assembléias gerais eram freqüentemente organizadas para a tomada de decisões coletivas sobre tudo o que acontecia, tanto na empresa quanto nos horários de lazer; por exemplo, tentou-se estabelecer a “liberdade sexual” por decreto.

De modo semelhante, na nova Lip havia uma tendência a criar uma vida comunal organizada em torno da empresa: encontros, piqueniques e festivais foram organizados, ao que parece, quase diariamente.

Mas aqui a comparação termina. Se, em Boimondau, houve inicialmente uma igualdade real de salários; na Lip, a manutenção da hierarquia de salários foi uma necessidade imperativa na criação do capitalista coletivo.  Em Boimondau, o quadro de re-acumulação geral  do capitalismo francês permitiu que a comunidade de trabalhadores se formasse numa relativa “pureza”. No entanto, a impossibilidade de reprodução capitalista na Lip permitiria ao coletivo da Lip existir somente como uma comunidade de trabalhadores “bastarda” [1]. Boimondau foi um produto da destruição das forças de produção. A Lip foi criada por seu desenvolvimento contraditório. Na Lip, não nasceu uma nova empresa. Ou melhor, a antiga foi salva por um tipo de modernização.

Roccard declara, para justificar esse tipo de gestão, que centenas de comunidades de trabalho foram criadas só depois da guerra [2]: inutilmente, alguns sociólogos exumaram a experiência de Boimondau [3]. Hoje, porém, a idéia de que a mercadoria força de trabalho assuma o controle sobre sua própria situação tem um significado completamente diferente.

Pelas mesmas razões, outra diferença fundamental apareceu: além de organizações e grupos de militantes de fora, aos trabalhadores da Lip se juntou muita gente da seção Palente da Besangon e de outras partes da França.

A concentração em Palente teve duas origens complementares: sendo a sociedade francesa capitalista, a sobrevivência da Lip era um imperativo vital para a cidade e a região circundante. Além disso, essa comunidade material só poderia se desenvolver em contradição com suas próprias bases; não podia mais organizar, na sua forma usual, a totalidade dos seres humanos que ela pretendia incluir em si (por exemplo, comunas hippies etc.). Aqueles que não se separavam das “comunidades marginais” foram sujeitos ao movimento contraditório envolvido na decomposição das relações sociais: conseqüentemente, o desenvolvimento da “delinqüência”. A instabilidade da comunidade material do capitalismo [4], origem profunda de sua característica intolerável, torna atraente qualquer tipo de ruptura, mesmo a efetuada pela base reacionária do trabalho assalariado e da apropriação do produto para a venda no mercado pelo próprio produtor, como foi o caso da Lip.

As violentas batalhas que ocorreram, com a ocupação da fábrica pela CRS [guarda nacional] podem ser consideradas como uma espécie de efusão – não uma expressão de solidariedade em defesa da fábrica em si (aqueles que foram presos disseram que “tinham compreendido” ou “se divertido”), mas a expressão violenta de um desejo de tomar parte na ruptura quando a ocasião se apresentasse [5]. Não foi por acaso que muitos dos sentenciados tinham “antecedentes”. Além do mais, tais eventos ocorreram mais ou menos regularmente por muitos anos sempre que as condições para uma rebelião ou uma perturbação menor surgiram. Esta é a origem e o conteúdo, aparentemente inexplicável, da violência classificada como “hooligan” – de sua profundidade e limitação.

Com efeito, ao contrário dos operários da Lip, a massa de proletários que gasta sua força de trabalho em processos de produção especificamente capitalistas é tão intercambiável que a sobrevivência dessa ou daquela empresa não a preocupa. Assim, como vítimas anônimas do aumento da composição orgânica do Capital, eles se encontram desempregados (muitas vezes para o jovem, isto significa que não há possibilidade de entrar no processo produtivo global), eles não sentem a compulsão de se organizar contra um antagonista específico [6]. O inimigo que os marginalizou não é nenhum capitalista em particular, mas a sociedade capitalista como um todo, que eles percebem de modo mais ou menos confuso.

