ORIGEM E FUNÇÃO DA FORMA-PARTIDO
Este texto foi publicado, em italiano, no jornal Programma Comunista (1961), número 13. Em francês, na revista Invariance Ano VII série II, número especial (janeiro 1974).
Conteúdo:
PREMISSAS GERAIS
ORIGEM DA FORMA-PARTIDO
A NATUREZA DO ESTADO
A VIA PROLETÁRIA NÃO É “DENTRO” DO ESTADO
A REVOLUÇÃO E OS ESTADOS
OS PARTIDOS DO PROLETARIADO
PARTIDO E REVOLUÇÃO
ÁSPERO CICLO DO PARTIDO MUNDIAL
PORQUE O PARTIDO NÃO DESAPARECE
RECUSA DO ANARQUISMO PARA SALVAR O PROGRAMA
DIFERENTES FASES NA VIDA DO PARTIDO
A ÚLTIMA TEMPESTADE CONTRA-REVOLUCIONÁRIA
FUNÇÃO DA FORMA-PARTIDO
BASES DO PARTIDO DO FUTURO
NOTAS
FONTE
A tese central, que queremos afirmar e ilustrar, é: Marx extraiu os caracteres da forma-partido da descrição da sociedade comunista.
De um ponto de vista metodológico, procuraremos, na medida do possível, indicar a ligação com as diversas reuniões ocorridas na Itália. Além disso, alguns pontos serão indicados, mas não estudados em profundidade.
A luta do embrião do proletariado, durante a revolução francesa, induziu alguns revolucionários (Varlet, Leclerc, Roux, os ditos “Enraivecidos”) a pensar que a revolução se efetuava apenas em benefício de uma categoria de homens, não era a libertadora universal. Depois, mas sempre na mesma época, os “Iguais” repuseram em questão a possibilidade que tinha essa revolução de emancipar a humanidade, e proclamaram a necessidade de uma nova revolução, que não seria conduzida em nome da razão: “quem tem a força – disse Babeuf – tem razão” (cfr. a crítica de Marx, na Sagrada Família; sobre este ponto, retornaremos).
A teoria da evolução universal da Razão e de seu papel se encontra no sistema de Hegel, que conclui a obra dos filósofos franceses e dos revolucionários burgueses. Além disso, quando o jovem Marx aparece na cena política, o proletariado já tinha crescido numericamente e sua potência na sociedade tinha se reforçado. Da observação da luta do proletariado, nasce em Marx e Engels a idéia de que a solução iluminista não é a verdadeira, a real, no mesmo momento em que vêem onde a nova solução se encontra: na luta do proletariado. Eles se dão conta de que o problema da emancipação da humanidade não podia ser resolvido teoricamente porque o mesmo não havia sido colocado praticamente, porque os burgueses raciocinam em nome dum homem abstrato, uma categoria na qual o proletariado não entra.
A libertação do homem deve ser vista no terreno prático, e se deve considerar o homem real, isto é, a espécie humana (cfr. Teses sobre Feuerbach: II, VIII, X).
Armado desta genial intuição, Marx enfrenta a crítica do sistema hegeliano. Ele havia compreendido porque a dialética caminhava de cabeça para baixo. Com um delirante entusiasmo, ele ataca o monstro – Marx é o novo Édipo que resolve os enigmas. Quando as dificuldades são excessivas, ele volta para o terreno prático e atira à face de Hegel o que é a realidade: a existência do proletariado. Anteu moderno, Marx alcança novas forças sustentando a batalha no seio do proletariado, daí se desenvolve a luta. Toda a sua crítica de Hegel é fundamentada na existência do proletariado e sobre sua luta: eis o ponto de conjunção entre a teoria e praxis (tentaremos, sempre que possível, frisar este aspecto).
Sensível a todas as lutas práticas e teóricas, Marx acompanhava as obras de outros lutadores como ele: Engels, Moses Hess, os socialistas franceses, etc. Assim é que, finalmente, realizar-se-á esta síntese, esta integração histórica: o marxismo, teoria do proletariado, teoria da espécie humana, que surgirá com todo seu vigor em plena fase eruptiva do desenvolvimento da sociedade humana, a revolução de 1848, com o Manifesto Comunista.
O marxismo é, portanto, o produto de toda a história humana, mas só podia nascer graças à luta do proletariado. Esta luta “não há de realizar ideais, mas libertar os elementos da nova sociedade da qual está grávida a velha e decadente sociedade burguesa” (A Guerra Civil em França).
Nossa tarefa de hoje é explicar como a genial intuição se torna no programa comunista. Como este programa foi proposto à humanidade por intermédio do proletariado; como Marx e Engels lutaram para que fosse aceito pela organização proletária (carta de Marx a Bolte, 29/11/1871: “A história da Internacional foi uma luta contínua do conselho Geral contra... as seções nacionais”); como triunfou, em 1871, com a Comuna de Paris, comprovando sua necessidade absoluta (necessidade que traduz sua verificação, sua validade). Estudaremos tudo isto para especificar a origem e a função da forma-partido. Enfim, abordaremos a questão, raciocinando assim: a única atualidade que tem uma realidade é a atualidade do programa, isto é, sua necessidade. (Para nós o capitalismo já não existe mais, só existe a sociedade comunista – ver os últimos números do jornal Programma Comunista e o que foi acordado na reunião de Milão sobre o tema: Nossa Teoria é a Única que Pode Se Apoiar Sobre Uma Ação Do Futuro).
Para compreender a crítica de Marx à sociedade burguesa, é preciso saber como evoluiu o conhecimento humano. Além do período do comunismo primitivo e da sua fase de degenerescência (inícios da sociedade dividida em classes), temos três grandes momentos. Comecemos pelos dois primeiros:
1 ) Conhecimento mediado por Deus; 2) Conhecimento mediado pelo homem individual, período capitalista (ver reuniões de Florença, Casale e Milão). Neste último caso, trata-se de saber o que é o homem (é inútil lembrar todos os tratados dedicados ao homem pelos filósofos burgueses: Hume, Locke, Helvetius...). Da definição abstrata do homem individual, caracterizado pela razão, passa-se ao problema de saber qual é a melhor forma de sociedade objetivando um desenvolvimento ótimo deste homem; portanto, a melhor organização social que garanta o desenvolvimento mais racional possível da humanidade considerada como a soma aritmética de todos os indivíduos vivos num dado momento. Enfim, já que o espírito humano é aperfeiçoável, devem-se educar as massas para alcançar a libertação do homem...
Conduzido a fundo sua crítica, Marx – nos Manuscritos Parisienses, na Crítica da Filosofia do Estado e da Filosofia do Direito de Hegel (sendo o direito o nexo entre os indivíduos abstratos e entre estes e o estado), na Questão Judia – destrói o monstro hegeliano e consegue apreender o sentido real do movimento da sociedade humana na sua totalidade. A humanidade no seu conjunto tende para o comunismo, assim definido: “O comunismo como superação positiva da propriedade privada, desta alienação e separação do homem de si mesmo, deve ser, portanto, a verdadeira apropriação da natureza humana pelo homem e para o homem; é, portanto o retorno do homem a si mesmo, retorno total, consciente, que conserva toda a riqueza do desenvolvimento anterior. Este comunismo, sendo um naturalismo completo, equivale ao humanismo, assim como o humanismo completo equivale ao naturalismo; ele é a verdadeira solução do conflito entre existência e essência, entre objetivação e afirmação de si, entre liberdade e necessidade, entre indivíduo e espécie. É o enigma resolvido da história e sabe que é esta solução. Por isso, todo o movimento da história é o ato real do nascimento do comunismo, o ato de nascença do seu ser empírico e, também, para sua consciência pensante, o movimento compreendido e sabido do seu devir”. (Marx, Manuscrito de 1844)
Temos agora o terceiro momento: o conhecimento mediado pelo homem social, pela espécie humana. É sempre deste ponto de vista que Marx e Engels verão o mundo e a evolução social. O problema é resolvido dum só golpe. Marx mostra o objetivo a alcançar, a emancipação do homem; mostra o sujeito: a classe operária, da qual aquele objetivo é a missão histórica, o programa. É, pois, necessário precisar os caracteres desta classe e a ligação que ela tem com seu programa: “A emancipação da Alemanha só é praticamente possível se assume o ponto de vista da teoria que declara que o homem é a essência suprema do homem” (Crítica à filosofia do direito de Hegel).
O homem é a espécie humana. “A filosofia é a cabeça desta emancipação, o proletariado é seu coração. A filosofia não pode ser realizada sem a supressão do proletariado, e o proletariado não pode suprimir-se sem a realização da filosofia” (idem).
O caráter do proletariado é o de ser “uma classe da sociedade burguesa que não é uma classe da sociedade burguesa, uma classe que é a dissolução de todas as classes, uma esfera que possui um caráter universal por seus sofrimentos universais e não reivindica nenhum direito particular porque nenhuma injustiça particular lhe foi feita, mas uma injustiça em si; uma esfera que não pode mais apelar para nenhum título histórico, mas somente para um título humano [reencontramos aqui a constante fundamental do marxismo: o critério para julgar a verdade ou o erro é o da espécie; aqui, o que interessa não é um fato transitório, contingente, mas o ser humano que é mediador de todo conhecimento e de toda ação. O proletariado não funda sua ação na história sobre a posse de certos meios de produção e, portanto, sobre uma possibilidade de libertação parcial do homem, mas sobre a não-possessão da natureza humana, da qual ele quer se apropriar e, deste modo, emancipar a humanidade, n.d.r.], uma esfera que não está em nenhuma antítese particular com as conseqüências, mas em antítese geral com todas as premissas do sistema político alemão; uma esfera, enfim, que não pode se emancipar sem se emancipar de todas as outras esferas da sociedade, e, portanto, sem emancipá-las todas, que seja, em suma, a perda total do homem, e que, por isso, só possa reconquistar a si mesma pela reconquista total do homem.” (ibidem, grifos nossos, n.d.r.).
