JORGE |
Como é difícil a vida de quase todo mundo aqui no Brasil. Os problemas são incontáveis, surpreendesntes, desesperadores, são tragicamente comuns, fatos do dia-a-dia. Mas um, neste momento, me entristece de vez. É parte da história do Sr. Jorge, que como muitos outros Jorges começou a vida bem cedo há quase meio século em São Paulo. Aquele tipo de homem que ajudou a construir aquela bizarra e monstruosa selva de pedra. Este Jorge, em particular, durante décadas, conduziu, como motorista de um ônibus coletivo, milhares de operários aos seus destinos. Por vezes teve que trabalhar à noite, enfrentar enchentes, rezar para não ser vítima de um assalto com morte. Também sonhou. Constituiu numerosa família, fez questão de por todos os filhos na escola e não faltou uma missa aos domingos. Enfim, também tomou pinga no boteco daesquina, fumou cigarros baratos e jogou partidas de truco com os amigos. Viveu simplesmente. No último ano, já num outro milênio, ora futuro, o Sr. Jorge ainda viveu. Franzino, moreno, com barba bem feita e bigode aparado, penteava com cuidado e para trás a vasta cabeleira branco-amarelada. Vestiu, noutro dia, uma calça jeans desbotada, uma camisa de gola larga e o paletó do casamento desfeito. E o bravo guerreiro, o patriota feliz, o construtor de uma Capital, pentacampeão do mundo, foi despedido. Posto para fora juntamente com uma centena de colegas. Passou dias e dias em longas filas tentando novo trabalho. Frustrações. Para não deixar os filhos morrerem de fome, passou a catar latinhas. Com orgulho pôde, de novo, levar para casa o feijão e o arroz. Mas como as costas e as juntas lhe doíam nestas noites de frio. Um martírio esquecido só a partir das quatro da madrugada, quando tinha de levantar. "Tenho que me aposentar", pensou o sexagenário Jorge, mês passado. Mas seus papéis se perderam na empresa, antes que fosse executada uma busca e apreensão judicial, requerida pelo sindicato. "Só aceitamos documentos, senhor!", esbravejara a funcionária da Previdência. "Mas dona...". "O próximo!". Desistiu. Hoje, porém, o bravo Jorge não se levantou. Todos estranharam o adiantado da hora sem que se ouvisse sua rouca tosse. Com os olhos abertos e úmidos jazia, frio, em seu leito. Parecia até estar dormindo acordado. Tinha os pés calosos para fora da coberta remendada. Com as mãos no peito, parecia fixar, atônito, São Jorge golpear o dragão sobre a penteadeira. |
Textos de Éder David - Academia Caetiteense de Letras - Caetité - Bahia - 2003 - Todos os direitos pertencem ao Autor |