Sem uma crise generalizada, a rejeição da força de trabalho nada mais é do que uma das necessidades de reprodução para o capitalismo global. Esses proletários formam um exército industrial de reserva necessário à expansão geral do capitalismo, posto que exerce uma pressão que mantém reduzidos os salários. Porém, a diferença fundamental entre o exército de desempregados do século XIX e o atual é que o último pode se concentrar nas metrópoles capitalistas mais desenvolvidas como comunidades relativamente estáveis de desempregados vitalícios, limitadas em tamanho e extensão na medida em que as forças produtivas se desenvolveram respectivamente às relações de produção. Assim, nos últimos trinta anos, nos EUA, se desenvolveram guetos de proletários negros que expressaram, em rebeliões como a de 1965, sua necessidade de comunidade humana. Mas tais revoltas alcançaram imediatamente seu limite e foram controladas mediante a impossibilidade, naquele período de expansão geral, de atacar o coração do capitalismo: as relações de produção.

No entanto, na ausência de uma crise geral, a debilidade daqueles que são temporariamente incluídos bem como daqueles que são permanentemente excluídos se torna uma força potencialmente revolucionária quando a crise abrange a totalidade da sociedade – ou seja, quando o movimento de desvalorização prevalece sobre o movimento de valorização e o modo de produção capitalista é forçado a revelar sua ruína.

Devido a crise geral ter em sua raiz a natureza do capitalismo que consiste na acumulação por empresas autônomas, o proletariado pode se constituir enquanto classe somente se ultrapassa a empresa (e não mais como grupos dentro da empresa) para criar um modo de produção unificado liberto do desvio entre produção e consumo, desvio que é o valor de troca e que revela seu absurdo durante a crise.

A massa proletária, indiferenciada por seu trabalho, que incorpora rotineiramente essa “classe dentro da sociedade burguesa que ao mesmo tempo não é uma classe da sociedade burguesa”, na crise encontra-se constrangida a romper o último vínculo e não pode mais se reproduzir como uma categoria do Capital. Essa classe em si tende a se organizar como partido histórico, que afirma seu futuro na comunidade humana; essa classe não tem “futuro”, exceto na sua auto-supressão. A formação da comunidade humana é o resultado do desenvolvimento das forças produtivas pela comunidade do Capital e é a única superação historicamente possível da comunidade do Capital. Integrando esse desenvolvimento pelo qual transforma radicalmente o trabalho, a comunidade humana destrói de modo positivo a ideologia do trabalho, que o capitalismo tornou algo negativo: o tempo de trabalho finalmente desaparece como única medida da riqueza social em benefício do “tempo livre”.

Na realidade, o comunismo suprime a divisão entre tempo de trabalho e tempo de lazer fundindo toda atividade numa atividade necessária para a produção e reprodução da humanidade; a fusão resultante portanto não seria realizada com base no trabalho dos homens alienados em cidadãos-produtores, como no caso da comunidade de trabalhadores. Assim, a produção temporizada [timed] dos produtores de tempo que foi a Lip Watch Co é duplamente negada juntamente com o dinheiro.

Mas se a organização do proletariado, como classe para si que se dirige para a construção da comunidade humana, tende a ser simultaneamente um produto do desenvolvimento global do capitalismo assim como um produto da incapacidade do Capital de se reproduzir, o resultado não é automático nem inevitável.

 

“Deixe-nos reconstruir a EMPRESA por meio da autogestão e não a destruam...”

- Serge Mallet, La nouvelle classe ouvrière

 

“O socialismo consiste inteiramente na negação revolucionária da EMPRESA capitalista, e não em garantir a empresa para os trabalhadores da fábrica.”

- Amadeo Bordiga, Propriété et Capital

 

2. A Contra-revolução Autogerida

Na sociedade capitalista, revolução e contra-revolução são inseparáveis, ainda que radicalmente antagônicas. Ambas estão juntas no movimento contraditório que é indispensável à reprodução do Capital e que ao mesmo tempo freia essa reprodução. A crise, que é simultaneamente a explosão da contradição e o início de sua resolução, implica assim a contínua emergência da revolução e da contra-revolução.