Assim, a questão do devir do proletariado é a de saber como serão resolvidas as questões das classes, do Estado e da organização da sociedade futura. Ademais, a burguesia tende a impedir a ligação orgânica entre a classe e o seu programa; tenta reduzir o proletariado a uma classe desta sociedade e, portanto, fazê-lo abandonar seu programa. É aqui que se coloca a questão do partido.
Todos estes problemas não foram resolvidos separadamente, mas em bloco. Marx intuiu a sociedade futura e, a partir daí, deduziu a teoria do estado e do partido. O conhecimento da sociedade comunista é a base mediadora do conhecimento do marxismo.
Todo o trabalho de Marx e Engels consistirá em descrever esta sociedade futura e defendê-la contra a sociedade burguesa. O artigo seguinte, escrito no Pariser Vorwarts (07 de agosto de1844: publicado em Marx, “Um Carteggio del 1843”, Ed. Riuniti, Roma 1954) , permitirá demonstrá-lo.
Inicialmente, Marx analisa o Estado: “Do ponto de vista político, o Estado e a ordem social não são duas coisas diferentes. O Estado é a ordem social. Na medida em que o Estado reconhece a existência de desarmonias sociais [Marx falará em seguida de antagonismos de classes, o que é mais preciso, mas indica a mesma realidade], ele busca as causas nas leis naturais que nenhuma potência humana pode controlar [aqui a crítica permanente do marxismo à pretensão dos burgueses da eternidade do modo de produção capitalista], na vida privada que disso independe, ou na ineficiência da administração, que depende disso”.
Depois, analisa os “males” da forma Estado e os remédios invocados: “Enfim, todos os Estados buscam a causa nas deficiências acidentais ou intencionais da administração, e, portanto, nas medidas administrativas, o remédio para todos os males. Por que? Justamente porque a administração é a atividade organizadora do Estado.”
Já temos, aqui, a crítica daquela burocracia que alguns agora querem apresentar como se fosse uma classe. Vemos o agudo interesse de Marx pelas questões de definição dos mecanismos do Estado. É neste sentido que ele acompanhará de perto as medidas tomadas pela Comuna de Paris.
Para que o fenômeno burocrático desapareça, será preciso limitar a importância da administração, simplificá-la e, dada sua ligação com a autoridade, impedir que o fato de pertencer à administração acarrete privilégios.
Marx analisa em seguida as diferentes contradições ligadas ao Estado e desenvolve uma crítica dos reformistas, ou seja, daqueles que querem curar os males do Estado, incuráveis por natureza: “o suicídio é contra a natureza. O Estado não pode, portanto, acreditar na impotência intrínseca de sua administração, isto é, de si mesmo. Ele só pode admitir defeitos formais, casuais, e tentar remediá-los”.
Eis, aqui definida, de modo bastante preciso, a posição dos stalinistas e dos vários democratas. Não contente ainda, Marx zomba de seus adversários, mostrando sua impotência: “Se tais modificações são inúteis, ótimo! O mal social é uma imperfeição natural independente do homem, uma lei divina, ou então a vontade dos indivíduos demasiado corrupta para corresponder às boas intenções da administração. E que tipos são estes indivíduos! Eles murmuram contra o governo sempre que este limita a liberdade, e querem que o governo impeça as conseqüências necessárias de tal liberdade!”.
Eis a crítica dos stalinistas franceses, que pedem um poder democrático forte e que, toda vez que de Gaulle limita a “liberdade” e, assim, reforça o poder, “murmuram”: não estão eles de acordo com a forma do Estado?
Marx zomba dessas ilusões, demonstrando que o Estado é o poder organizado de uma classe que domina a sociedade: “De fato, esta dilaceração, esta infâmia, esta escravidão da sociedade civil é o fundamento natural sobre o qual repousa o Estado moderno; assim como a sociedade civil da escravidão era o fundamento natural do Estado antigo. A existência do Estado e a existência da escravidão são inseparáveis”.
Marx vai levar ao extremo esta impossibilidade do reformismo, criticando a posição de A. Ruge que declarava: “Todas as revoltas serão sufocadas até que explodam neste desesperado isolamento dos homens da ordem existente (Gemeinwen) (1) e de seu pensamento dos princípios sociais”; em outras palavras, é necessário servir-se do Estado existente para realizar a emancipação do proletariado se não se quer fracasssar – posição que será retomada por Lassalle, Proudhon, Dühring, etc. (2). Marx responde analisando, antes de tudo, o que foram a revolução burguesa e todas as revoluções: “Mas não explodiram todas as revoltas, sem exceção, no desesperado isolamento do homem da ordem existente [Gemeeinwesen]?
Não pressupõe, talvez necessariamente, cada revolta, este isolamento funesto? A revolução de 1789 poderia ter acontecido sem este desesperado isolamento da burguesia francesa da ordem estatal vigente? A revolta estava, precisamente, destinada a suprimir tal isolamento”.
Mas os dados da luta do proletariado põem-se exatamente do mesmo modo? Não: “A Gemeinwesen [ordem existente] da qual o operário está isolado é uma Gemeinwesen de realidade totalmente diferente, e de uma outra extensão, diversa Gemeinwesen política. A ordem, a comunidade da qual o separa seu próprio trabalho é a própria vida, a vida física e intelectual, a moralidade humana, a atividade humana, o ser humano”. Aqui, a crítica eleva-se até a totalidade, porque é radical. Ora, “ser radical significa tomar as coisas pela raiz. E, para o homem, a raiz é o próprio homem”. (Crítica à filosofia do direito de Hegel).
A miséria do proletário é a de ser privado de sua natureza humana. Esta crítica supera o estreito quadro da crítica de Proudhon que é um miserabilismo racional e, portanto, uma racionalização vazia sobre a verdadeira miséria humana. Os stalinistas, com sua teoria da miséria absoluta, são os autênticos filhos de Proudhon e de E. Sue (sobre este, ver a crítica de Marx em “A Sagrada Família”). A reivindicação do proletário se manifesta na sua vontade de se reapropriar de sua natureza humana, e Marx define assim o Programa Comunista: “O ser humano [a natureza humana] é a verdadeira Gemeinwesen [comunidade] humana”. Isto significa que, na sociedade comunista, não há mais Estado; o princípio de autoridade, de organização e de coordenação entre os homens, é a espécie humana. É o retorno ao comunismo primitivo, mas através da integração do desenvolvimento intermediário (ver a citação anterior sobre o comunismo). Outrora, a espécie humana era representada em forma imperfeita e parcelar – por exemplo, no totem. Os homens se definiam em relação ao totem, segundo uma participação nele (a moira dos antigos gregos); sua existência individual não tinha realidade senão em relação ao totem; o indivíduo não era separado da espécie. Estabelecida a sociedade de classes, a ruptura entre os dois termos se manifesta e atinge o máximo de existência no proletariado. É esta miséria que Marx expressa, em toda sua universalidade: “Como o desesperado isolamento dessa [a natureza humana, o ser humano] é infinitamente mais universal, insuportável, terrível, contraditório do que o isolamento da ordem política existente; assim, a supressão do isolamento [programa comunista] e sua redução ainda que parcial, uma revolta contra o isolamento [os proletários só podem adquirir uma consciência de classe lutando e se organizando em partido] tem uma amplitude infinita; assim, o homem é ele mesmo infinitamente mais que o cidadão do Estado, e a vida humana infinitamente mais do que a vida política”.
Um filisteu qualquer, isto é, um democrata segundo o qual a reflexão é um simples produto da atividade de seu córtex cerebral, pensará que Marx tirou tudo unicamente de seu cérebro poderoso (para o democrata, o conhecimento deve ser produzido por uma parte do homem, concepção das mais estúpidas). Mas não é isto que ocorre, de fato. O proletariado é a manifestação viva, no pensamento de Marx, da enunciação da universalidade da miséria e, portanto, da universalidade de sua liberação. “Uma revolta industrial pode ser tão parcial quanto se queira; nem por isso deixa de conter em si uma alma universal; a revolta política pode ser tão universal quanto se queira, nem por isso deixa de evidenciar, sob seu aspecto colossal, um espírito vil”. (Se nisto se pode ler uma crítica do blanquismo, é também uma forte bofetada em Proudhon, cujas cogitações mesquinhas descobriram um dia que a classe operária não tinha capacidade política e, portanto, que não poderia se governar, e sua recusa – como a de todos os outros anarquistas, aliás – de julgar corretamente a luta “econômica” e, mais tarde, a luta sindical. E Marx prossegue:) “E nós o vimos. Mesmo que ocorra apenas num distrito industrial, uma revolução social se coloca no plano da totalidade, porque é um protesto do homem contra a vida desumanizada, porque parte do ponto de vista de cada indivíduo real, porque a Gemeinwesen [comunidade, coletividade] da qual se esforça por não ser mais isolado é a verdadeira Gemeinwesen do homem, o ser humano”.
