DÓ, RÉ, MI, FÁ E MUITO MAIS: DISCUTINDO O QUE É MUSICA
Texto produzido pela Prof.a. Maura Penna
O que é música? Este é um tema aparentemente fácil ou mesmo óbvio. Afinal, em nosso dia-a-dia convivemos com música, e não temos muita dificuldade em saber do que se trata. I.igamos o rádio para ouvir um pouco de música enquanto dirigimos; cantamos no chuveiro; dançamos ao som de música. c por aí vai. .As manifestações musicais são extremamente diversificadas um concerto de orquestra sinfônica, um grupo de rock, de rap, de pagode.- um grupo de ciranda, de maracatu, de reisado... o coral da igreja, o canto na procissão... a roda de amigos que canta e batuca na mesa de bar, o violão na varanda da fazenda... São manifestações musicais diferenciadas: produções populares, eruditas (a chamada música "clássica'), ou da industria cultural - todas são música. Mas que características perpassam todas essas manifestações, tornando-as "música"? O que, em suma, caracteriza a música? . A questão, desta forma, já não fica tão óbvia.
Eu poderia tentar encerrar a discussão dizendo que a música é uma forma de arte que tem como material básico o som. Entretanto, na verdade, estaria apenas abrindo novas questões, pois não expliquei o que é arte, e portanto só desloquei o problema, que permanece em. aberto: afinal. o que é arte? O fato é que a concepção de arte vem sendo discutida por filósofos, estetas e os mais diversos estudiosos desde a Antigüidade clássica, variando conforme o momento histórico e a perspectiva de análise. Sendo assim, não vou pretender resolver a questão, mas apenas tentar esclarecer alguns de seus aspectos.
Apesar dos problemas da definição de música que apresentei - a música é uma forma de arte que tem como material básico o som -, proponho-me a tomá-la provisoriamente para a nossa discussão, em que vou questionar dois dizeres correntes, que costumam ser tomados como "óbvios" sem uma maior reflexão. Todos já devem ter ouvido falar que:
1 ) Os pássaros fazem música;
2 ) A música é uma linguagem universal.
Pretendo, aqui, questionar essas afirmações, opondo-me a elas.
A arte de modo geral - e a música aí compreendida - é uma atividade essencialmente humana, através da qual o homem constrói significações na sua relação com o mundo. O fazer arte é uma atividade intencional, uma atividade criativa, uma construção - construção de formas significativas. E aqui o termo "forma" tem um sentido amplo: construção de formas sonoras, no caso da música; de formas visuais, nas artes plásticas; e daí por diante.
Ao contrário dos pássaros, o homem constrói e cria diversos instrumentos para o seu fazer artístico: ferramentas diversas, de pincéis a formões; pianos, flautas, todos os instrumentos musicais; tudo isso e muito mais. Já os pássaros não criam ferramentas para as suas atividades: não criam instrumentos para a construção de ninhos e nem para o seu cantar. Seria possível argumentar que, em várias atividades artísticas, o homem emprega apenas os recursos do próprio corpo- como para cantar ou dançar. No entanto, mesmo nestes casos, o homem cria técnicas que utilizam distintamente o corpo, que de uma certa forma selecionam e aprimoram possibilidades da natureza, muitas vezes quase a desafiando. E essas técnicas de utilização do corpo estão ligadas a determinadas concepções de arte. Basta pensar, por exemplo, nos modos de utilizar a voz, tão diferentes em um cantor lírico - como Pavarotti - e em um cantor popular- como Zeca Pagodinho. Ou observar como as posições de pés no balé clássico se distanciam do andar natural, e até certo ponto contrariam a natureza. Desta forma, o desenvolvimento de técnicas para utilizar o corpo e a criação de instrumentos que expandam as suas possibilidades, a construção de ferramentas para o seu agir sobre o mundo são uma característica essencialmente humana - o que já diferencia, portanto, o fazer artístico humano do cantar dos pássaros.