As duas são levadas adiante pelo movimento dominante de desvalorização: a contra-revolução, porque essa importante desvalorização é então necessária para a posterior revalorização; a revolução, porque essa desvalorização expande sua decrepitude.

Portanto, enquanto a revolução deve impedir qualquer revalorização posterior, a contra-revolução deve antes de tudo comandar a desvalorização com a esperança de racionalizar as contradições. Porém, dada a profundidade das contradições presentes, a contra-revolução só pode desenvolver uma perspectiva de solução capitalista: a destruição massiva das forças produtivas.

Esse desenvolvimento implica assim que o movimento revolucionário pode ser inibido e as revoltas esporádicas podem não atingir seus objetivos e ser esmagadas (considere a repressão dessas revoltas em países pouco ou subdesenvolvidos que já sofreram os primeiros golpes violentos da crise: Grécia, Índia, Etiópia, Bolívia etc.).

No nível mais imediato de atividade e consciência proletárias, revolução e contra-revolução refletem a impossibilidade de reproduzir a comunidade capitalista que, em escala global, desorganizou a vida dos proletários desorientados. A dissolução da forma de consciência correspondente às condições materiais em estado de autodestruição implica a formação de uma nova consciência que reflita as novas condições.

Para o proletariado, nas ambíguas crises do capitalismo, a dissolução de uma consciência vinculada pela ideologia à autovalorização do Capital se traduz imediatamente na emergência de uma consciência de ser a classe sem reservas, possuindo somente a sua força de trabalho.

Forçado a ser cauteloso para reproduzir seus meios de existência perdidos – ou a reproduzir um padrão mais baixo pela brutal queda nos salários reais – o proletariado vê, na situação que enfrenta, a possibilidade de dois tipos de respostas:

1) uma tendência espontânea para personificar o movimento histórico das forças produtivas que assinala a obsolescência do modo de produção capitalista e exige uma organização comunal com uma base humana;

2) uma tendência a localizar a origem de todos esses males em fenômenos capitalistas secundários que mascara as raízes da contradição e obstaculizam o movimento histórico. [7]

Nasceu um anticapitalismo superficial que alimenta várias ideologias e que a dissolução da consciência anterior ajuda a desenvolver. Essas ideologias compartilham um desejo comum de resolver a crise para o proletariado impedindo a revolução proletária e defendendo uma miscelânea de medidas reacionárias e reformistas. Elas refletem uma tendência para a reforma comunitária na estreita base do prolongamento do capitalismo.

Assim, as respostas fascistas e democráticas (frente popular) para a crise de 1929-30 implicaram uma defesa sem precedentes do trabalho assalariado justamente no momento em que o trabalho assalariado estava num processo de autodestruição. Isso se tornou possível mediante a destruição do movimento revolucionário.

Se o proletariado é a classe da consciência, a dissolução de sua comunidade alienada não resultará ou implicará automaticamente o surgimento de um novo modo de produção. Ao contrário das classes revolucionárias anteriores, o proletariado não é sustentado pela força irresistível do valor, que ele deve destruir. Para realizar esta obra, ele tem apenas sua humanidade.

Daí a importância da teoria revolucionária no movimento comunista. “Classe da consciência” não significa que “a revolução ocorre primeiramente na cabeça”, como vários acadêmicos e outros modernistas pretendem. Eles apenas refletem a tendência do capitalismo para suprimir toda forma de atividade e existência social para uma crescente porção de seus escravos. A “importância da teoria” não significa que o proletariado é forçado a se tornar consciente, como todos os tipos de militantes pedagogos tentam fazer (por exemplo, dizendo aos operários da Lip que eles podem e devem transcender sua prática) [8]. Muito simplesmente, a teoria comunista, inerente ao movimento contraditório do Capital, tenderá a ser produzida numa escala mais espontânea e ampla do que atualmente, no nível das medidas revolucionárias práticas a serem tomadas.

