:::TEXTOS::: |
Textos de Evando Carele de Matos - Academia Caetiteense de Letras - 2004 - Todos os direitos pertencem ao Autor |
CRIME PASSIONAL |
Seu corpo estava inerte e mais leve; a alma já havia alçado vôo. Era por volta das dez horas de uma ensolarada manhã de sábado. O oxigênio contido no ar daquele quarto não seria mais, por ela, utilizado. O vermelho do seu sangue, cor de sua predileção, predominava naquele ambiente, pintando uma paisagem efêmera. Contrastantemente lá fora podia-se vislumbrar um céu profundo e límpido, num azul intenso e belo. Obviamente, ela não poderia mais alcançar o orgasmo, mas poderia, quem sabe, mesmo desprovida do sopro da vida, levá-lo a atingir o seu - ele pensou. Incontinenti e inexoravelmente serviu-se, pela última vez, daquela que muitas alegrias havia lhe proporcionado, mantendo a única forma de diálogo que lhe parecia ainda possível - a linguagem do corpo, a conjunção da carne. Após aquele deleite mundano, sem vacilar o passo, dirigiu-se à ampla sala daquele casarão, com seus confortantes sofás e belas cadeiras. Pendurado numa de suas paredes encontrava-se um quadro, óleo sobre tela, mostrando uma madona nua, obra da renascença italiana. Naquela sala havia, também, um cristalino espelho. Era um espelho grande, muito brilhante e que representava as imagens de maneira fiel. Nele refletiu uma fisionomia impassível. Fez uma ligação telefônica. Em seguida, relegando sua bebida preferida - whisky - serviu-se de uma generosa dose de campari, escolhida, talvez, pela sua característica cor, que coadunava melhor com o tácito e nefasto ambiente do quarto ao lado. Não sorveu a bebida de um gole só, como era de seu costume, mas degustou-a pausadamente, gota a gota. O acontecido não alterou-lhe nada; não revelava nenhuma emoção. Até o rosto pétreo e o semblante sério e taciturno eram os mesmos. Não chegou a manifestar nem alegria nem tristeza. O que fez parecia não motivá-lo. Era possuidor de um coração sem tribunal. Sempre foi um homem de uma simpatia introvertida, onde o riso era tímido, a risada era rara e a gargalhada dificilmente acontecia. Ligou a eletrola. O disco que já se encontrava no prato emitiu os primeiros acordes de "Funeral March of a Marionette", de Gonoud. Seus sentidos eram os mesmos: podia vê-la com os mesmos olhos; cheirá-la, sentindo o aroma do seu corpo, mesclado com o usual perfume de jasmim; beijá-la e sentir o gosto de seu sabor; tatear o seu escultural corpo, viajando por suas curvas; ouvir o ruidoso e interrogador grito do seu silêncio. Voltou ao quarto e beijou-a uma vez mais. O vento norte abriu uma janela, penetrando uma forte rajada de ar que interrompeu o seu mordaz e empáfio pensamento. Neste momento, a polícia adentrou a casa. Ele retirou-se sem olhar para trás; nem ao menos para saber se haviam coberto o corpo desnudo. Ao sair observou que o sol já se agonizava no horizonte, por detrás das montanhas - testemunhas solitárias do seu louco e impiedoso ato. Era verão; a umidade encontrava-se elevada, o céu estava se tornando nublado, o azul fazia-se cinza. A chuva estava prestes a cair. Ao entrar no carro, o empurrão que o policial lhe deu jogou-o de encontro com sua nova realidade. Aí pensou e concluiu que o paradoxo é possível; ele que foi a sua vida, foi também a sua morte. Chegou à sua nova morada - a penitenciária onde se "hospedaria", até adquirir um estilete. Logo fez-se noite. De uma escuridão total, açoitada por relâmpagos. Foram uns poucos e reflexivos dias. Vencendo seu tempo e ganhando seu espaço, na missa de sétimo dia de sua amada, ele juntou-se a ela, novamente. Para sempre. |