QUITÉQUETEH -
Uma
oportunidade de estudo
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Pemba,
capital da Província de Cabo Delgado, é a cidade onde se localizou o
tema de trabalho dos alunos da licenciatura da Faculdade de
Arquitectura e Planeamento Físico da UEM durante o ano lectivo de
2003/2004. Foi uma boa ocasião para observarmos a cidade, ouvirmos e
vermos as razões do desenho e das pessoas, de modo a tentar
compreender melhor as razões da arquitectura das áreas em estudo.
Estamos perante uma realidade fortemente marcada por contrastes,
como acontece com todas as cidades moçambicanas e, de uma maneira
geral, com quase todas as cidades por este mundo afora. Porque a
cidade, para além de ser o tipo de aglomerado humano onde a
democracia se afirmou como tal, é também a forma de organização
espacial humana onde talvez sejam mais visíveis a desigualdade, o
desnivelamento social, a luta pelo alcance de metas ou
desconstrução das vidas, o exacerbamento de paixões; mas também o
sítio da construção frenética, do aparente conforto extremo, do
desenvolvimento, da discussão criadora, das mentes julgadas mais
livres..., por vezes mesmo reféns do seu apego à liberdade. Tudo
isto é bem visível no núcleo inicial do actual bairro de
Paquitequete, o mais velho assentamento informal da cidade. Talvez
mesmo um núcleo mais velho do que a própria cidade: a sua povoação
de origem? É sobre este assentamento inicial e mais antigo da zona
informal da cidade de Pemba que incidirá a presente análise.
O Bairro Paquitequete está hoje definido como sendo uma agregação de
quatro zonas: a zona A, B e C que coincidem respectivamente com os
antigos bairros de Quitéqueteh (genericamente designado também por
Paquitequete e que incluía a zona do Cufungu), Cumissete/Cuparata e
Cumilamba. No seu conjunto, o Bairro assim definido possuía 9162
habitantes em 1997, distribuídos por 1665 casas. É servido por
quatro escolas primárias, sendo duas do EP1 e uma do EP2, possui um
Posto Médico novo, desde meados de 2004 e duas Mesquitas, sendo uma
delas, a maior, o edifício mais importante das redondezas. Neste
trabalho abordaremos aspectos espaciais e arquitectónicos apenas da
parte mais antiga do actual bairro de Paquitequete (e que hoje se
estendeu ao conjunto das quatro zonas referidas), o qual, daqui em
diante passaremos a designar por (Pa)Quitéqueteh.
O bairro de
Paquitequete: designação e preexistências.
Custa-me apelidá-lo de informal pela sua idade; pela sua
personalidade; pela delicadeza da sua gente cheia de regras, de
cumprimentos formais, de tradições e de mitos. Lugares assim como
este só são informais porque as leis dos Estados que temos, não
apenas no nosso país, não souberam ainda caber neles.
Disse-me um velho morador da cidade, outrora residente no bairro,
que o seu nome original não era esse. Quitéqueteh não foi sempre
Quitéqueteh. Aqui passo as estórias seguintes sem documento escrito
que as fundamentem:
- diz-me o Sr. Jacob Mamudo que o nome original, antes mesmo do
início do séc. XX, teria sido M'pira ou Nu Pa'mpira. Sendo Pa'mpíra,
era de supor que o nome do lugar resultasse de quaisquer
árvores-da-borracha que ali tivessem existido. O tipo de flora que
hoje ali se vê, bem como o típo de solo que caracteriza o local
levam-me a duvidar desta explicação. É dúvida, e não certeza da sua
impossibilidade, porque está documentada a existência, em tempos
idos, do negócio da borracha, o qual atraía mercadores para a
região, havendo gente que se lhe refira ainda agora. De resto,
também ainda hoje é possível ver crianças de localidades do litoral
Norte de Cabo Delgado, nomeadamente na região de Macomia, a
brincarem com bolas feitas com um látex esbranquiçado e translúcido,
com um comportamento semelhante aos das normais bolas de borracha.