Hoje, como a tradicional figura do capitalista empreendedor tende a desaparecer completamente, a profundidade da crise é indicada pelo fato de que, em alguns países, a autogestão está se tornando uma força contra-revolucionária plausível. Sem dúvida, ela é apenas um dos componentes da contra-revolução e provavelmente coexistirá com ou se oporá a outras formas, mas é possível delinear a função prática da autogestão que já se evidencia no caráter e conteúdo da crise. Se a profundidade da crise determina a extensão em que a força de trabalho é abandonada a si mesma, então a autogestão (quer dizer, a reorganização da crise da sociedade capitalista) só pode se desenvolver nos países industrializados nos quais a composição orgânica do Capital não é muito alta, especialmente na França e na Itália. A crise é, por definição, uma falta de lucros. Nesses países, a proporção de Capital variável ainda é grande suficiente para que, num período inicial, seja possível lutar contra o desaparecimento dos lucros mediante uma radical redução do valor da força de trabalho. É certo que isso também seria feito em países com uma composição orgânica do Capital muito alta, mas com a diferença de que o papel do trabalho vivo, sendo relativamente pequeno naqueles países, não exigiria um tipo de organização social especialmente adaptada a esse objetivo. Naqueles países – principalmente os EUA -, a lógica do superlucro já está incluída no próprio lucro.

A autogestão é uma maneira de fazer a força de trabalho controlar a contradição entre valorização e desvalorização, porque toda a sociedade deve então ser organizada para baixar o valor dessa mercadoria viva, o trabalho. Trata-se de a população assumir as atividades anteriormente efetuadas pelo Capital e que, conseqüentemente, aumentavam os custos com a manutenção da força de trabalho. Já podemos ver parcialmente o conteúdo desse tipo de autogestão em diversas redes paralelas de sobrevivência formadas em anos recentes (escolas paralelas, creches não-oficiais, clínicas, cooperativas de alimentos etc.). É significativo que, com o início da crise, os meios de comunicação de massa começaram a divulgar algumas dessas experiências.

No nível da empresa, a autogestão se desenvolve inicialmente nos setores nos quais a reduzida taxa de lucro não pode ser compensada pelo aumento da produtividade via um aumento da composição técnica do Capital, visto que a crise é, precisamente, a falta do Capital necessário para tais investimentos. Porém, um aumento na produtividade pode ser obtido mediante uma maior sujeição da força de trabalho ao processo de produção: eliminando várias formas de resistência proletária à dominação real do Capital (absenteísmo, sabotagem) é possível aumentar a velocidade e intensidade do processo de trabalho. Várias tentativas de “enriquecimento do trabalho” e especialmente a organização de grupos de trabalho autônomos (Donelly, General Food, Volvo...) caem nessa tendência, visto que resultam das dificuldades do capitalismo com a valorização desde o final da década de 1960; continuam sendo, no entanto, experiências muito limitadas na medida em que o capitalismo ainda deve reproduzi-los numa escala global.

O aprofundamento da crise, pelo surgimento do tema da autogestão, vai generalizar e expandir essas experiências, às quais deve ser dada uma estrutura adequada [9]. Desta perspectiva, novos lucros serão obtidos do aumento da produtividade e do declínio dos custos improdutivos, já que a autogestão, como o nome implica, consiste em transferir parte das tarefas de gestão do Capital à própria força de trabalho.

Assim, na empresa, a função inerente da autogestão não é reduzir o valor da força de trabalho, mas ser a estrutura adequada, a forma na qual a força de trabalho é militarizada e adaptada a esse tipo de racionalização da produção.

Nesse hipotético desenvolvimento que é a vitória, ainda que momentânea, da contra-revolução, a autogestão ata os trabalhadores à empresa; ela mantém o vínculo que é essencial à fábrica social, enquanto, ao mesmo tempo, realiza um movimento que transcende a empresa – um movimento que transforma a sociedade numa comunidade de pobreza. A autogestão concentrada será a resposta contra-revolucionária para a transcendência potencial da empresa por trabalhadores intercambiáveis cuja autogestão amarra e agrupa dentro do estado popular, nacional. Com efeito, se a autogestão tem como terreno escolhido os países industrializados com uma baixa composição orgânica do Capital, isso não é somente resultado da estrutura produtiva desses países mas é igualmente determinado pelo nível da economia mundial. Áreas com uma composição orgânica do Capital muito alta sempre têm mais dificuldades em encontrar os lucros necessários para a reprodução do Capital, mas sua maior composição orgânica lhes permite tirar vantagem da transferência de valor na troca com áreas menos desenvolvidas (troca desigual). Este aumento do valor constitui os superlucros que são cada vez mais necessários e que se devem ao fato de que a mercadoria vendida contém menos trabalho do que aquela pela qual é trocada. Mas para que essa transferência funcione, é necessário que cada país de alta composição orgânica aumente constantemente a sua área, o que explica por que os países mais desenvolvidos são sempre forçados à livre troca.