O proletariado tende a contrapor sua Gemeinwesen, isto é, o ser humano, à do capitalista (o Estado opressor). Para conseguir realizar tal oposição real, é preciso que ele se aproprie deste ser, e só pode fazê-lo se auto-organizado em partido. Um partido que é justamente a representação deste ser, a prefiguração cuja vida é movimento pela apropriação deste Ser. Eis aqui, expressa de modo preciso, a consciência da missão do proletariado: a apropriação da natureza do ser humano..
A descoberta do movimento da sociedade humana como movimento rumo à sociedade comunista é, concomitante, à da redescoberta do homem. È, portanto, a manifestação simultânea da necessidade da apropriação de sua natureza. Isto define o programa comunista.
Para especificar o programa, Marx caracteriza a revolução burguesa: “A alma política de uma revolução consiste, ao contrário, na tendência das classes privadas de influência política a eliminar o próprio isolamento do Estado e do poder”.
Na sociedade feudal, os burgueses possuíam meios de produção, o que lhes dava um poder que não lhes era reconhecido no Estado. Daí a necessidade de não mais permanecerem separados da Gemeinwesen. Por isso a burguesia quis a dissolução dos diferentes “estados” (classes, ordens) porque a existência deles era a expressão jurídica do seu afastamento de fato (mais tarde, só se falará do povo), e proclamou que todas as camadas sociais poderiam participar do Estado. De fato, só participaram as que eram proprietárias (ver as diversas constituições e sua análise por Marx: vontade da burguesia de dar uma propriedade privada a todos – aqui o seu caráter utópico – eis o que permitia assegurar a igualdade entre indivíduos, mas dava também a cada indivíduo a “consciência de si”).
A burguesia realizou, portanto, uma revolução essencialmente política.
Nós, proletários, não podemos nos contentar com esta espécie de revolução, pois seu ponto de vista “é o mesmo do Estado existente, do conjunto abstrato do Estado, que só existe graças à sua separação da vida real e que é impensável sem o antagonismo organizado entre a idéia geral e a existência individual do homem”. O proletariado deve conquistar o poder. Mas, para fazê-lo, não deve pôr-se no plano do Estado; não deve lutar por uma forma de Estado pretensamente mais progressiva do que outra. Ora, ele o faz quando luta por uma fração da burguesia contra outra (pela democracia contra o fascismo etc.). Sua ação deve ser externa. Para fazer a revolução, o proletariado deve abolir a oposição entre indivíduo e espécie, essa contradição sobre a qual repousa o Estado atual (enquanto houver indivíduos, haverá o problema de sua organização na sociedade, e o problema de sua relação com as verdadeiras necessidades da espécie humana).
O proletariado não deve fazer uma revolução de alma política, porque esta “organiza...uma parte dominante da sociedade às custas da sociedade”. E, antes de passar para a caracterização da revolução proletária, Marx acrescenta:: “Toda revolução dissolve a velha sociedade; neste sentido, ela é social. Toda revolução destrói o velho poder; neste sentido, é política”.
A revolução burguesa é uma revolução social quando dissolve a antiga sociedade; política, quando destrói o velho poder político, mas afirma o seu: revolução essencialmente política.
Para assentar sua organização social, a burguesia devia utilizar uma organização política que tinha que ser inseparável desta; por quê? Porque os burgueses fizeram uma revolução para realizar o tipo humano abstrato: o indivíduo isolado da natureza e da espécie; porque queriam liberar os homens dos antigos vínculos feudais (dependência entre homem e natureza). O problema era definir quais seriam os laços entre os homens novos. Por isso formularam a Declaração dos Direitos do Homem, que só foram realizados quando a revolução desembocou no seu terreno prático burguês, isto é, quando perdeu a esperança de liberar efetivamente a humanidade (após ter esmagado o movimento dos Sans-Culottes; ver “A Sagrada Família”). Enquanto que, para o marxismo, o homem é a espécie humana; o homem social tem uma ligação humana com a natureza (dominando-a). É evidente que o estado do proletariado não será um organismo especial, regido por regras bem definidas, por um direito qualquer, mas será o Ser humano.
“O socialismo não pode se realizar sem revolução. O socialismo necessita deste ato político, na medida em que necessita destruir e dissolver, mas rompe invólucro político logo que começa sua atividade organizadora, persegue seu fim próprio e revela sua alma”.
Aqui, já se expressa toda a teoria do desaparecimento do Estado. A revolução cumpre um ato político para acabar com o velho mundo. Mas, a partir deste momento, orienta-se para a instauração do reino da humanidade sobre a natureza, do homem sobre o planeta; não precisa mais de uma forma política, pois seu problema não é governar os homens. É a espécie, então, que governa, domina, possui. Destruída a antiga sociedade, a revolução comunista tenderá a afirmar o ser humano que é a verdadeira Gemeinwesen do homem.
O trabalho posterior de Marx será examinar como isto pode ser realizado. Passará, então, a uma análise precisa da sociedade e indicará as grandes linhas da transformação socialista: propriedade da espécie, destruição do mercantilismo etc. Tudo isto será precisado no “Manifesto Comunista” e, depois, no texto sobre a Comuna e no Discurso Inaugural da Internacional (questão da destruição do Estado burguês e das medidas para limitar o “carreirismo”).
O partido representa, portanto a sociedade futura. Ele não pode ser definido por regras burocráticas, mas por seu ser, e o ser do partido é seu programa: prefiguração da sociedade comunista, da espécie humana liberada e consciente.
Corolário: a revolução não é uma questão de formas de organização. Ela depende do programa. Se bem que está provado que a forma-partido é a mais apta a representar o programa, a defendê-lo. Neste caso, as regras de organização não são extraídas da sociedade burguesa, mas derivam da visão da sociedade futura (como demonstraremos).
A originalidade da forma-partido foi deduzida por Marx da luta do proletariado. Este se manifesta, desde o início, como uma nova Gemeinwesen. Imediatamente, ele manifesta o objetivo para o qual tende: uma sociedade na qual não haverá propriedade privada, mas propriedade da espécie: “O proletariado clama, repentinamente, de modo claro, seu antagonismo com a sociedade da propriedade privada. A revolta silesiana começa onde terminam as revoltas dos trabalhadores franceses e ingleses: com a consciência de ser o proletariado. A própria ação traz a marca desta superioridade. Os tecelões não destruíram apenas as máquinas, essas rivais dos operários, mas os livros de contabilidade, os títulos de propriedade; e, enquanto os outros movimentos se dirigiam essencialmente contra o patrão da fábrica, o inimigo visível, este movimento se dirigiu também contra o banqueiro, o inimigo oculto. Enfim, nenhuma outra revolta dos operários ingleses foi conduzida com tamanha coragem, reflexão e tenacidade. Comparando essas botas de gigante do proletário-criança com os pequenos sapatos deformados da política da burguesia alemã, não se pode deixar de prever formas atléticas para a cinderela alemã [o que se verificou, amplamente; ainda hoje devemos fundar nossa estratégia revolucionária na ação do proletariado neste setor do mundo: invariância do marxismo!] É preciso reconhecer que o proletariado alemão é o teórico do proletariado europeu, assim como o proletariado inglês é seu economista e o proletariado francês seu político”.
Em cada um dos três casos, a luta dos proletários foi uma crítica dos diversos aspectos da atividade humana. A consciência não vem diretamente dos burgueses, como quereriam alguns: vem da luta de nossa classe, não é uma esfera particular de nossa atividade que absorvemos passivamente da classe inimiga; não, é algo vibrante e passional, que o proletariado arrebatou do seu inimigo de classe.
O jovem Marx tinha infinitamente razão de escrever que as idéias do comunismo, “que marcam nossa inteligência, conquistam nossa mentalidade, às quais a razão ligou a consciência, são correntes das quais não podemos nos livrar, que não podemos arrancar sem arrancar nosso próprio coração; são demônios que o homem só pode vencer submetendo-se a eles”. (“O comunismo e a Gazeta de Augusburgog” na Gazeta Renana de 16-10-1842).
Marx integrou, portanto os três dados e os retransmitiu ao proletariado sob a forma de teses que constituem o programa comunista. Este nasceu da luta, e é uma força impessoal acima das gerações. Marx e Engels foram o substrato desta primeira consciência universal, e a transmitiram para nós. Desde o início, Marx mostra que o programa comunista não é o produto do indivíduo: “a revolução – dizemos nós – será anônima, ou não será”.
Mas este fim, esta libertação, é justamente a tendência da humanidade; portanto, a libertação do proletariado é a libertação da humanidade (afirmação constante do marxismo).
O programa, nascido da luta, não poderá ser afirmado senão pela luta. Está posto o problema das condições da luta contra o capital, o problema da ligação entre os proletários e o programa; o da individualização dos períodos de revolução e contra-revolução. Os proletários só reivindicam sua missão quando são verdadeiramente os sem-reserva (integração na dinâmica da sociedade, na luta de classe: o capitalismo poderá assegurar uma reserva, uma segurança ao proletário? vide “A Sagrada Família”. Este problema está ligado ao problema da crise; conforme explicitado nas “Teses de Roma”, de 1922).
Deriva, então, uma característica importante do partido. Sendo prefiguração do Homem e da sociedade comunista, ele é a base mediadora de todo conhecimento para o proletário, isto é, para o homem que recusa a ordem burguesa e aceita a do proletariado, luta para impô-la e, assim, impor o Ser humano. O conhecimento do partido integra o conhecimento de todos os séculos anteriores (religião, arte, filosofia, ciência). O marxismo não é, portanto, uma pura e simples teoria científica (entre tantas!): ele engloba a ciência e usa suas armas revolucionárias de previsão e de transformação para atingir o objetivo – a revolução.