Quanto à expressão Nu P'ampíra, ela resultaria do facto de o pequeno
assentamento, de que eventualmente surgiu o actual bairro, ter tido
como chefe local uma senhora de nome Pampíra, e daí Nu Pampíra, o
que, traduzido para o português, seria a Senhora Pampíra. Será? Cá
está um tema interessante para os historiadores, antropólogos,
botânicos e outros especialistas, de modo a discernirem sobre a
verdade dos factos. O certo é que, em mapa de Jerónimo Romero, de
1860, no qual a praia localizada na zona do actual bairro de
Paquitequete aparece com a designação de Pampira. E mais ainda: a
versão da tradição oral que atribui a origem do nome do bairro à
designação M'pira ou Mepira também encontra apoio no mapa de Serpa
Pinto, de 1984/53. Interessante, esta coincidência entre as fontes
orais actuais e os documentos antigos. Outras versões:
-Disseram-me também que, quando no início da primeira década do séc.
XX, a sede da Companhia do Niassa mudou provisoriamente do Ibo para
Pemba – a Porto Amélia do tempo colonial, nome de uma rainha
portuguesa, à maneira da Port Elisabeth sul-africana em nome da
rainha inglesa - os pequenos funcionários da administração colonial
no Ibo, maioritariamente mestiços e assimilados e outros habitantes
da ilha, se estabeleceram naquele bairro. Era um local povoado, com
espaço disponível, e próximo do pequeno estabelecimento formal que
hoje configura a parte mais velha (e também a parte mais abandonada)
da actual Pemba, a antiga Baixa da cidade, outrora ocupada pelas
elites comercial e administrativa do lugar e por algumas
instituições. E deram ao bairro o nome que hoje ostenta:
Paquitequete, ou seja, na língua kimwani, «no lugar onde as pessoas
residem», ou «no lugar onde há uma aglomeração de pessoas», ou, mais
livremente, «no povoado».
-Segundo o antigo Presidente do bairro, o Sr. Ahmada Abdala, os
velhos do bairro dizem que o lugar em que se ele se erigiu se teria
chamado inicialmente Pa Nuno, que quer dizer "o lugar da senhora"
(de novo a referência a uma tal senhora local); e que o actual nome
do bairro - Paquitequete - deriva da palavra Kutéqueterah, que
significa "o acto de sumir sem deixar rasto, o acto de alguém deixar
de ser visto no meio de uma densa mata, por exemplo". Também se
referiu à existência de arbustos parecidos com as mandioqueiras, que
davam um látex do tipo da borracha, com o nome local de m'pira, dos
quais existiriam ainda alguns espécimes em 1950. De uma das formas
descritas por estes testemunhos, ou de parte delas, ou ainda de
outras formas, se teria fixado a actual designação do bairro. Será?
E qual delas é válida?
Da maioria destas versões ressalta a ideia de que o lugar era
ocupado por densa vegetação, a qual, de algum modo, teria estado
relacionada com a sua designação em algum momento da sua história, e
que esse lugar possuía espaço que podia ser reconvertido para
ocupação humana, próximo do centro comercial do novo estabelecimento
da elite ligada ao poder colonial. Este local tinha a vantagem de
estar dele separado por uma língua de mar, evitando promiscuidades
indesejáveis para os colonos e, simultaneamente, permitindo aos
novos residentes locais uma maior independência de organização
segundo as normas e os usos da sua cultura.
Em conclusão: independentemente das explicações e origem do nome do
bairro, ele localiza-se numa mancha de solos dunares de uma língua
de terras baixas separada, por uma entrada de mar, do ponto extremo
e mais baixo do promontório em que se localiza a parte formal e mais
antiga da cidade de Pemba. Essas terras baixas teriam sido, outrora,
ocupadas por uma densa mata de vegetação, em que o mangal também
existiria como uma componente importante. É provável que a escassa
vegetação natural que ainda existe junto às margens da lângua,
periodicamente alagada pelas marés, seja um resquício da vegetação
que, originalmente, povoou a zona de Paquitequete, hoje coberta de
coqueiros, uns trezentas no dizer do Presidente do bairro.