Por outro lado, se pensarmos em uma determinada espécie de pássaro - um bem-te-vi, por exemplo -, ela canta do mesmo jeito hoje, como cantava quando eu era criança; canta do mesmo jeito aqui, como canta no Rio Grande do Sul ou em outro continente - se houver bem-te-vi por lá. Distintamente do fazer musical humano, o canto do pássaro não varia conforme o espaço ou o momento histórico: o cantar dó pássaro é da espécie, e caracteriza-o como o pássaro tal Não é, portanto, uma atividade significativa e intencional sobre o mundo, como a música do homem. Neste sentido, posicionam-se Antônio' Jardim e José Marcus de Castro Mattos, em seu instigaste artigo "Pássaros não fazem música; formigas não fazem política":
"Se os pássaros que cantam não cantassem como cantam não seriam aqueles pássaros. Se as formigas não se organizassem como se organizam não seriam formigas. Quer dizer: os pássaros não sabem, nem precisam saber, que cantam. Nós sabemos que eles cantam, eles não. Eles são o seu canto, eles só são."
Sendo assim., quando dizemos que os pássaros fazem música, estamos, na verdade, projetando sobre eles uma experiência nossa, essencialmente humana. Estamos interpretando o seu cantar na nossa' medida, estamos:, "humanizando" os pássaros.
Até este ponto de nossa discussão, é possível estabelecer que:
Os pássaros não fazem música. Os homens fazem música; criam, produzem música.
A música - ou melhor, a arte em geral - é uma atividade essencialmente humana , intencional, de criação. de significações. Neste sentido, podemos falar das linguagens artísticas.
Podemos, agora, passar a questionar a segunda afirmação: A música é uma linguagem universal.
Afirmei acima que, distintamente do canto do pássaro, o fazer musical humano varia, diferencia-se conforme o momento histórico e o espaço social. isto quer dizer que o fazer musical não é o mesmo nos diversos momentos da história da humanidade ou nos diferentes povos, pois são diferenciados os princípios de organização dos sons. E este aspecto dinâmico da música ë essencial para que possamos compreendê-la em toda a sua riqueza e complexidade.
Na medida em que alguma forma de música está presente em todos os tempos e em todos os grupos sociais, podemos dizer que é um fenômeno universal. Contudo, a música realiza-se de modos diferenciados, concretiza-se diferentemente, conforme o momento da história de cada povo, de cada grupo. Exemplifico: entre os sons possíveis de serem captados pelo ouvido humano, entre todos os sons da natureza e os possíveis de serem produzidos, cada grupo social seleciona, num determinado momento histórico, aqueles que são o seu material musical, estabelecendo 0 modo de articular e organizar esses sons. Assim é que, para a civilização européia e durante vários séculos, a música estrutura-se exclusivamente a partir das notas e dentro dos princípios da tonalidade: colocando de um modo bem simples, a música tonal utiliza sete notas (dó, ré, mi, fá, sol, lá, si) que cumprem funções distintas e hierarquizadas (como tônica, dominante, etc.) dentro de um determinado tom (por exemplo, dó maior); a partir daí são estabelecidos princípios para a organização das notas em sucessão (na melodia) ou em simultaneidade (na harmonia). Há, no entanto, possibilidades de sons que não se enquadram nas alturas definidas das notas musicais, e que são utilizados por outras culturas em sua música. Mas mesmo o modo como a tonalidade e seus princípios são definidos na música ocidental sofre variações, conforme o momento histórico. Uma evidência disto é o intervalo de 4a aumentada ou 5a diminuta, o chamado "trítono", hoje correntemente empregado sem causar grandes estranheza - quem toca violão conhece bem os acordes de 5a diminuta. Esse intervalo - composto pelas notas si e fá, por exemplo - era considerado, no século XIV, como "a mais terrível das dissonâncias", sendo chamado de o "diabo na música", e por causa disso era proibido