O partido é um órgão da previsão. Se ele não o for, fica desacreditado, Marx e Engels, carta de 18-2-1865:: “Como o partido burguês ficou desacreditado e se meteu por si mesmo na piedosa situação atual, acreditando firmemente que com a “nova era” o governo lhe caíra do céu, por graça do príncipe regente, assim o partido operário desacreditar-se-á mais ainda imaginando que, graças à era bismarckiana ou a uma era prussiana qualquer, por graça do rei, as andorinhas cairão assadas na sua boca. É absolutamente indubitável que a fatal ilusão de Lassalle – que acredita numa intervenção socialista do governo prussiano [ver a crítica precedente a Ruge, sobre a utilização do Estado] – será seguida de uma desilusão. A lógica das coisas falará. Mas a honra do partido operário exige que ele rejeite estes fantasmas antes que a experiência lhe tenha mostrado sua inutilidade [o sublinhado é nosso: ver nossa crítica do conceito de “experiência”].
Por quê? Eis a característica essencial do proletariado: “a classe operária é revolucionária ou é nada”.
Precisadas as ligações entre programa e classe, isto é, entre Estado e classe, é necessário precisar como será a liberação. Resposta: mediante o assalto revolucionário. E qual será seu caráter? Será violenta.
De Londres, Engels escreve, para a Gazeta Renana, em 10-12-1842, sob o título “As crises internas”: “Certamente, a indústria enriquece um país, mas cria também uma classe de despossuídos, de pobres absolutos sem nenhuma reserva, que cresce de modo tumultuoso; uma classe que não pode ser abolida imediatamente, pois não poderá nunca adquirir uma propriedade estável. Cerca da metade dos ingleses pertence a esta classe. A menor perturbação no comércio tira o pão de grande parte dessa classe; uma grande crise comercial tira o pão de toda a classe. O que lhes resta senão revoltar-se, quando isso ocorre? Por sua massa, esta classe é agora a mais possante da Inglaterra; e ai dos ingleses ricos, no dia em que ela for consciente disto!
Certo, esta consciência ela ainda não tem. O proletariado inglês mal começa a ter idéia de sua força; é este o fruto da insurreição do último verão. O caráter desta insurreição foi totalmente ignorado na Europa: acreditava-se que assumiria um caráter grave. Mas, para quem viu coisa de perto, não foi bem assim.
Tudo se baseava numa ilusão: pelo fato de alguns patrões quererem reduzir os salários, todos os trabalhadores da indústria do algodão, do carvão e do ferro acreditaram que sua situação estava ameaçada, mas não era o caso. Os operários que paralisaram o trabalho não tinham um objetivo, nem a mínima unidade sobre o modo de agir. Daí a indecisão frente à menor resistência das autoridades, e sua incapacidade de superar o respeito à lei. Quando os cartistas se apossaram da direção do movimento e proclamaram a “Carta do povo”, diante das multidões populares agrupadas, era tarde demais. A única idéia diretora que animava vagamente os trabalhadores – e os cartistas a reivindicavam, também – era a de uma revolução pela via legal, uma contradição em termos, uma impossibilidade prática; e, ao querer executá-la, fracassaram. A primeira medida tomada, a ocupação das fábricas, era violenta e ilegal. A inconsistência de toda a questão poderia ter conduzido, desde o início, ao esmagamento da revolta, se o governo não tivesse sido também tomado de surpresa, indeciso e sem meios de ação. De fato, bastou uma força militar e policial para manter as massas sob controle. Em Manchester, foram vistos milhares de trabalhadores bloqueados nas praças por quatro ou cinco policiais que interditavam seu acesso. A “revolução pacífica” tinha paralisado tudo. Assim, tudo acabou rapidamente. No entanto, a vantagem que resultou, para os não-possuidores, permanece adquirida: a consciência de que uma revolução pela via pacífica é impossível e que somente uma revolução violenta das presentes condições não-naturais, uma derrubada radical dos aristocratas e da burguesia pode melhorar a situação dos proletários. O respeito à lei, próprio dos ingleses, ainda os impede de fazer uma revolução violenta. Mas, dada a situação descrita acima, não deverá passar muito tempo antes que todo o proletariado seja privado de seu pão, e o temor da morte pela fome será então mais forte que o temor da lei. Esta revolução é inevitável para a Inglaterra. Como tudo que ocorre na Inglaterra, ela não começará e não se cumprirá pelos princípios, mas pelos interesses; só destes interesses poderão se desenvolver os princípios. Isto é: a revolução não será política, mas social.”
É necessário, pois, educar as massas para organizar a revolução? Eis a resposta de Engels, em “A Sagrada Família”, cap. IV; II (nota marginal crítica), 1844-45: “É verdade que em seu movimento econômico a propriedade privada caminha para a sua dissolução, mas não o faz senão através de uma evolução independente dela, inconsciente, realizando-se contra a sua vontade, produzida pela natureza das coisas, unicamente porque essa gera o proletariado enquanto proletariado, a miséria consciente da própria miséria intelectual e física, a desumanização que é consciente da própria desumanização e, portanto, se auto-suprime. O proletariado executa a sentença que a propriedade privada pronuncia contra si mesma ao gerar o proletariado, assim como executa a sentença que o trabalho assalariado pronuncia contra si mesmo gerando a riqueza alheia e a miséria própria.
Quando o proletariado vencer, não se tornará por isto a parte absoluta da sociedade, porque só vencerá na medida em que suprimirá a si mesmo e o seu contrário; então, o proletariado e o seu contrário que o condiciona, a propriedade privada, terão desaparecido. Se os autores socialistas atribuem ao proletariado este papel histórico-mundial não é, como pretende a Crítica Crítica, porque consideram os proletários deuses. Muito pelo contrário. É porque, no proletariado organizado, está praticamente completa a abstração de toda humanidade, incluída a aparência de humanidade; isto porque nas condições de vida do proletariado se condensam, na forma mais inumana, todas as condições de vida da sociedade atual; porque, no proletariado, o homem se perdeu, mas, simultaneamente, não só adquiriu a consciência teórica desta perda, mas é também diretamente forçado a se rebelar contra esta inumanidade com um desejo doravante inelutável, imune a todo paliativo, absolutamente imperioso – expressão prática da necessidade –; exatamente por isso, o proletariado pode e deve se libertar. Mas não pode se libertar sem suprimir suas condições de existência. Não pode suprimir suas condições de existência sem suprimir todas as inumanas condições de existência da sociedade atual, que se condensam na sua situação. Não é em vão que o proletariado passa pela dura, mas tonificante, escola do trabalho. Não se trata do que este ou aquele proletário, ou mesmo todo o proletariado, imagina de vez em quando como seu objetivo, mas do que ele é, e do que será historicamente constrangido a fazer em conformidade com este ser. Seu objetivo e sua ação histórica foram irrevogavelmente prefixados em suas condições de vida, como na organização total da presente sociedade burguesa. Não cabe aqui demonstrar que uma grande parte do proletariado inglês e francês já está consciente de sua missão histórica e atua constantemente para desenvolver esta consciência até uma clareza completa.”
Disso resulta que o proletariado só existe quando é revolucionário, quando tem sua alma, seu programa, e opõe sua essência, isto é, o Ser humano, à sociedade burguesa. Senão, ele se avilta e sua alma é burguesa, uma coisa da sociedade burguesa. Agora, não tem mais vida, porque sua vida é a revolução.
É por isso que, no Manifesto está dito: “o poder político propriamente dito é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra. Se o proletariado, na luta contra a burguesia, se constitui forçosamente em classe; se, mediante uma revolução, se torna classe dominante e, como classe dominante, suprime com violência as antigas relações de produção, suprime junto com essas relações de produção, as condições do antagonismo de classes, suprime as classes e, portanto, sua própria dominação como classe”.
Classe, programa, partido e revolução, tudo isto está especificado. A classe só age e, portanto, só existe, quando se constitui em partido, que por sua vez se caracteriza por seu programa (que é sua alma). O partido só pode conseguir realizar sua missão através de uma revolução.
Marx e Engels não se contentaram com uma “intuição”; demonstraram a realidade do programa. Toda vez que a questão da luta revolucionária não era a questão fundamental de sua atividade, eles voltavam para seus “estudos teóricos”, ou seja, para precisar o programa. Eles descobriram a lei geral; a seguir, precisaram as leis particulares. Estes estudos não eram um enriquecimento, mas um reforço do potencial do partido, e eles os conduziram em contato com a luta proletária (questão do Estado e da Comuna de Paris). Estes estudos permitiram precisar a descrição da sociedade comunista e, portanto, os métodos de alcançá-la, assim como – por extrapolação, ao passado – precisaram a evolução da sociedade humana fornecendo brilhantes indicações sobre uma sociedade em que não havia lutas de classes (comunismo primitivo); extrapolação que se revelou justa e, portanto, perdeu seu caráter de extrapolação, quando foram publicados os trabalhos de Morgan, magistralmente utilizados por Engels. É nesta ótica que deve ser considerado o trabalho de Marx sobre “O Capital” (desenvolvimento de três momentos e da descrição da sociedade comunista nas páginas de “O Capital”, durante as reuniões na Itália).