Elementos de
caracterização urbana
Aspectos gerais
Do ponto de vista morfológico, o bairro apresenta um padrão sinuoso
de organização espacial, no qual é possível distinguir, no entanto,
não só uma hierarquia de ruas, caminhos e passagens, alguns dos
quais não têm mais de um metro e meio, bem como uma rede de espaços
abertos do tipo largo ou praceta também claramente hierarquizáveis
consoante a sua dimensão, funções e história. Até fins da década de
cinquenta do século passado o bairro estava ligado em permanência à
cidade formal (a antiga Baixa de Pemba) por uma ponte de madeira
para peões, a chamada Ponte Chica. Esta construção, localizada no
enfiamento da velha Mesquita da antiga parte baixa da cidade, foi
abandonada e desapareceu depois da construção do drift de betão
armado, construido no início da década de sessenta, que hoje permite
o acesso ao bairro, não apenas a peões, mas também a veículos
motorizados. Na preia-mar a zona de Quitéquetê é quase completamente
rodeada pela água do mar que avança pelo canal que a separa da
cidade formal. Por vezes, nas marés vivas acompanhadas de temporais,
Quitéqueteh transforma-se mesmo numa ilha. Um percurso pela
principal via de circulação do bairro, com incursões laterais para o
interior do casario, apoiado pelas entrevistas realizadas e pela
memória da situação da sua ocupação antes da independência, fez
ressaltar as seguintes percepções:
(i) não parece que o bairro se tenha densificado, no seu miolo, a
ponto de terem desaparecido os mais importantes espaços livres que
existiam no princípio dos anos setenta (ou mesmo antes). Permanecem
livres muitos desses espaços característicos dessa altura e que
ainda hoje são importantes para o Jazer e a comunicação
inter-pessoal e colectiva, e aonde as crianças brincavam e os
adultos socializavam ao fim da tarde, e que poderíamos classificar
como espaços de tudo e de nada (alguns dos quais do tipo das
pracetas quase fechadas, à maneira árabe);
(ii) é possível hoje atravessar o bairro, inclusive de carro, a
partir da ponte que lhe dá acesso, voltando ao ponto de orígem, o
que significa que o objectivo de possibilitar a circulação de
emergência para o interior do bairro terá sido respeitado e
realizado;
(iii) o aumento da ocupação do bairro fez-se essencialmente com a
utilização de espaços (muito desaconselhável) junto à praia na zona
Noroeste do bairro e das franjas livres nas margens do canal de
entrada de mar, junto à baixa antiga da cidade, reduzindo-se a vazão
deste e agravando-se a sua poluição bem como o maior espalhamento da
água do mar e deposição dos lixos, pelas marés-cheias, ao longo da
área alagadiça que se prolonga até à zona de Cumilamba.
As ruas e caminhos.
Como se referiu o sistema viário é composto por um sistema de
vias desenvolvido organicamente e no qual se pode definir a seguinte
hierarquia:
- a(s) rua(s) principal(is), estabelecendo articulação com o resto
do tecido urbano da cidade e permitindo o atravessamento do bairro,
pelo seu interior; inclusivamente por veículos motorizados de
pequena envergadura (carros ligeiros);
- os caminhos de penetração, estabelecendo a ligação entre o
subsistema principal com o miolo do bairro (motorizadas e
bicicletas);
- caminhos vicinais muito estreitos permitido o acesso directo ás
habitações, e em que, geralmente, não podem circular mais de duas
pessoas lado a lado.
Os espaços
alargados
Quanto a este tipo de espaços de estar ao ar livre e de
integração pudémos estabelecer as seguintes categorias:
- o espaço alargado nucleado (do tipo largo ou praceta), para o qual
os caminhos de penetração e vicinais convergem, e que funciona como
lugar de socialização e elemento espacial de integração das
habitações que dele se servem;
- O espaço alargado linear, que também serve o estar ao livre e a
integração das habitações, mas que resulta do alargamento de uma via
de circulação, em geral uma via de penetração.
- o espaço misto, no qual se associam o espaços públicos alargado
linear e nucleado;
- o espaço alargado indefinido.
Na entrevista ao sr Anli Abujade, morador da praceta que analisámos
com mais detalhe, ele informou-nos que o espaço livre da praceta era
muito importante para os moradores.
Foi assim que ele definiu a relevância desse espaço: "Este largo
serve para muitas coisas. São lugares muito importantes para nós.
Serve para os batuques (sessões culturais tradicionais); serve para
as cerimónias religiosas, como por exemplo o Maulide; serve para as
crianças e jovens se encontrarem e brincarem; areja e desafoga o
quarteirão."
Infra-estruturas
No que respeita a infra-estruturas desta zona, podemos fazer a
seguinte caracterização sumária: a maioria das casas tem luz
eléctrica, uma parte das casas é servida de água canalizada, outra a
partir de poços e outra ainda a partir de fontanários.
