Cajo Brendel
Essa citação,
livremente traduzida de um texto de setenta anos de idade, explica que as relações
de produção que foram desenvolvidas na Rússia depois de 1917 nada têm a ver
com o que Marx e Engels entendiam por comunismo. Na época em que o supracitado panfleto foi
publicado, o terror dos anos 30 ainda estava por vir. Parecia apenas uma
profecia. Não havia qualquer evento político que provocasse essa crítica da
sociedade soviética; essa crítica surgiu de uma análise econômica. Com base
nesta, o surgimento do stalinismo foi entendido como expressão de um sistema
econômico que consiste numa exploração capitalista de Estado, e isto
caracterizando não apenas o stalinismo.
O texto que
citamos foi obra de um grupo cujos autores pertenciam a uma corrente que surgiu
nos anos seguintes à primeira guerra mundial, e continua válido. Esta corrente
se caracterizou por uma clara crítica da social-democracia e do bolchevismo.
Analisou cuidadosamente a experiência cotidiana da classe operária e chegou
assim a novas idéias sobre a luta de classes. A corrente via a
social-democracia e o bolchevismo como o "velho movimento operário";
o oposto disso seria "um novo movimento dos trabalhadores".
Os mais
antigos membros dessa corrente foram marxistas alemães e holandeses que sempre
atuaram na ala esquerda da social-democracia. Nos anos de luta contra o
reformismo, eles se tornaram cada vez mais críticos da social-democracia. Os
mais conhecidos dessa corrente foram dois holandeses, Anton Pannekoek
(1872-1960) e Herman Gorter (1864-1927), e também dois alemães, Karl Schroder
(1884-1950) e Otto Ruhle (1874-1943). Mais tarde, o então jovem Paul Mattick
(1904-1980) seria um de seus teóricos mais importantes.
As idéias de
Pannekoek chamaram a atenção, logo depois da virada do século, para algumas
reflexões marxistas sobre filosofia. De 1906 até a eclosão da primeira guerra
mundial, ele trabalhou na Alemanha. Primeiro, por um ano, como professor na
escola do SPD, e depois, quando foi ameaçado de expulsão da Alemanha,
trabalhou em Bremen e escreveu artigos para diversas publicações de esquerda.
Em Bremen, Pannekoek testemunhou uma greve selvagem dos estivadores. Esta experiência
influenciou suas idéias sobre a luta de classes, e também sua interpretação
do marxismo. Em conseqüência, muito cedo ele recusou as teorias bolcheviques
sobre organização, estratégia e política.
Otto Ruhle
nunca se identificou com uma corrente no movimento operário alemão.
Mas ele nunca negligenciou os interesses gerais da classe operária. Como
Pannekoek, recusou o bolchevismo na década de 1920 e foi um dos primeiros a
argumentar que a revolução proletária é algo completamente diferente de uma
revolução burguesa e conseqüentemente requer formas de organização
completamente diferentes. Por esta razão, ele recusou a falácia de que a
revolução proletária seria tarefa de um partido. "A revolução",
dizia, "não é uma tarefa de partido; política e economicamente é uma
tarefa de toda a classe operária".
Tais idéias,
que seriam mais detalhadas, caracterizam a corrente que ficou conhecida como
comunismo de conselhos. O comunismo de conselhos, do início da década de 1920,
baseou-se nas experiências das revoluções russa e alemã, defendia a
democracia dos conselhos e recusava o poder do partido. Procurou se distinguir
do bolchevismo e dos bolcheviques, e daqueles que se autodenominavam comunistas.
Contudo, nas suas origens, ele estava muito distante das opiniões que
desenvolveria mais tarde.
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No começo, o
comunismo de conselhos pouco se diferenciava do leninismo. Ruhle, todavia, não
considerava comunistas os partidos da terceira internacional. Alguns anos
depois, os comunistas de conselhos iriam se distinguir com muito mais clareza do
bolchevismo. A chamada revolução de outubro acabou com o czarismo
e pôs um fim às relações feudais, limpando o campo para capitalismo.
Os comunistas
de conselhos foram ainda mais longe. Eles apontaram o fato de que uma economia
como a russa, baseada no trabalho assalariado, ou seja, uma economia em que a
força de trabalho é uma mercadoria, tem como finalidade a produção de
mais-valia mediante a exploração dos trabalhadores.