Produto da história, o programa só podia nascer da luta do proletariado. Marx e Engels deviam propô-lo à classe operária e à humanidade, em 1848: o “Manifesto do Partido Comunista”. Deviam exprimi-lo claramente nos estatutos da A.I.T. Trata-se, então, de saber como ele se impôs, por que, em certos períodos o proletariado o abandona e quais são as condições para que ele o reencontre: o problema, portanto, da formação do partido e de sua reconstrução (ligação com as reuniões de Nápoles e Roma, em 1951).
A primeira fase do movimento é a fase sectária. Em “As pretensas cisões na Internacional”, de 1872, lê-se: “A primeira fase na luta do proletariado contra a burguesia é marcada pelo movimento sectário. Isso tem sua razão de ser, numa época em que o proletariado ainda não é desenvolvido o bastante para agir como classe. Pensadores individuais criticam os antagonismos sociais e lhes dão soluções fantásticas, que a massa dos operários só tem que aceitar, difundir, colocar em prática. Por sua própria natureza, as seitas formadas por estes iniciadores são abstencionistas, estranhas a toda ação real, à política, às greves, às coalizões; em suma, a todo movimento de conjunto. A massa do proletariado permanece sempre indiferente ou até hostil à sua propaganda. Os operários de Paris e de Lyon não queriam mais os saint-simonianos, os fourieristas, os icarianos; assim como os cartistas e os trade-unionistas não mais queriam os owenistas. Estas seitas, alavancas do movimento na sua origem, obstaculizam-no assim que ele as supera; elas tornam-se então reacionárias; como o provam as seitas na França e na Inglaterra e, ultimamente, os lassalianos na Alemanha, que, após terem travado durante anos a organização do proletariado, acabaram por tornar-se meros instrumentos da polícia. Enfim, esta é a infância do movimento operário, como a astrologia e a alquimia são a infância da ciência. Para que fosse possível a fundação da Internacional, era necessário que o proletariado superasse esta fase.
Frente às organizações fantasiosas e antagônicas das seitas, a Internacional é a organização real e militante da classe proletária em todos os países, unida na luta comum contra o capitalismo, os proprietários fundiários e seu poder de classe organizado no Estado”.
Esta fase, no fundo golpista, estava ligada ao período contra-revolucionário posterior a 1833, no qual as sociedades secretas se desenvolveram. Eis porque o “Manifesto” diz: “Os comunistas rejeitam esconder suas opiniões e seus propósitos”. (Voltaremos a esta questão, a propósito do blanquismo e da ligação entre o partido – portanto, de uma minoria – e a massa.) Para que o programa pudesse ser defendido por uma organização, o movimento deveria ter superado a fase referida. Neste momento, tratava-se de impor o programa. Eis porque Marx e Engels lutaram palmo a palmo no seio da AIT para fazê-lo triunfar. Carta de Marx a Bolte, em 29-11-1871: “A história da Internacional é a da luta contínua do Conselho Geral contra as seções nacionais”.
As resoluções da conferência da Internacional (Londres, 1871) reiteram.
“Vistas as considerações dos Estatutos originais, onde se diz: “A emancipação econômica dos trabalhadores é o grande fim ao qual todo movimento político deve ser subordinado como meio”; visto que o Manifesto Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores (1864), que diz: “a conquista do poder político é, pois, o primeiro dever da classe operária”; vistas as Resoluções do Congresso de Lausanne (1867) onde se lê: “A emancipação social dos trabalhadores é inseparável de sua emancipação política (...); considerando, além disso:
Que, contra o poder coletivo das classes proprietárias, o proletariado só pode agir como classe constituindo-se em partido político distinto, contraposto a todos os velhos partidos formados pelas classes proprietárias;
Que esta constituição do proletariado em partido político é indispensável para assegurar o triunfo da revolução social e do seu fim supremo: a abolição das classes;
Que a coalizão das forças proletárias, já obtida mediante as lutas econômicas, deve também servir como instrumento ao proletariado na sua luta contra o poder político de seus exploradores;
A Conferência recorda aos membros da Internacional: que na práxis da classe operária, seu movimento econômico e sua ação política estão indissoluvelmente unidos”.
Ademais, a criação da I e da II Internacional, pela luta do proletariado, foi igualmente a tentativa de impedir o movimento de cair sob o controle dos anarquistas e dos reformistas. A III Internacional será criada, por sua vez, no fogo da luta revolucionária.
A propósito, é necessário considerar dois pontos:
1) A ligação entre organização-partido e programa-partido.
2) Quais são as situações e os momentos favoráveis à fundação do partido.
I) Na sua “carta a Freiligrath” 23-12- 1860, Marx precisou estes elementos: “Observo, antes de tudo: depois que, a meu pedido, a “Liga” foi dissolvida, em novembro de 1852, não pertenci, nem pertenço, a nenhuma organização secreta ou pública; portanto o Partido, no sentido absolutamente efêmero do termo, deixou de existir para mim há oito anos” (grifo nosso)” – trata-se, aqui, do Partido como grupamento de homens, como organização. E aqui se coloca o ponto 2 com a pergunta: por que dissolver esta organização?
Marx responde explicando que se trata de um período de recuo, de uma fase contra-revolucionária. (Nas nossas reuniões de Roma e Nápoles, em 1951, sobre marxismo teoria da contra-revolução e sobre a natureza capitalista da Rússia. Neste último ponto, lembrou-se que nosso movimento viveu outros períodos contra-revolucionários e é por isso que a questão russa não devia ser colocada no centro de nossa atividade, coisa que, cedo ou tarde, poderia desembocar numa visão conjunturalista). Nestes períodos, o partido se reduz aos poucos camaradas que recusaram de um modo ou outro a vitória da classe inimiga, enquanto muitos militantes teorizam querendo fazer a qualquer preço alguma coisa para “sair da situação”. Para Marx e Engels, a história nada mais é do que uma contínua transformação da natureza humana, os períodos de recuo não podem, então, produzir bons militantes. Os que permanecem no terreno de sua classe devem ser protegidos da corrupção do ambiente externo, o que não é fácil:
“Pode-se, em meio às relações e ao comércio burgueses, permanecer acima da imundície? Apenas neste ambiente é que ela se mostra à vontade... A infâmia honesta ou a honestidade infame da moral solvente (...) não vale para mim um tostão a mais do que a irresponsável infâmia, da qual nem as primeiras comunidades cristãs, nem o clube dos jacobinos, nem mesmo nossa velha Liga conseguiram se libertar inteiramente. Mas, no meio dos tráficos burgueses, a gente se acostuma a perder o sentimento da respeitável infâmia ou da infame respeitabilidade”. E, na mesma carta, Marx recorda que só depois de um ano respondeu aos dirigentes da associação comunista de New York que lhe solicitavam a reorganização da velha Liga, e de, então, ter escrito a eles que “desde 1852 não estava relacionado com nenhuma associação e estava firmemente convencido de que meus trabalhos teóricos serviriam mais à classe operária do que minha adesão às associações existentes. Na ´Neue Zeit´ - acrescenta – fui repetidamente atacado por causa dessa ´inatividade´”.
Esta retirada da ação( que é vontade deliberada de recusar a ação sobre o terreno burguês quando o do proletariado, autônomo, não é possível) fez com que Marx fosse acusado de ´inatividade´, como a Esquerda (Sinistra) o foi ontem e é hoje acusada de ´inatividade´ porque se recusava e se recusa a lançar-se - em nome de um ativismo a qualquer preço – no turbilhão da corrupção burguesa.
Isto posto, Marx explica o que é a vida do partido: “A Liga, assim como a Sociedade das Estações de Paris e cem outras sociedades, foi somente um episódio na história do Partido, que nasce espontaneamente do solo da sociedade moderna”. Noutras palavras, a formação da organização é um produto histórico dos antagonismos desta sociedade: se a classe foi derrotada e, portanto, sua organização de luta perdeu o caráter revolucionário, rejeitando o programa, ou foi destruída na luta, a organização não reaparecerá espontaneamente; o partido reaparecerá quando os contrastes sociais desembocarem, explodindo no cenário da história. O partido não é uma noção diferencial, uma organização cuja vida depende dos altos e baixos da luta de classes. Eis sua noção integral: “Procurei – conclui Marx a Freiligrath – eliminar o mal-entendido que faria compreender por “partido” uma Liga morta há oito anos, ou uma redação de jornal dissolvida há doze anos. Entendo o termo “Partido” na sua ampla acepção histórica”, isto é, como prefiguração da sociedade futura, do Homem futuro, do Ser humano que é a verdadeira Gemeinwesen do homem. É o apego a este Ser, que nos períodos de contra-revolução parece suprimido da história (como, hoje, a revolução parece ser uma utopia) que permite resistir. A luta para permanecer nesta posição é a nossa ação.
Na sessão do Comitê Central da Liga dos Comunistas, em 15 de setembro de 1850, Marx teria dito: “Schapper compreendeu mal minha propota [de cisão]. Assim que esta for adotada, nós nos separaremos, as duas frações se abandonarão e as pessoas cessarão toda relação entre si. Mas estarão na mesma Liga e sob a mesma autoridade. Vocês podem até conservar a grande massa dos membros da Liga. Quanto aos sacrifícios pessoais, eu os fiz tanto quanto qualquer um, mas para a classe e não para as pessoas. Quanto ao entusiasmo, não é necessário para pertencer a um Partido que se acredita chegará ao poder. Sempre desprezei a opinião momentânea do proletariado. Nós nos dedicamos a um partido que, precisamente no seu interesse, não deve chegar ao poder. Louis Blanc nos deu melhor exemplo do que acontece quando se chega prematuramente ao poder”.