O total de fontanários nas três zonas é de 5, sendo dois em
Quitéqueteh, dois em Cumissete e um em Cumilamaba. A água dos poços
não é própria para beber. Ela geralmente é utilizada para lavagens e
banho. Obtivemos no entanto informações de que, em situações de
grande carência e de interrupção por avaria do sistema de água
potável da cidade, a população recorre ao consumo da água dos poços.
As casas.
No âmbito da arquitectura, a tipologia relevante e que merece
uma reflexão mais detida é a habitacional. Para procedermos a uma
abordagem fundamentada deste tema visitamos o bairro e, uma vez
detectados os subtipos de casas mais frequentes, deu-nos o acaso a
sorte e a surpresa de encontrarmos um espaço alargado, de tipo
praceta, praticamente fechado, no qual estavam representados esses
subtipos mais significativos, não apenas nesse bairro mas também
noutros bairros informais da cidade de Pemba. O efeito surpresa é
ampliado pelo acesso à praceta, a partir da via principal, por um
caminho curto e estreito e com não mais de um metro e meio de
largura, desembocando num espaço expandido cheio de luz, limpo e bem
definido.
O desenho.
Na praceta estudada encontram-se em sequência várias casas que,
do meu ponto de vista, reflectem por um lado o processo histórico de
apropriação local, adaptação e desenvolvimento da casa de matriz
swahili e, por outro lado, a influência de casa da cidade moderna.
De facto, nas fachadas Nascente e Norte as casas são de elaboração
mais recente e denunciam a atitude de transposição para o informal,
pelos respectivos proprietários, de elementos de imagem e volume
captados e reinterpretados em exemplos da tipologia habitacional da
zona formal da cidade. Na fachada Poente, de apenas quatro casas, e
como se, estivessemos perante um mostruário bem sintetizado da
história, no litoral Norte do país, do evoluir da casa popular por
aquisição de elementos exógenos, os quais foram repensados sobre uma
mesma base arquitectural de tipo swahili, segundo uma lógica de
afirmação ou reelaboração de opções espaciais, de natureza endógena.
Parece evidente, neste caso concreto, o facto de estarmos perante
influências do desenho das casas da ilha do Ibo, estendendo-se para
o Quitéqueteh o processo de transformações ali iniciado. Pelo seu
interesse fez-se a observação mais detalhada das casas do alçado
Poente da praceta e entrevistamos alguns dos actuais proprietários
para entendermos os processos as técnicas e os materiais utilizados.
Procedeu-se a um levantamento arquitectónico expedito do conjunto de
casas desta ala da praceta cujos moradores eram, de Sul para Norte,
a Sra. Chamo Arame e os seus netos e bisnetos (seis pessoas), o Sr.
Anli Abujade e esposa mais os filhos e cunhado (oito pessoas), o Sr.
Mussa Nssaje e esposa, filha e netos (seis pessoas), a Sra. Zainaba
Abubacar mais as netas e bisnetas (seis pessoas).
De um modo geral as quatro casas analisadas apresentam uma coerente
similaridade tipológica, particularmente no que se refere à opção
básica de organização espacial, caracteristica das casas populares
de tipo swahili, e que se reflecte principalmente na sua
compartimentação. Os elementos de diferenciação estão relacionados
com (1) as normais necessidades de ampliação comummente realizadas
com a adição, ao longo do tempo, de compartimentos nas alas laterais
e na fachada frontal; (2) o fechamento da sala, fazendo com que o
corredor central se estenda desde a fachada frontal até à fachada
posterior; (3) a utilização de elementos construtivos regionais,
como o tecto falso e os bancos nos extremos da varanda frontal,
sendo estes muito utilizados nas casas do Ibo e também nas casas da
zona de macúti da ilha de Moçambique; (4) o uso de materiais e
técnicas de construção mais recentes ou modernos, nomeadamente o
cimento, o varão de ferro, o bloco de alvenaria, a chapa zincada
ondulada, o vidro, as ferragens e as tintas industriais...
