Uma parábola
inteligente, regada a uma belíssima fotografia, sobre a hipocrisia de uma
sociedade puritana e conservadora.
Por
Carlos Antonio Fragoso Guimarães
Em seus primeiros dez minutos, o filme
Pleasantville
- que no Brasil recebeu o sugestivo título de A Vida em Preto e Branco - não parece ser lá grande coisa. Na
verdade, o argumento inicial soa meio tolo. Neste é apresentado um jovem tímido chamado David
(Tobey Maguire, mais conhecido como o Homem
Aranha), rapaz um tanto deslocado diante do mundo competitivo e desorganizado de
hoje, e que é fã de uma série de TV em preto e branco dos anos 50, Pleasantville, em
que todos levam uma vida certinha em uma cidadezinha adorável. Uma noite, ele e
sua irmã - a moderninha, desinibida e leviana Jennifer (Reese
Witherspoon, de Legalmente
Loira e de E Se Fosse Verdade?)
-, durante uma briga, quebram o controle remoto da TV, mas “coincidentemente”
quase no mesmo instante ganham, de um estranho que “repentinamente” bate à
porta vestido de técnico de tv, outro controle remoto
que os transportam para Pleasantville.
A partir deste ponto, porém, o filme começa a ficar interessante e vai se
desenvolvendo em um crescendo sempre mais sedutor até chegar a uma mistura fina
de Filosofia, Crítica Social, Arte e Poesia de encanto raramente encontrado nas
produções cinematográficas de hoje em dia.
A grande
“sacada” do filme, contudo, está na forma poética der se fazer a crítica social
de uma sociedade calcada em valores de fachada, onde o conservadorismo dos
costumes - propício ao comércio, que no filme representado pelos conselheiros
da Câmara de Comércio -
é visto como a chave para a felicidade.
A
cidade interiorana fictícia que dá nome ao filme é, aparentemente, um paraíso
dentro dos parâmetros conservadores. Suas origens puritanas entendem a dita
“perfeição” como sendo a concretização de uma moralidade neurótica, que proíbe
o sexo, a capacidade de reflexão individual e do desejo de mudanças. Ou seja, “Pleasantville”
é a personificação “perfeita” do
ideal puritano da sociedade média norte-americana, a mesma que, em sua vertente
fundamentalista, ufanista e conservadora, elegeu e apoiou Bush filho duas
vezes.
Nesta
cidade “modelo”, os casais dormem em camas separadas; os filhos estão sempre
bem vestidos e são docilmente obedientes; o time de basquete, símbolo desta
juventude, jamais perde um jogo com times de fora; as donas-de-casa estão
sempre com o jantar ou os salgadinhos prontos para as visitas e a única função
dos bombeiros é resgatar gatos em árvores, desconhecendo as tragédias de um
incêndio. Pertencer ao Clube da Câmara de Comércio, ou ser por esta reconhecido
é a mais alta honra que um cidadão de Pleasantville pode aspirar e é esta instituição que tem o
dever de manter as regras do pensamento, de modo que “a História enfatize a
continuidade em detrimento da mudança”, como se tenta estabelecer em uma
imposta regra de conduta que tenta barrar a transformação que começa a ocorrer
na cidade... resistência que chega a levar os neoconservadores em preto e branco a queimar livros que estariam ajudando na "mudança dos jovens", e que incluiria até mesmo as obras de Mark Twin e outros.
Mas
são justamente os dois irmãos, David e Jennifer (foto), que quando
transportados para Pleasantville que irão, meio que
sem querer, mudar tudo isso.
São eles os instrumentos de mudança – que no filme é representado
pelas cores, paulatinamente introduzidas no cenário em preto e branco onde se
dá a ação - que nos irão mostrar os limites desta sociedade “perfeita” e
alienada. Aliás, tanto David/Bud quanto Jennifer/Mary
Sue, no processo, só conseguem ficar “coloridos”
quando eles mesmos mudam.
A parte
mais dramática está justamente na reação dos neoconservadores à mudança que
está ocorrendo com os jovens da cidade. O diretor e roteirista do filme, Gary
Gross, é e às vezes bastante satírico ao retratar a reação retrógrada de
discriminação e censura etnocêntrica por parte dos homens "decentes"
da cidade. No filme, a resistência chega ao ápice com o julgamento “caça-às-bruxas” de David (Tobey McGuire) e do ingênuo
Bill (Jeff Daniels) (foto). Nesta cena, o julgamente é feito pelo presidente da câmara de comércio, encimado pelo logotipo da mesma em tamanho colossal, referência explícita aos símbolos que se usam em ditaduras, como a suática da era hitlerista.
Gross
também usa de referências bem interessantes a textos clássicos, como o Gênesis
bíblico, e deixa subentendido que o simpático velhinho que dá o controle remoto
aos dois irmãos – e que aparentemente torce para que Pleasantville permaneça a mesma –
na verdade sabia e esperava o tempo todo que Jennifer e David fossem os
instrumentos da “Árvore do Conhecimento” que levariam os jovens de Pleasantville a provar do fruto “do conhecimento do bem e
do mal”, o que, apesar de abalar o aparente paraíso da cidade, faz o que possam
reconhecer suas potencialidades pessoais. Em uma cena memorável, a mãe modelo Betty, ao atingir o orgasmo pela primeira vez na vida, faz sincronisticamente com que árvore do seu jardim pegue fogo - numa referência à mitológica sarça ardente do Êxodus. A mudança de mentalidade dos jovens é
embalada pelas músicas “subersivas” do rock,
incluindo Elvis Presley e, no final, com uma emocionante chave de ouro, a
canção “Across the Universe”, dos Beatles.
"Pleasantville
- a vida em preto e branco
Temas-chave do Filme: Fantasia, crítica social,
fundamentalismo religioso e econômico, alienação social.
Filmes com temática semelhante: “Matrix”, dos Irmãos Wachowski; “A Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick; “Equilibrium”, de Kurt Wimmer;; “Sicko”, de Michael Moore; “Gattaca”, de Andrew Niccol; “Sonhos”, de Akira Kurosawa.
Pleasantville – A Vida em Preto e Branco (Pleasantville)
Estados Unidos - 1998, 121 Minutos de duração
Direção, Roteiro e Produção: Gary Ross
Música: Randy Newman
Diretor d Fotografia: John Lindley
Montagem: William Goldenberg
Desenhista de Produção: Jeannine Claudia Oppewall
Elenco: Tobey Maguire (David Wagner / Bud
Parker), Reese Witherspoon (Jennifer
Wagner / Mary Sue Parker), Jeff Daniels (Bill
Johnson), Joan Allen (Betty Parker), William H. Macy
(George Parker), J. T. Walsh (Big Bob), Don Knotts (Técnico de TV), Marley Shelton
(Margaret Henderson), Jane Kaczmarek,
Paul Walker (Skip), Dawn Cody (Betty Jean), Maggie Lawson
(Lisa Anne), Andra Taylor (Peggy Jane)