Esta questão liga-se à de saber em que condições é possível a ação, o nexo que existe entre ação e consciência. Mas, antes de explica-lo, sublinhemos que o inútil desperdício de energias nos períodos de recuo prejudica o encontro histórico entre a organização do proletariado e seu programa integral. Engels escreve a J. P. Becker, em 10-02-1882: “Estão amadurecendo na Rússia acontecimentos nos quais a vanguarda da revolução combaterá. A nosso ver, é isto, e sua inevitável repercussão na Alemanha, que devemos esperar. Virá então o momento de uma demonstração grandiosa e da instauração de uma Internacional oficial [Engels diz aqui, em outros termos, o que Marx explicou a Freiligrath], que não poderá mais ser uma simples sociedade de propaganda, mas apenas uma sociedade que vise à ação. Acreditamos portanto que não devemos enfraquecer [grifo nosso] um excelente meio de luta, desperdiçando-o e usando-o num momento em que as coisas estão ainda relativamente tranqüilas e nós ainda estamos às vésperas da Revolução”.
Quanto a este último ponto, todos os marxistas concordam. Basta lembrar as lutas de Lênin e Trotsky e de todo o partido bolchevique, todo o esforço da esquerda para esclarecer que, para nós, a insurreição é uma arte. Isso que se manifesta, nos períodos de revolução e nos de recuo, é a continuidade de nosso Ser, é a afirmação de nosso Programa: o Partido, “na sua ampla acepção histórica”.
Marx e Engels lutaram no seio da A.I.T. para fazer triunfar o programa (não sua ideologia pessoal, estreita interpretação dos anarquistas e de todos os nossos adversários). A divergência não estava na visão final: todos querem o Comunismo, até os burgueses (ver, a este respeito, Lênin), mas é sobre o modo de alcançá-lo, o instrumento – isto é, a ditadura do proletariado –, que surge a discordância (recordar a carta de Marx a Wedemeyer).
É a reivindicação desta ditadura que caracteriza o marxismo. A classe só age como tal quando dá vida a um partido que representa seus interesses e, assim – dadas as características da classe –, os de toda a humanidade; o partido conquista o poder, destrói o estado burguês; o proletariado erige-se em classe dominante e portanto em Estado, cuja função não é mais política mas social, e que age para que o Ser humano se torne “a verdadeira Gemeinwesen do homem”. Isto não se pode fazer da noite para o dia seguinte: daí a necessidade da ditadura do proletariado, do partido. Eis o que permitirá a destruição das classes: aqui está o ponto de partida da luta contra Bakúnin.
“Essa (a Aliança) quer, antes de tudo, a igualização política econômica e social das classes, como se lê no artigo 2. A igualização das classes, no seu sentido literal, tende para a harmonia entre capital e trabalho que os socialistas burgueses pregaram com tanta insistência. O grande objetivo da Associação Internacional dos Trabalhadores não é a igualização das classes, logicamente insensata e irrealizável, mas ao contrário a abolição das classes, este verdadeiro segredo do movimento proletário”. (As pretensas cisões na Internacional. Genebra 1872, pp. 8-9).
Este segredo está guardado no Partido; nisso está a solução de todos os enigmas e, portanto, de todos os antagonismos engendrados pela sociedade de classes.
“Os Aliancistas pretendem que, em virtude dos Estatutos e das decisões do Congresso de fundação, a Internacional não seja mais do que uma livre federação de seções autônomas”, tendo como objetivo a auto-emancipação dos trabalhadores “fora de toda autoridade dirigente, mesmo criada mediante livre reconhecimento”. Assim, o Conselho Geral nada mais seria que “um simples escritório de estatística e correspondência”... Segundo eles, o Conselho Geral disporia de uma força perigosa; a livre união das seções autônomas teria sido transformada numa organização hierárquica e autoritária de “seções disciplinadas”, de modo que “as seções se encontrariam inteiramente nas mãos do Conselho Geral que, arbitrariamente, pode recusar as admissões ou suspender suas atividades”.
“Nossos leitores alemães, que conhecem muito bem o valor de uma organização capaz de se defender, não podem deixar de considerar no mínimo surpreendentes todas estas argumentações... Mas a luta pela emancipação dos trabalhadores é, para Bakunin e companhia, só um pretexto; o verdadeiro objetivo é bem outro. A sociedade futura, dizem eles, deverá ser a generalização da organização que a Internacional tiver dado a si mesma. Portanto, devemos nos esforçar para que esta organização se aproxime o mais quanto possível de nosso ideal. A Internacional, germe da sociedade humana futura [harmonia entre as classes e entre trabalho e capital, como vimos, ndr], tem que ser desde já uma cópia fiel de nossos princípios de liberdade e do federalismo, e deve expulsar de seu seio todo princípio que tende para a autoridade e a ditadura".
Nós alemães, somos caluniados por causa de nosso misticismo, mas desse misticismo estamos bem longe. A Internacional, uma imagem antecipadora da sociedade futura, não comportando fuzilamentos dos versalheses, tribunais militares, exércitos permanentes, interceptações de correspondência, cortes penais de Brunswick! Justo agora, quando temos que defender nossa pele, o proletariado deveria organizar-se não em função da luta que lhe é imposta a cada momento, mas fazê-lo conforme as idéias que alguns espíritos fazem de uma vaga sociedade futura! Imaginemos o que seria nossa organização alemã, se fosse organizada baseada neste modelo... Quando os Stieber e todos os seus comparsas, todo o gabinete negro, todos os oficiais prussianos invadirem a organização social-democrata, o Comitê, ou melhor, o escritório de correspondência e de estatística, não deverá se defender, pois isto significaria introduzir uma organização hierárquica e autoritária! E, sobretudo, nada de seções disciplinadas! E nenhuma disciplina de partido, nem centralização num ponto sequer ou armas de luta! Se não, como ficaria a imagem antecipadora da sociedade futura?
Em suma, aonde iríamos com tal organização? Para a elástica e rastejante organização dos primeiros cristãos, escravos que aceitavam de bom grado cada pontapé. E que, após três séculos, é verdade, levaram à vitória sua revolução – um método revolucionário que o proletariado evitará imitar”. (Engels: O Congresso de Sonvilliers e a Internacional, Volkstaat. 10.01.1872).
Podemos agora descrever a vida do partido.
1) Fase das seitas
2) O Partido se desenvolve no período 1840-1848.
3) Em 1850, começa a fase do recuo. É preferível dissolver a Liga, pelas razões já mencionadas anteriormente, e porque o momento não é favorável para a tomada do poder. A classe foi derrotada. Marx e Engels escrevem: “Fomos derrotados, só nos resta recomeçar. A trégua, provavelmente breve, que nos será concedida entre o primeiro e o início do segundo ato do movimento, nos deixa o tempo para dedicar-nos a uma parte verdadeiramente necessária de nossa tarefa: o estudo das causas que determinaram a última explosão e, também, produziram o fracasso. Estas causas não devem ser buscadas em simples elementos acidentais: esforços, talentos, erros, fraquezas, traições dos chefes; mas na situação geral e nas condições de existência de cada povo interessado na agitação revolucionária”.
[A mesma coisa, em 1926. Donde o erro de Trotsky ao acreditar que poderia reconstruir uma Internacional. Esta involução do movimento mostrou todos os erros desvendados por Marx. Em vez de uma análise sadia, de um balanço suscetível de preparar a retomada revolucionária, buscou-se a causa da derrota na traição dos chefes, nos crimes de Stálin, na passividade das massas, na má aplicação das palavras de ordem (crítica de Trotsky ao movimento alemão, nos anos 30)].
4) Depois, a reconstrução do movimento. Neste período, Marx e Engels estudam a fundo o porquê da derrota. Sua saída da Liga não significa a aceitação da derrota. Ao contrário, preocupam-se em saber se a revolução não poderia acontecer noutros lugares: na Índia, na China etc. e radicalizar, em contragolpe, a luta do proletariado no ocidente. Lênin assumirá a mesma posição, que é igualmente a nossa.
1864. Fundação da I Internacional, numa fase de ascenso do movimento proletário. As condições não eram de todo favoráveis, mas o proletariado havia superado a fase das seitas e exigia uma organização internacional. Ademais, havia o risco de cair sob a influência anarquista, que teria reduzido o movimento a uma forma de luta inferior. Eis porque Marx e Engels julgaram necessária esta fundação da Internacional.
1871. O proletariado parisiense toma o poder. (As características da Comuna serão incorporadas aos cuidados dos internacionalistas franceses, num estudo sobre o movimento na França). Mas, também aqui a classe é derrotada – e num plano internacional. A ação se torna, pois, o estudo teórico. Marx escreve, em 28.02.1872, a de Paepe: “Espero, como impaciência, o próximo congresso: será o fim da minha escravidão. Voltarei a ser um homem livre; não aceitarei mais funções administrativas nem no conselho geral, nem pelo conselho federal inglês”; enquanto que, em 24-2-1871, declarava: “Eu já lhe tinha dito em Londres que, freqüentemente, eu me perguntava se não tinha chegado o momento de me retirar do Conselho Geral. Quanto mais a sociedade se desenvolve, tanto mais perco tempo e, afinal de contas, tenho que terminar o ‘Capital’”.
É verdade, era preciso dar aos trabalhadores seu instrumento de combate.