A casa de Chamo Arame, a mais antiga do conjunto, é aquela que
melhor reflecte a volumetria e a imagem das casas populares do
litoral Norte de Moçambique. Por seu lado, e não obstante a
extensão do corpo do edifício para a varanda frontal, a casa de
Mussa Nssaje é aquela que melhor representa o tipo de habitações de
estratos da população relativamente mais pobre, integrada no
sistema de produção camponesa de subsistência. A casa de Zainaba
Abubacar é aquela que apresenta mais elementos de aculturação a
partir da cidade moderna (os materiais, a organização espacial e a
definição da cobertura em duas águas, posteriormente transformadas
em três por ampliação da casa), sendo tipologicamente mais próxima
das casas de estratos populacionais mais ricos e ou ligados ao
sistema de comércio internacional do índico.
Quanto à paleta de materiais tradicionalmente utilizados encontramos
aqui: o uso de pau redondo e varas de diversos tipos de espécies
vegetais, com particular realce para o pau e varas de mangal
colhidos maioritariamente no interior Nordeste da baía de Pemba; o
uso do macúti ou de folhas de palmeira brava nas coberturas; o uso,
como elemento de amarração, de cordas da casca de espécies arbóreas
do interior da província; o uso de terra argilosa obtida
nomeadamente na encosta mais próxima do promontório em que se
desenvolve a cidade de Pemba e na lângua ou área pantanosa alagadiça
junto ao bairro; o uso generalizado do bambu para a construção das
paredes com a técnica do maticado e para a construção dos tectos
falsos.
Um caso
específíco.
Pelo seu interesse tipológico e motivações procedeu-se a um
levantamento mais detalhado da casa de Anli Abujade, com quem
tivemos uma conversa mais longa sobre os processos, técnicas e
materiais de construção, e da qual reproduzimos o seguinte:
- O terreno foi adquirido por dois milhões e quinhentos mil meticais
em 1998 e, nesse mesmo ano, foi por ele construída a casa. Na sua
concepção utilizou, como o próprio nos descreveu, o modelo das casas
da ilha do Ibo. Tem duas varandas: uma varanda fachada posterior
para serviço e estar privado, onde durante o dia a esposa, filhos
pequenos e amigos podem ver a televisão, e outra varanda na fachada
frontal, para estar e descanso em contacto público. Na varanda
frontal utilizou os cantos para colocar dois bancos de repouso em
cimento (que no Ibo são chamados 'xequina'). A compartimentação
interior segue o tipo comum da ilha. A casa possui uma casa de banho
de dentro no corpo principal do edifício, para serventia privativa
do casa, e uma casa de banho de fora, localizada no quintal, para
serventia geral. As construções anexas consistem numa cozinha com
despensa, um forno coberto e uma capoeira. Na construção das paredes
foi utilizada a técnica do pau-a-pique maticado, tendo sido usados
neste caso prumos de madeira de mangal (Ceriops tagal), meias canas
de bambu, cordas feitas com tiras de borracha, pedra pequena, terra
argilosa e cimento para o reboco, o qual é duas vezes mais espesso
no exterior do que no interior. Um aspecto que vale a pena realçar é
o facto de a casa possuir um estrado superior que funciona
simultaneamente como tecto falso, como arrecadação e armazém de
produtos e ainda como base sobre a qual assentam os prumos que
conformam a cobertura. Este estrado, muito comum nas construções
populares no campo e que constatámos estar muito divulgado nas zonas
informais de Pemba, é construido com canas de bambu inteiras
assentes em vigotas de madeira de outro tipo de mangal, (Avicennia
marina). É provável que este tipo de conformação da cobertura com
base em dois prumos assentes num estrado, eventualmente suportado
pelo conjunto das paredes inferiores, seja uma evolução da estrutura
da cobertura das casas swahili que é basicamente constituída por
dois prumos contínuos com função verdadeiramente estrutural
enterrados na base da casa. A cobertura, de quatro águas, é feita em
placas de macúti, sendo de quinze centímetros a sobreposição das
placas (maior do que o espaçamento corrente), o que, segundo o dono
da casa, melhora a duração do seu funcionamento eficiente que,
normalmente, varia entre um e meio a dois anos. A habitação é
abastecida de água e de energia eléctrica das redes gerais da
cidade. Todo o edifício principal está sobrelevado em relação ao
nível natural do terreno, sendo o pavimento em cimento queimado à
colher pequena.
Elementos de
personalização singularidade do Bairro, ou factores de coesão e
resistência?
Logo após a proclamação da independência nacional, Quitéqueteh
deveria ter sido objecto de uma operação de des-densificação.