Como a necessidade de lucros excessivos aumenta numa situação de crise, os países de alta composição orgânica do Capital procurarão forçar os outros países à entrar em sua zona de troca. Mas numa situação de crise mundial, estes outros países estarão menos dispostos do que nunca para tolerar a fuga do valor, e tentarão se defender disso organizando sua autarquia. A autogestão terá um papel na organização dessa autarquia e na militarização geral da população contra os países superdesenvolvidos, que então serão definidos como inimigos. (Este antagonismo pode ser visto entre a França e os EUA).

Desse modo, a autogestão poderia se tornar um mecanismo de guerra para esses países de frágil posição econômica, um mecanismo da terceira guerra mundial que esse conflito de interesses pode provocar.

Assim, o tipo de militarização do trabalho e de organização territorial que a autogestão representa como sua base, se estenderia naturalmente à militarização pura e simples do produtor-cidadão. A autogestão existe somente com relação à totalidade e à organização de cima a baixo de todas as categorias capitalistas.

O argumento para esse “estado autogerido” seria o antiimperialismo que isso iria exacerbar. A extrema esquerda capitalista será chamada a ter um papel central nesse mecanismo de guerra, como já é evidente na mobilização patriótica no conflito da Lip e seu apoio de um campo contra outro na última guerra árabe-israelense. É significativo que num partido tal como o Partido Socialista Francês, que se apresenta como partido do governo, uma fração – o CERES –seja formada com base na autogestão e num violento antiimperialismo contra os EUA. Não é menos significativo que o próprio Partido Comunista Francês acredita que “o modo pelo qual a questão da autogestão é posta hoje evoluiu positivamente”, e “os comunistas não têm rivais no campo da autogestão” [10]. Finalmente, devemos chamar atenção para a desavença da facção mais puramente gaullista com o “imperialismo estadunidense” – a “frente do progresso” coincide inteiramente com as organizações esquerdistas na totalidade de seus programas (sem mencionar os monarquistas da Nova Ação Francesa. que se proclamaram partidários da autogestão).

A autogestão parece estar em vias de se tornar a nova forma de União Sagrada.

Porém, a autarquia dos países autogeridos ameaça acirrar certas contradições. Se é verdade que estes países possuem em média uma baixa composição orgânica do Capital, já vimos que eles também têm empresas altamente desenvolvidas que não podem ter qualquer interesse na autarquia. Elas também encontram hostilidade de outros, dos setores menos desenvolvidos que não podem sobreviver com o declínio dos lucros, estando no coração da crise, que é sinônimo da liquidação de setores econômicos menores. Assim, um conflito de interesses surge a respeito do modo como a mais-valia é distribuída, as empresas e setores menos desenvolvidos tentam organizar mecanismos para direcionar a queda de valor para setores com maior composição orgânica do Capital.

Essa troca desigual reflete o desenvolvimento desigual de diferentes regiões que, com a emergência da crise, leva a uma onda de violência regionalista e, seu corolário, a chamada “neocolonização do interior”.

Num nível mais agudo, esses antagonismos levariam a uma guerra civil capitalista que efetuaria a destruição de uma parte das forças produtivas, destruição necessária para o Capital.