5) Em 1871, Marx faz um novo balanço e especifica as condições da luta. Especifica a ligação entre a vontade dos homens e sua ação. Especifica que o Partido-programa nasceu num certo momento da luta do proletariado e, portanto, da humanidade; que a organização proletária só pode se desenvolver com um certo grau de desenvolvimento da luta de classes e o encontro da classe com seu programa. Em suma, o partido não se forma pela vontade direta dos homens: recria-se em determinados períodos; e se tratará de saber como os revolucionários podem preparar as melhores condições para o retorno do partido à cena da história.
Tudo isto está explicado no discurso de Marx de 25-09-1871 (“The World”, 15-10-1871): “O grande sucesso que coroou até agora nossos esforços se deve a circunstâncias que ultrapassam o poder de seus membros. A própria fundação da Internacional foi o resultado dessas circunstâncias, mas de modo algum se deveu ao mérito dos homens que se dedicaram a esta tarefa. Ela não foi obra de um punhado de hábeis políticos; todos os políticos do mundo reunidos não poderiam ter criado as condições e as circunstâncias que foram necessárias para o sucesso da Internacional. A Internacional não surgiu em público com uma crença particular. Sua tarefa era organizar as forças dos trabalhadores, coligar entre si os diversos movimentos operários e unificá-los. As condições que lhe deram um impulso tão gigantesco são as mesmas pelas quais os trabalhadores estão cada vez mais subjugados no mundo; eis o segredo do sucesso. Antes que tal transformação [socialismo] seja possível, é necessária a ditadura do proletariado, e seu primeiro pressuposto é um exército proletário. As classes trabalhadoras devem conquistar o direito à emancipação pela luta no campo de batalha. É dever da Internacional organizar e unificar as forças dos trabalhadores para a futura batalha.”
6) 1871-1889. Período de reconstrução do movimento, que desemboca na fundação da II Internacional. Fundação que foi um pouco forçada, pela posição de alguns possibilistas e reformistas. Mas Engels aceitou a criação somente para evitar que o movimento mundial caísse sob o controle deles (ver a Correspondência Engels-Lafargue).
Em 1889, o programa sofreu a prova da prática e dela saiu reforçado. A Comuna de 1871 permitiu aperfeiçoar a teoria do Estado. O ciclo do movimento proletário terminou: nenhum fenômeno social podia “pôr em causa” o marxismo. Restava apenas a hipótese da revolução pacífica: a guerra de 1914 demonstrará o contrário, provando assim a visão “catastrófica” de Marx.
A concepção reformista, que pôde se impor unicamente por causa do desenvolvimento do imperialismo, acarretou a derrota do proletariado em1914. Só os grupos que tinham permanecido no terreno do programa integral garantiram a continuidade do Ser humano= partido-programa.
Os erros de tática impediram a reorganização do proletariado em partido comunista mundial. Foram os erros da frente única – tática que, num certo sentido, reconhecia a derrota do proletariado ocidental e a teorizava – que impediram o proletariado russo de ser ajudado pelo proletariado mundial. A teoria da contra-revolução baseou-se nestes erros. Tínhamos aqui o mais difícil, mais demorado e mais doloroso estágio do movimento proletário. A contra-revolução triunfa, sob a máscara da revolução. Para poder suplantá-la, não basta colocar-se no terreno dos “dirigentes russos” (erro de Trotsky), nem considerar a questão russa como uma questão central. A validade do marxismo não dependia de modo algum do sucesso ou do fracasso da revolução russa: o marxismo já tinha demonstrado sua verdade em cada uma das suas partes.
Do sucesso da revolução russa só podia depender a vitória mundial do proletariado: ora, como foi repetidas vezes demonstrado, a vitória do socialismo na Rússia dependia da tomada do poder por parte do proletariado no Ocidente. Se uma verificação era necessária, tinha que ser buscada na área ocidental.
Mas a continuidade não foi destruída. A esquerda defendeu o programa. Em todos os planos, teórico, prático ou tático, ela expôs em toda sua pureza os seus dados do programa. Melhor ainda, efetuou uma nova síntese, ordenando todos os elementos dispersos no marxismo – elementos que a luta tinha impedido de coordenar de maneira orgânica, num conjunto de teses que não pretendem descobrir algo de novo, mas sistematizar os dados permanentes do programa com vistas a uma luta mais eficaz: “Teses de Roma”, “Teses de Lyon”, trabalhos do partido.
Nos períodos de derrota, o proletariado abandona seu programa: só uma frágil minoria o defende. Unicamente o Partido-programa sai sempre reforçado da luta. A luta travada, de 1926 até hoje, prova-o amplamente. Esta luta consiste em evidenciar na crítica o desmascaramento crescente que, na prática, os russos são levados a operar, na demonstração de como eles são levados a criar novas “categorias” para enquadrar a realidade na suas posições gerais. Sabemos que as bases para a fundação do partido comunista mundial só existirão quando o desmascaramento crítico e prático alcançar as últimas conseqüências, a “confissão”. Mas sabemos também que esta confissão deverá ser arrancada pelo proletariado, na luta. Ele reencontrará então o seu programa, hoje desnaturado e prostituído. Então, o proletariado reencontrará o seu programa, hoje desnaturado. Podemos apresentar nossa tarefa mediante a comparação: Cristo expulsou com chicotadas os comerciantes que se encontravam no templo. O Partido é o templo do qual temos que expulsar todos aqueles que vendem sua mercadoria teórica rebatizando-a de marxismo.
Portanto, uma vez mais, invariância; isto é, continuidade de nosso Ser humano = Partido-programa. Apenas encarando o partido deste modo é que se pode compreender a aparente oposição entre o fato de proclamar possível a revolução comunista, em 1848, e a afirmação de 1859 (“Crítica da Economia Política”; mas já contida, noutra forma, na “Ideologia Alemã”) de que toda forma social só desaparece após ter esgotado todas as suas possibilidades.
Mediante a revolução comunista, é possível abreviar a fase capitalista, que é uma fase transitória, a partir do momento em que o desenvolvimento das forças produtivas é tal que engendra uma classe que pode reapropriar o Ser humano. Desde então, o comunismo é possível.
Enunciar isto não é iludir-se sobre a capacidade de resistência da classe inimiga, que pode ainda cumprir “realizações” que freiam o movimento, provocam o surgimento do oportunismo nas fileiras do proletariado. Conhecendo tudo isto, Marx e Engels puderam preparar as tropas para a retirada, após derrota. Todos os outros movimentos colocaram suas forças na batalha e foram completamente destruídos. É desta visão dialética que nasce nossa continuidade histórica (ver esta questão, que se poderia intitular anti-fatalismo e anti-ativismo, as “Teses de Lyon”).
De qualquer modo, hoje chegamos ao ponto indicado por Marx, no qual a forma social esgotou todas as suas possibilidades (ao menos para uma parte grandíssima do mundo). Saudamos com alegria o grande movimento de expropriação que se desenvolve no mundo, pois quanto mais este fenômeno progride, mais possível se torna a reapropriação da natureza humana, mais o Comunismo é atual.
A função do partido deriva da luta na sociedade atual e da descrição do comunismo.
1) Organização dos operários, organização da força, direção da violência.
“... O movimento político da classe operária” – escreve Marx a Bolte, em 29-11-1871 – “tem naturalmente por objetivo final a conquista, pela própria classe operária, do poder político. Para este fim, é naturalmente necessária uma organização prévia, suficientemente desenvolvida da classe operária, organização que surge das lutas econômicas dos operários.
Ademais, todo movimento no qual a classe operária se opõe, como classe, às classes dominantes e se esforça para exercer sobre estas uma pressão do exterior é um movimento político. Por exemplo, a tentativa numa só fábrica ou num ramo industrial de obter dos capitalistas individuais, através de greves etc., uma redução da jornada de trabalho é um movimento puramente econômico. Em vez disso, o movimento que visa à conquista de uma lei da jornada de 8 horas etc., é um movimento político.
É assim que, dos movimentos econômicos isolados dos operários, surge e se desenvolve por toda parte um movimento político, isto é, um movimento da classe para fazer valer os seus interesses numa forma geral, numa forma que possua uma força geral, obrigatória para toda a sociedade. Se é verdade que estes movimentos supõem uma certa organização prévia, eles são, no que lhes concerne, um meio de desenvolver esta organização.
Onde o proletariado não está suficientemente organizado para tentar uma campanha decisiva contra o poder coletivo – ou seja, o poder político – da classe dominante, ele deve ser preparado para esta finalidade, mediante uma agitação incessante contra a atitude política hostil das classes dominantes. Sem isto, o proletariado continua sendo o joguete entre as mãos destas classes” (Reproduzida em “Il Partito e lÍnternationale” Ed. Rinascita, 209 seg. – revista segundo o texto alemão).
O partido permite, pois, a organização da classe; a seguir será o sujeito da ditadura do proletariado:
“Art 1 - O objetivo da associação é a derrubar todas as classes privilegiadas, submetê-las à ditadura dos proletários mantendo a revolução em permanência até a realização do comunismo, que deve ser a última forma de constituição da família humana”.
Art. 2 - Para contribuir à realização deste objetivo, a associação criará laços de solidariedade entre todas as frações do partido comunista revolucionário, fazendo desaparecer, conforme ao princípio da fraternidade republicana, as divisões de nacionalidade”. (1850: “Liga Universal dos Comunistas Revolucionários”).
É esta ditadura que permite destruir o Estado burguês e, assim, impulsionar a transformação social (ver Engels, “Anti-Dühring”). Esta ditadura é historicamente necessária; portanto, “livre”. Cabe aqui sublinhar que não somos a favor de qualquer ditadura e que esta última é, para nós, um meio: a questão é contra quem ela deve ser exercida, contra que coisa, em nome de quem, em nome de que coisa.