Pretendia-se abrir espaço no então referido como um emaranhado de
casas, para criar condições de melhoria da salubridade. Houve de
facto moradores que, no quadro dessa intenção, e entre 1976 e 1978,
se mudaram para novos atalhoamentos14 no bairro de Ingonáni, na zona
livre então mais próxima da parte alta da cidade de Pemba. Mas não
foram muitos os que se mudaram. Não muito mais de três centenas de
pessoas. Parece que não o fizeram cedendo às necessidades de
melhoria da salubridade do bairro e nem sequer se tratou de
moradores antigos do bairro. "Fizeram-no porque uma tempestade mais
violenta provocou a inundação de partes da zona de Cufungo e da zona
de Cumissete". Se considerarmos que pelo menos esta última zona não
fazia parte do que antes da independência se considerava o bairro de
Paquitequete, então podemos deduzir que nessa transferência de
população para a parte alta da cidade terão participado muito poucos
habitantes do núcleo original do actual bairro de Paquitequete.
Na realidade os moradores de Quitéqueteh apresentam fortes elementos
de coesão que tornam eventualmente mais complexa qualquer operação
de realojamento, nomeadamente as relações de vizinhança, as rotinas
diárias consolidadas, a utilização da língua kimwani como língua
veicular (ao contrário do que acontece no resto da cidade), as
fortes referências culturais ligadas aos antepassados das ilhas
Quirimbas. Fui uma das testemunhas da difícil discussão havida nessa
altura (em data compreendida entre cerca de 1975 e 1976) com a
população desta zona, no sentido de a sensibilizar para a abertura
de espaços de circulação e equipamento social, construção de
latrinas, melhoria da habitação, prevenção de incêndios etc. Sim a
tudo isso, sempre que possível, mas não à mudança de bairro. E ficou
claro que o apego ao lugar era mais forte do que uma aparentemente
«vaga intenção governamental louvável de melhorar a sanidade do
bairro», sobretudo porque isso parecia significar para os moradores
de Quitéqueteh o despojamento em relação à sua própria identidade de
cultura e de história. É evidente que esta situação terá de se
alterar um dia. Hoje começa a haver jovens que acabam por se mudar
voluntariamente para outras áreas da cidade com mais espaço
disponível, embora distantes, nomeadamente a área do Wimbi.
Nas entrevistas feitas aos moradores Anli Abudjade, Mussa Nssadji e
Ahmada Abdala ficou evidente que as relações da população de
Quitéqueteh com o resto da cidade se resumem ao absolutamente
necessário. Vai-se à cidade para trabalhar, para comprar produtos
processados ou de produção industrial que não existem nas barracas
ou lojas informais locais (por exemplo arroz, açúcar, roupa,
instrumentos e utensílios diversos), para tratar de assuntos na
Administração e noutras repartições do Estado, para assistência
médica no Hospital Provincial e pouco mais. Os problemas mais comuns
e correntes da vida diária acabam por encontrar solução no próprio
bairro. Não existindo um mercado permanente de produtos alimentares
frescos, o abastecimento destes produtos essenciais é feito através
do que os moradores inquiridos chamaram de mercado temporário que,
todos os dias às seis horas da manhã se constitui na praia de
Cufungu, a partir de mercadores de frescos que trazem diariamente os
produtos obtidos na outra margem da baía, em Metuge, e os colocam à
venda, em prioridade à população do Paquitequete, ali mesmo em plena
praia de desembarque dos barcos em que se transportam. Assim se
obtêm, nalguns casos de acordo com a época própria, a papaia, a
banana verde e madura, a melancia, o pepino, a batata-doce, a
abóbora, o tomate, a couve, a cenoura, a cebola branca e vermelha, a
beringela, a mandioca fresca e o piripiri, bem como o peixe fresco e
o peixe seco. A importância deste mercado temporário de todos os
dias é reforçada pelo facto de muito poucas famílias do bairro
possuírem machambas para abastecimento familiar. Será este um sinal
do carácter eminentemente urbano do bairro de Paquitequete, ao
contrário de muitos dos bairros da periferia das pequenas e médias
cidades do pais? É que me parece que a distância às áreas
agricultáveis não é argumento suficiente para que a maior parte da
população de Quitéqueteh não possua machamba, inclusive a sazonal,
na qual um membro da família para lá se desloque durante a época de
produção, como pudemos observar, por exemplo, na cidade de Lichinga. |