A autogestão também pode se desenvolver como uma forma política - ou melhor, administrativa - de gestão dos antagonismos internos. Dissemos “administrativa” porque esses insolúveis conflitos de interesses seriam uma das razões para a organização autoritária da sociedade. Se hoje a contra-revolução nesses países implica uma participação sem precedentes dos escravos assalariados do Capital na manutenção de sua escravidão, a integridade de todas as categorias essenciais do modo de produção capitalista requer uma força superior (o Estado, ´metamorfoseado´ mas muito real) que liga todas as partes separadas e assegura a coesão de uma sociedade caótica: qualquer outra idéia de autogestão (como parte da ficção burguesa de liberdade e igualdade) nada mais é do que uma utopia reacionária, um sonho que o capitalismo, mesmo “autogerido”, está prestes a explodir [11].

Assim como o programa social-democrata, elaborado durante o festival de reprodução capitalista (antes de 1914) foi apenas uma utopia reacionária finalmente realizada na Frente Popular e acima de tudo no nazismo, os imperativos da crise só podem ser reduzidos pelo esquemas da ultra-esquerda em receitas para salvar o capitalismo.

Se a autonomia revolucionária do proletariado será inquestionavelmente afirmada quando ele se constituir em classe para si, também a contra-revolução implica uma certa autonomia do “proletariado” enquanto classe que mantém o capitalismo. Além disso, com relação a todos os comitês e outros órgãos de base que surgem no calor da crise, será absolutamente necessário avaliar constantemente o conteúdo de sua atividade, assim como o conteúdo do movimento do qual é parte sem que sejam desviados pelas formas que eles podem tomar.

Notas:

[1] A acumulação de Capital em Boimondeau marcou o fim da experiência de autogestão. Pouco a pouco, a hierarquia de salários foi restabelecida; um, ou melhor, dois proprietários emergiram da comunidade. A empresa organizou novas escalas de salários com novas bases. Esses baixos salários foram a saída em uma das duas empresas que empregava ex-presidiários. A maioria dos empregados vivia fora da Cidade Relógio, que não tinha mais nada de comunal, exceto o nome (muitos trabalhadores foram demitidos após maio de 68, por terem feito greve). A empresa vivia em agonia e, depois de muitos altos e baixos, foi finalmente liquidada, vendida, em 1970. (A informação sobre a empresa, aqui dada muito resumidamente, foi fornecida por um velho trabalhador de Boimondeau que testemunhou o fim do período de  autogestão comunal e por um trabalhador que lá trabalhou por um curto período depois de 68).

[2] Le Monde, 29 de janeiro de 1974. Dos muitos descendentes dessa comunidade operária, poucos sobreviveram mais do que alguns meses ou anos, visto que a maioria foi uma resposta imediata e paliativa para a desorganização do capitalismo do pós-guerra e para a ausência momentânea de investidores capitalistas (que também apareceram, de certo modo, na “comunidade Lip”).

[3] G. Friedman, no Le Monde, 22 de março de 1974.

[4] A tendência do capitalismo para formar comunidades materiais depois de 1945, encarnada no “estado de bem estar” dos EUA, não é o mesmo que o desaparecimento dos antagonismos internos, nem a criação de uma comunidade real dos homens, mesmo se alienada. Pelo contrário, que o capitalismo seja forçado a fundar essas comunidades em suas metrópoles resulta do inelutável desenvolvimento de suas contradições (contornadas anteriormente pela adoção de teorias keynesianas) e tem como conteúdo a extrema fragmentação da sociedade em indivíduos atomizados. Tanto quanto a atribuição de um valor às mercadorias (valorização) inclui a destruição do valor, assim também, o “bem estar social”, por sua natureza, contém a contradição personificada entre Capital e existência proletária. “A burguesia leva o proletariado a um afundamento tal que ela deve alimentá-lo mais do que ser alimentada por ele” (Manifesto Comunista, 1848). Na realidade, além da burguesia de 1848, o Capital, como relação social, colide com o proletariado e é incapaz de criar uma comunidade harmoniosa. Falar de “comunidade material” é reconhecer a impossibilidade para os proletários “Capitalizados” (durante o ciclo de reprodução ampliada do pós-guerra) de se constituírem em classe; essa situação torna a militância revolucionária “tradicional” um desastre, transformando-a numa simples arruaça. Mas a crise de reprodução capitalista provocará a destruição da comunidade material e, simultaneamente, a rápida reorganização da contra-revolução, levando-a a um grau tão alto quanto o grau de desorganização social: a autogestão onde for possível; outra razão para especificar precisamente o tipo de organização que agora se desenvolve.