Sob este aspecto, pode-se dizer que só as ditaduras reacionárias, visando à manutenção de uma opressão de classe, são autoritárias porque recusadas pelo Homem (porque não são necessárias para seu desenvolvimento e monopolizam a “Gemeinwesen” para explorá-lo). Entretanto, a ditadura revolucionária é aceita pelo Homem como uma liberação, porque a nova Gemeiwesen terá cada vez mais a tendência a identificar-se com o Ser humano e, portanto, a desaparecer como fenômeno exterior ao Homem (Lênin: A ditadura do proletariado é a da imensa maioria sobre a minoria, por oposição à da sociedade burguesa).
Isto é tão mais verdadeiro quanto, como Marx demonstrou no “Capital”, a ditadura burguesa se torna cada vez mais a ditadura do capital; portanto, torna-se externa à classe. Durante o período revolucionário, o poder ditatorial da burguesia tinha permitido o crescimento da produção pela destruição dos entraves ligados à existência da sociedade feudal, mas sem jamais controlar os mecanismos específicos. (Num texto de 1844, Engels já indicava o caráter anárquico da produção capitalista). Do mesmo modo, na origem, o capital e seu capitalista são idênticos e a liberdade de um se reflete no outro. Em seguida, com a concentração capitalista ligada aos mecanismos derivados da queda tendencial da taxa de lucro, o capitalista tende a separar-se de sua propriedade e, ele que era o ser do capital, torna-se sua propriedade. O capitalista como personagem desaparece, a liberdade também, pois não é mais do que a liberdade do Capital, que se torna uma força impessoal servida por uma burocracia (patologia das classes) que é uma organização típica do Estado moderno; noutros termos, o estado se torna o Estado-Capital com sua organização burocrática: “O caráter social das forças produtivas constrange os próprios capitalistas a abandonar os grandes organismos de produção e de comunicação em favor da sociedade por ações inicialmente, dos trustes depois e, por fim, do Estado. A burguesia se torna uma classe supérflua: todas as suas funções sociais são agora preenchidas por funcionários assalariados” (Engels, Anti-Dühring).
Todos os indivíduos desta sociedade participam do capital; devem receber um lucro proporcional à soma investida. O Estado moderno deve fazer respeitar esta operação, este conluio. Daí a contradição flagrante de nossa época: um Estado crescentemente opressor e o pedido dos indivíduos para que seja cada vez mais forte (enésima ilustração, a última crise francesa, ligada à guerra da Argélia). A ditadura burguesa tornou-se uma força monstruosa, estranha ao homem, que impede o devir de uma sociedade que, na sua totalidade, tende para o comunismo. O próprio capitalismo tende a desaparecer (ver o “Capital”, no trecho muitas vezes citado),
É contra esta ditadura que o proletariado deve lutar. Sua destruição é a supressão da doença do homem; a instituição da ditadura proletária é sua regeneração, mediante a apropriação da natureza humana.
Assim, são resolvidas as antíteses: Indivíduo-Estado; Indivíduo-Espécie; Liberdade-Autoridade-Necessidade.
A ditadura do proletariado foi sugerida a Marx pelos acontecimentos da revolução burguesa, por Babeuf, pelas lutas do proletariado francês com sua forma específica do blanquismo (contribuição de socialistas como Flora Tristan) e pelas dos operários ingleses e alemães. Os operários expressavam no plano prático a exigência teórica formulada por Marx na sua crítica a Hegel.
Marx reencontrava em toda sua contrução a exigência da luta: quem tem a força tem razão (Os operários desenvolveram uma crítica nos fatos: rejeitam todos os métodos de luta e aspiram a uma forma de poder que permita o parto de uma sociedade sem classes; cabe notar que Marx se apóia sempre na realidade para estabelecer sua teoria: ver o mesmo procedimento, a propósito da questão do Estado e dos ensinamentos da Comuna).
Daí decorrem:
a) O partido é uma minoria da classe (ver Partido e Classe; Teses de Lyon; Partido e Ação de Classe; artigos anti-Socialismo ou Barbárie; Reunião de Pentecostes sobre: “Fundamentos do comunismo revolucionário”).
b) Unificação do proletariado em escala internacional para chegar à tomada do poder; caráter internacional da revolução e, portanto, do comunismo: “a importância do comunismo não reside no fato de que seja uma questão de nosso tempo e de uma extrema importância para a França e a Inglaterra. O comunismo tem uma importância européia.” (Marx. O Comunismo e a Augsburger Allgemeine Zeitung, 1842).
Ver o fim do “Manifesto do Partido Comunista”: “Proletários de todos os países, uni-vos!”. Ver os três esquemas da revolução indicados no “Marxismo di fronte alla Rússia”. O partido deve unificar a luta e fazê-la perder seu caráter limitado (carta de Marx a Bolte).
c) A luta de classes é uma guerra: portanto, é necessário um exército. Problema de ter aliados, problema de neutralizar certas camadas sociais, de garantir uma base de retirada em caso de derrota. Tática: “Circular à Liga dos Comunistas, 1850”, “Teses de Roma”.
Temos, como acentuou Marx várias vezes, uma ardente paixão pelo homem e por sua liberação. Mas não será por isso que iremos nos jogar irresponsavelmente na batalha. Devemos sempre procurar dominar a estratégia, o terreno de luta. Caso contrário, nosso inimigo assegurar-se-á, cedo ou tarde, da manutenção da ordem (ver os anarquistas e sua precipitação).
Para nós, a insurreição é uma arte.
Das funções do Partido de amanhã decorrem suas características. Sendo a prefiguração da sociedade comunista, ele não pode aceitar um mecanismo, um princípio de vida e de organização que seja ligado à sociedade burguesa; ele deve realizar a destruição desta sociedade.
1) Recusa do mecanismo democrático
(Marx a Engels, 18 de maio de 1859: “Nosso mandato de representantes do partido proletário nos foi dado por nós mesmos. Mas isto se confirma pelo ódio exclusivo e geral que todas as frações do velho mundo e seus partidos nos reservam”). Nossa posição: centralismo orgânico.
2) Anti-individualismo: o partido realiza a antecipação do cérebro social. Todo conhecimento é mediado pelo partido, como toda ação. O militante não tem por tarefa “procurar a verdade”, ela lhe é dada pelo Partido (a verdade no campo social: em todos os outros campos, será alcançada somente após a revolução). Tendência à realização do Homem social.
3) Recusa de todo mercantilismo, de todo carreirismo sob qualquer forma. A ligação entre os camaradas, a manifestação destes entre si deve inspirar-se no comentário de Marx sobre o livro de James Mill: Toda atividade, toda manifestação deve ser a da afirmação da alegria humana pela comunicação com os outros e, portanto, com a sociedade comunista.
4) Abolição dos antagonismos sociais ligados às classes. No partido,
conhecem-se apenas militantes comunistas. No plano prático, isto corresponde à
necessidade de implantar o partido sobre a unidade territorial e não sobre a de
trabalho (ver “Programa do Partido Comunista de Itália”; “Reunião de
Pentecostes”, etc.; “Posições assumidas no IV e V Congressos da I.C.”; “Teses de
Lyon”).
5) O partido deve ser a dissolução dos enigmas, e deve saber sê-lo. Deve
apresentar-se como o refúgio do proletário, o lugar no qual se afirma sua
natureza humana, de tal modo que ele possa mobilizar todas as energias na luta
contra o inimigo de classe.
Era necessário precisar estes caracteres porque só eles permitem compreender a função do partido e ter dele uma visão integral. O partido é uma força impessoal, acima das gerações; ele representa a espécie humana, o ser humano enfim encontrado, a consciência da espécie. Esta só pode manifestar-se em certas condições (como a ação do proletariado): numa situação revolucionária e possível a inversão da praxis, que é a inversão de todo o desenvolvimento atual e passado. O partido decide a tomada do poder mediante a destruição da sociedade burguesa; acaba a pré-história humana. Neste momento, tudo converge: é o ponto culminante da teoria, pela previsão exata do momento favorável e da ação (a insurreição é uma arte). Os dois fenômenos se juntam: então, é a consciência da ação que aparece, consciência que precede a ação.
O marxismo é uma teoria da ação humana e da produção da consciência. Mas é, por isso mesmo, reflexão desta ação, desta praxis. É, portanto, sua consciência. Ele é esta consciência produzida. Portanto, ele é sua verdade absoluta (ver “Reunião de Milão”). Por isso, podemos dizer que ele é um guia para a ação (o partido, enquanto ação organizada do proletariado, é o sujeito da história), um guia da ação humana, um guia que conduz à liberação do homem, à sua tomada de consciência, à sociedade comunista: é o guia da emancipação humana.
NOTAS:
1) Usamos sempre o termo alemão, que é mais denso de significado do que o italiano “comunitá”: ordem política e social, organização estatal, ser coletivo.
2) Numa carta dum companheiro italiano a um companheiro francês: “A posição dos nossos inimigos é que a finalidade máxima do partido não tem substância ´concreta´, dado que a única realidade histórica concreta são os estados e os partidos que agem através do Estado. A justa resposta é bem dada: os dois termos do antagonismo, Estado de ontem – Partido de amanhã, se condicionam nas vicissistudes de sua realidade material e ´científica´, sem invocar alguma espécie de mito...”
Fonte: «Il Programma Comunista», (Rapporto dei gruppi internazionalisti di Francia), 6 julho 1961, n.13