A questão não é se a mais-valia vai para o capitalista privado ou para
o Estado, enquanto proprietário dos meios de produção. Os comunistas de
conselhos lembravam que Marx tinha dito que a nacionalização dos meios de
produção não tem nada a ver com socialismo. Eles também assinalaram que, na
Rússia, a produção obedecia as mesmas leis que existem no capitalismo privado
clássico. A exploração só pode chegar a um fim - dizia Marx - quando o
trabalho assalariado não mais existir. Os comunistas de conselhos explicavam,
referindo-se a Moscou, que não havia comunismo. A diferença entre comunismo de
conselhos e bolchevismo torna-se, assim, mais clara e mais completa.
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O que
dissemos não deve ser entendido como significando que o comunismo de conselhos
é uma crítica do stalinismo, especificamente. É uma crítica do bolchevismo,
em geral. Os comunistas de conselhos não vêem o stalinismo como um tipo de
"contra-revolução" que privou a revolução de outubro de seus
frutos. Mais precisamente, eles viam o stalinismo apenas como um fruto dessa
revolução, da revolução que abriu as portas ao capitalismo na Rússia.
Stalin foi o herdeiro do bolchevismo e da revolução bolchevique. O
desenvolvimento dessa teoria foi
lento, acompanhando o desenvolvimento social. Com o tempo, os comunistas de
conselho mudariam sua opinião e sua prática. Inicialmente, na Alemanha e na
Holanda, partidos comunistas de conselhos foram fundados. Isto contradizia a
opinião de alguns que, como Ruhle, afirmavam que partidos nada tinham a ver com
a classe operária. Ruhle, no entanto, via essas organizações como partidos
"de um tipo completamente diferente – ”um partido que já não era mais
um partido."
Quatro anos
depois, em 1924, Ruhle falava uma linguagem diferente. "Um partido com caráter
revolucionário na acepção proletária
do termo", ele disse, "é um absurdo. Seu caráter revolucionário só
pode existir como expressão burguesa e somente quando a questão é a passagem
do feudalismo ao capitalismo". Ele estava inteiramente certo e por esta razão
os “absurdos” desapareceriam do teatro proletário dentro de dez anos. Havia
poucas exceções e, após a segunda guerra mundial, a expressão foi
abandonada.
Ao mesmo
tempo, os comunistas de conselhos amadureceram. Eles entenderam que a revolução
russa era uma revolução burguesa e que a economia russa nada mais era do que
capitalismo de Estado. Eles enxergaram mais claro e novas pesquisas
amadureceram.
A análise
mais importante foi completada por Pannekoek em 1938. Ele publicou um panfleto
sobre a filosofia de Lênin e produziu uma análise mais aprofundada do
bolchevismo. Pannekoek apontou o fato de que o marxismo de Lênin era uma lenda
e contradizia o marxismo real. Ao mesmo tempo, ele explicou a causa: "Na Rússia,
a luta contra o czarismo assemelhava-se em muitos aspectos à luta contra o
feudalismo na Europa, muito tempo antes. A religião e a igreja apoiavam o poder
existente. Por esta razão, uma luta contra a religião era uma necessidade
social". Portanto, aquilo que Lênin considerava como materialismo histórico
pouco se diferenciava do materialismo burguês, do século XVIII francês, um
materialismo que, naqueles tempos, foi usado como arma espiritual contra a
igreja e a religião. Ou seja, apontando as similaridades entre as relações
sociais na Rússia antes da revolução e aquelas da França pré-revolucionária,
os comunistas de conselhos registravam que Lênin e os membros de seu partido
haviam reivindicado o nome de jacobinos para si mesmos. Eles pensavam que seu
partido na revolução burguesa russa teve a mesma função dos jacobinos
franceses.
O poder
bolchevique – que, em março de 1918, poucos meses depois de outubro de 1917,
esmagou o já reduzido poder dos sovietes – foi, como os comunistas de conselhos diziam, uma conseqüência lógica
da revolução de outubro. Os sovietes não se adaptaram a um sistema que
consistia na superestrutura política das relações de produção capitalistas
de Estado.
O que o
movimento comunista de conselhos entendia por comunismo era algo completamente
diferente daquele sistema. A ditadura do partido não corresponde às relações
sociais baseadas na abolição do trabalho assalariado e no fim da exploração
dos trabalhadores. Uma sociedade em que os produtores são livres e iguais não
pode ser diferente da democracia dos produtores.
Cajo Brendel
Originalmente
publicado em Red & Black Notes #8, primavera
de 1999.
Livremente traduzido de Council Communism & The Critique of Bolshevism, disponível em http://ca.oocities.com/red_black_ca/