[5] Para Révolution Internationale (No 5, nova série, B.P. 219 758227 Paris Cedex 17) o confronto com a CRS marcou uma unificação da classe e a passagem da luta econômica à política, porque os trabalhadores foram além dos limites da fábrica. Porém, em si mesmo, ir além dos limites da fábrica não é suficiente para determinar o proletariado (ou uma fração dele) enquanto classe para si, exceto se isso ocorrer numa base virtualmente revolucionária (foi para defender o capitalista coletivo da Lip que a classe teria se formado?!). Na realidade, a existência da empresa não pode continuar por toda parte; a formação do proletariado é implicada somente indo além da dinâmica do capitalismo – da reprodução do Capital. Mas, pelo contrário, os trabalhadores da Lip constantemente iam além dos limites de sua localidade, fazendo viagens aqui e ali sem nunca ir além de sua empresa, cuja preservação foi o verdadeiro conteúdo de sua luta. A maneira que a R.I. vê as coisas resulta de sua concepção fundamentalmente política da revolução comunista com sua correspondente visão partidista.

[6] Veja, por exemplo, Le Monde, 2 de abril de 1974: “Os Lulus de Abbaye”, e “Dificuldades de Emprego para os jovens no Sul”.

[7] Na realidade, essa dupla tendência é provável que se manifeste na forma de antagonismos e frações proletárias que personificam primeiro uma, depois a outra, como aconteceu na Alemanha em 1919-21 e que só foi reforçado pelo desenvolvimento do capitalismo contemporâneo. (veja Négation No 2, Intervention Communiste No 2, e o Bulletin Communiste de Maio de 1973. H. Simon, B.P. 287, 13605 Aix-em-Provence).

[8] O texto “Critique du conflit Lip et tentative de dépassement” [uma crítica do conflito da Lip e uma tentativa de superá-lo], (P. Laurent, 32, rue Pelleport, 75620 Paris) é um exemplo  daquela concepção programática da teoria comunista: em parte, ele explica aos trabalhadores o que presume que eles estão fazendo e não fazendo. O desvio do Lip Unité (de origem desconhecida, mas reproduzido por Quatre Millions de Jeunes Travailleurs, B.P. 8806, 75261 Paris Cedex 06) é substituir-se pura e simplesmente pelos trabalhadores da Lip para fazê-los dizer o que eles teriam feito se... se o que, na realidade? Este modo de agir tende a disfarçar a concepção programática acima. Em geral, o método desviacionista exprime a impossibilidade de qualquer tipo (mesmo potencial) de afirmação revolucionária de um movimento. Não é por acaso que este método foi tido como uma “prática subversiva” pelos situacionistas num período em que o proletariado estava totalmente sob o domínio do Capital.

[9] A crise de 1930, quando não havia a questão da autogestão, viu nas fábricas de calçados alemães a supressão do trabalho na linha de montagem, que tinha aparecido recentemente. Essa “desracionalização” – uma nova racionalização adaptada à crise – foi então uma vã tentativa de compensar o desemprego. (Ver Carl Steuerman [pseudônimo de Otto Ruhle], La crise mondiale, Paris: Gallimard, 1932, p. 50).

[10] L´Humanité, 15 de fevereiro de 1974.

[11] É claro que a força de trabalho, nesse nível, não pode ao mesmo tempo ser agente e objeto do Capital; também o papel de agente seria assumido naturalmente no Estado autogerido por uma coalizão oriunda do segmento mais “progressista” dos gestores políticos e econômicos (Bidegains, Neuschwander, J. Delors, Edgar Faure, por exemplo), burocratas da esquerda e da nova esquerda, inclusive suas contrapartes sindicalistas, sem mencionar a fração da classe operária extraída da base via os diversos comitês e conselhos (Monique Piton e outros membros do Comitê de Ação da Lip foram recebidos por E. Faure – indubitavelmente, cuidando do homenzinho).

 


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