Universo Paralelo |
Num certo sábado, estive em mais uma de minha habituais andanças pela feira de Caetité, a principal, há anos instalada na nova Praça do Mercado. Normalmente sempre acontecem (ou aconteciam) coisas curiosas nas feiras das cidades do interior. Um destaque eram os vendedores de remédios naturais, antídotos feitos à base de ervas e até de venenos de cobras, capazes de curar tudo, tudo mesmo: anomalias somáticas, dores nas juntas, ossos, coluna, implacável contra os vermes. Era tomar ou passar e pronto. Milagre! Ao redor desses negociantes se juntavam dezenas de curiosos, todos quase sempre esperando pela abertura de alguma mala, na qual supostamente estava preso algum bicho. Vez e outra esta mala era aberta e, para total surpresa, estava lá uma cascavel, uma jibóia, entre outro animal não menos medonho. Uma festa, principalmente para a criançada. No dito sábado, há uns cinco anos, quando os espetáculos já estavam mais escassos, eis que surge um "índio" na feira. Pelo menos assim se definiu um legítimo cafuzo - vez que lhe eram nítidas as feições de negro e índio. Ele estava no centro de vinte a trinta pessoas dando o seu show. Uma espécie de espetáculo circense, do qual faziam parte pulos, cambalhotas, gritos (muitos gritos - parecidos com os de lutadores de artes marciais), malabarismos, etc. Uma infinidade de atrações em plena feira. O curioso é que quase nenhuma das ações espetaculares do "índio" dava certo. Ele pedia silêncio da todos - expectativa - se concentrava elevando os fartos beiços e... ai! Dificilmente completava o número. Era um salto que saía desmazelado, uma cambalhota esquisita, um prato suspenso que caía, etc. A maioria presente ria, é claro. Alguns, inclusive eu, aplaudia envergonhado. Os "bebuns" (e são muitos em dia de feira), a um só tempo riam e insultavam. "Pé-Duro", um famoso beberrão, não parava de gritar seu jargão predileto (sua marca): "eu vô imbora, eu vô imbora, eu vô imbora..." Mesmo assim, feliz, dei a minha contribuição pelo espetáculo: depositei um Real no chapéu de palha que passou e saí. Um ano depois, já noutro passeio pela feira (num sábado que corria sem grandes atrações), não é que vejo de novo o mesmo cafuzo; digo, aquele "índio"? Foi quando estava comendo alguns pastéis de pizza na barraca de "Soim" que ele passou, assoprando um tubo artesanal, possivelmente feito de cano pvc, não recordo exatamente. Uma algazarra. Na verdade, um barulho ensurdecedor. Para o "índio", é claro, eram executadas as mais belas melodias, em precisa entonação. Por apenas cinqüenta centavos, o instrumento. A meninada acompanhava em festa. A feira, então, mudou de repente. A alegria estava de volta, o espetáculo ressurgira em trânsito pelas barracas. Meses depois, avistei novamente o "índio" ao passar a trabalho num interior próximo, onde pude ver, do carro, o mesmo cafuzo aplicando outro dos seus espetáculos na feirinha local. Mas foi tão rápido que pareceu uma lembrança fugaz. Desde então não mais tinha visto "índio" algum em Caetité. A feira, sempre palco de encontro de amigos, passarela das noivas da roça, lugar das compras e dos rolos, encosto dos bêbedos, ponto da sinuca, das brigas ébrias, não mais tem sido a mesma. Também ali estamos tendo de seguir com automação o cotidiano vulgar. Os sábados estão se repetindo dia a dia. Cadê as cobras, as lombrigas, as solitárias mergulhadas em formol? Não mais as vi ou pude esperar. Hoje não é sábado. Estamos numa segunda-feira. Mas algo me fez reviver os momentos bons da Praça do Mercado. Uma presença apenas. Avistei novamente o "índio", o mesmo meio índio. Pude reconhecê-lo de longe. Desta vez não na feira (não importa), mas da porta do Fórum Vanni Silveira. Primeiro pelo seu grito de ninja, inconfundível. Depois pela cambalhota incomum, igualmente ímpar. Lá na esquina da Praça da Catedral, no lado oposto à barraca de acarajé, um corpo rolou intencionalmente. Que beleza! Era mesmo o "índio"! Pude ainda ouvir as risadas de duas meninas que se aproximaram do artista. Também eu passei próximo dele. Eis então o "índio" sentado no banco, agora numa posição de profunda "meditação". Curiosas as feições que tomaram seu rosto cafuz, momentaneamente "tibetano", um misto de careta e alongamento facial. Mais de perto pude perceber também seus cabelos grisalhos, seu corpo velho e gasto. As rugas saltavam aos montes. Deu pena ver aquela fisionomia crepuscular, aparente tristeza num olhar supostamente cansado, longe do nosso mundo, parece que abertos apenas para um outro, desconhecido e particular - um universo paralelo - guarida de mais um louco, de mais um doido feliz, longe, por opção, dos entraves presentes, dessa realidade cínica e viciosa, ao extremo dos maus, à revelia de todos nós - os verdadeiros homens tristes. |
Textos de Éder David - Academia Caetiteense de Letras - Caetité - Bahia - 2003 - Todos os direitos pertencem ao Autor |