O conhecedor
A primeira condição para se escrever um bom policial inglês, eu
sei, é ser inglês, mas isso não me detém. Afinal, a primeira condição para
ser cronista do JB é dominar o português e isso também não me detém.
Aqui vai mais uma cena do livro que estou escrevendo e que só será
publicado quando eu me mudar para Londres, trocar meu nome para Nigel
ou Trevor e me dedicar à coleção de gravuras eróticas da era vitoriana e à
autoflagelação em algum úmido porão de Mayfair, entre goles de brandy
com soda. Leia-se com a apropriada entonação de Eton.
Lord Graverly passou a caixa de charutos entre os convidados. Do
esplêndido jantar que tinha servido sobraram apenas algumas manchas na
toalha de linho branco, os copos vazios das três variedades de vinho e um
ar de profunda satisfação no rosto de cada um. Era aquele mágico instante
que vem depois da retirada das mulheres para a sala e antes de servirem o
Porto, em que o império floresce de novo sobre a mesa e os homens
agradecem a Deus por serem ingleses. Lord Graverly esperou que todos
provassem o Porto antes de falar.
“Então”, disse o corpulento Lord, apontando para Peter com seu
charuto aceso, que ele segurava como um dardo, “você é o famoso
cientista, expert em manuscritos iluminados da era bizantina e na vida de
Mae West, criptógrafo, agente nem tão secreto do Governo de Sua
Majestade, famoso pelas suas aventuras, inclusive amorosas, maior
especialista vivo em peixes tropicais, fluente em 17 línguas vivas, quatro
mortas e duas semiconscientes, detetive amador com a reputação de jamais
ter deixado de desvendar um caso. Peter Vest-Pocket?”
“Não”, respondeu Peter, sorrindo.
“Como, não? Me disseram que...”
“Sou expert em manuscritos iluminados da era pré-bizantina. O
resto está certo.”
Todos riram mas o riso acabou em tosses embaraçadas e goles
extemporâneos de Porto, pois o anfitrião mantivera-se sério. Seus olhos
fixos no rosto de Peter eram como duas pistolas prestes a disparar. Lord
Graverly não achara graça.
Era um homem conhecido por duas coisas: sua fortuna e sua
crueldade. A fortuna tornara-se menor e menos ameaçadora com o passar
dos anos e os impostos progressivos, o que só aumentara sua crueldade.
Lord Graverly possuía minas na África, plantações na América do Sul, a
maior adega particular da Inglaterra e vinhedos na França, mas sua mulher
o abandonara e desaparecera para sempre, na certa incapaz de agüentar
seus caprichos. Um dia Lord Graverly desembarcara em Londres, vindo da
França, sem a mulher, e ninguém tivera coragem de perguntar por ela.
Homem de muitos comensais mas pouquíssimos amigos, Lord
Graverly debruçou-se sobre a mesa para dirigir-se ao seu mais recente
inimigo. Se sua voz pudesse ser engarrafada teria de ser mantida longe de
crianças. Estava carregada de veneno.
“Me disseram também que você é um grande conhecedor de vinhos.
O melhor que há.”
“O senhor é um homem bem informado, Lord Graverly”.
“E você, meu amigo, é um farsante”.
Os outros, que freqüentavam a Mansão Graverly pela comida e
pelas pequenas generosidades que o anfitrião lhes atirava, de vez em vez,
como migalhas, prenderam a respiração. Que homem intragável! Mas Peter
manteve-se calmo. Ainda sorria.
“Vou provar que você é um farsante”, continuou Graverly. “O
vinho que tomamos hoje com o carneiro, e que apresentei como sendo um
Saint-Emilion 47, e que você elogiou tão efusivamente, não era nada
disso”.
Todos os olhos se voltaram para Peter.
“Meu caro Graverly”, disse Peter, “eu notei antes mesmo de levar o
vinho à boca, pela cor, que não era um Saint-Emilion. Pelo bouquet notei
que não era nem um Bordeaux. Tive, no entanto, a decência de não
desmascará-lo. Se o senhor quer servir vinho inferior a seus convidados e
mentir quanto à sua origem, o problema é seu”.
“Isso você está dizendo agora para salvar a cara!”
“De maneira nenhuma. Posso identificar o vinho que tomamos. É
um produto do seu próprio vinhedo na região de Leporace, uma péssima
região para tintos, por sinal. Feito com uvas da encosta Leste da colina de
Givenchy-sur-Lac, da colheita de 1963, um bom ano para a região em geral
mas muito ruim para os seus vinhedos, devido ao solo muito maltratado.
Notei, pelo sabor, o excesso de material alcalino no solo. E notei outra
coisa”.
Lord Graverly parecia que inchava à medida que Peter falava. Mas
Peter não parou.
“Demorei a identificar o que seria esse outro componente do sabor.
Foi por isso que me forcei a aceitar outro copo do seu lamentável vinho.
Finalmente, identifiquei o estranho sabor. É de osso, meu Lord. Osso
humano. De uma pessoa do sexo feminino, provavelmente inglesa e eu
diria
mas claro que posso estar errado da região de Sussex, enterrada
ali por volta de 1961”.
E todos lembraram que a mulher de Graverly era de Sussex, quase
certamente do sexo feminino, que desaparecera em 1961, que o próprio
Lord fora o último a vê-la com vida e que, pensando bem, o assassinato não
estava fora de questão.
Mas Lord Graverly mudou de assunto.