Assim, se a arte é' um fenômeno universal, enquanto linguagem é culturalmente construída, diferenciando-se de cultura para cultura. Inclusive, dentro de uma mesma sociedade como a nossa, a brasileira -, de grupo para grupo, pois em nosso país convivem práticas musicais distintas, uma vez que podemos; pensar na cultura e na arte eruditas, e nas diversas formas de arte e cultura populares, com sua imensa variedade. Exatamente porque a música é uma linguagem cultural, consideramos familiar aquele tipo de música que faz parte de nossa vivência - justamente porque o fazer parte de nossa vivência permite que nós nos familiarizemos com os seus princípios de organização sonora, o que a torna uma música significativa para nós. Em contrapartida, costumamos "estranhar" a música que não faz parte de nossa experiência. Quem é que já não ouviu alguém dizer - ou até mesmo disse - a seguinte frase: "isto não é música"? Esta atitude em relação à música do outro pode ser encontrada, por exemplo, por parte de um músico erudito em relação ao rap, de um velho seresteiro em relação ao barulhento rock do filho do vizinho, de um jovem roqueiro em relação à música erudita contemporânea, ou de um a de música sertaneja em relação a uma música indígena. Como bem coloca J. Jota de Moraes, no seu livro O Que é Música:
"Cada um de nós costuma emprestar tanta importância à música que ouve mais freqüentemente, que acaba por tender a não encarar como música, como significação, a atividade musical do vizinho, quer este more ao lado, quer ele viva na Polínésia. [E] Isso é uma atitude (...) cultural."
Espero, portanto, ter deixado claro que a música não é uma linguagem universal. É, sem dúvida, um fenômeno universal; mas enquanto linguagem é culturalmente construída. Se a música fosse uma linguagem universal, seria sempre significativa - isto é, qualquer música seria significativa para qualquer pessoa - , independentemente da cultura, e deste modo a estranheza em relação à música do outro não existiria.
Agora podemos retomar a definição provisória apresentada no início deste texto - a música é uma forma de arte que tem como material básico o som. E podemos ajustá-la um pouquinho mais, dizendo: a musica é uma linguagem artística, culturalmente construída, que tem como material básico o som. Neste ponto, é preciso retomar uma outra questão, que até agora ficou encoberta, e que diz respeito ao caráter dinâmico da música. Eu disse que a música tem por "material básico o som"- e não me referi por acaso a "material básico". Pois o fato é que o som não é o material único ou exclusivo da música. Como diversos historiadores apontam, em seus primórdios a música era parte de rituais comunitários e integrava diversos elementos presentes na vida grupal; mesmo na Grécia Antiga, "música e poesia eram uma coisa só; poemas recitados eram entoados e, algumas vezes, associados à dança". Esta integração também é encontrada em correntes contemporâneas da música erudita, que têm incorporado à manifestação musical outros recursos expressivos, como luzes, movimento, encenação, etc. É bom lembrar também que toda performance musical têm um aspecto cênico, quer este seja intencionalmente planejado ou não. Os regentes e solistas da música erudita (da música clássica) "sabem" disso - talvez de um modo não consciente, mas sabem -, na medida em que seus gestos e expressões faciais integram a sua interpretação musical. Os roqueiros também sabem, com os cabelos voando e as guitarras sendo jogadas... Nós, ouvintes, também sabemos, na medida em que temos consciência da diferença entre uma apresentação ao vivo e uma gravação - que é o registro puramente sonoro. Neste sentido, correntes da música contemporânea propõem incorporar - de modo planejado e intencional - este aspecto cênico ao evento musical.
As diversas correntes da música erudita contemporânea - que se desenvolvem como propostas de vanguarda a partir do pós-guerra - contribuem para a renovação do fazer musical e da própria música não apenas pela incorporação de outros recursos expressivos, mas também pelo modo como o material propriamente sonoro passa a ser tratado. Como já apontado, cada grupo social seleciona, entre todos os sons possíveis de serem captados pelo ouvido humano, aqueles que são o seu material musical, assim como o modo de articular e organizar estes sons. Desta forma, para a civilização ocidental, durante vários séculos só se faz música a partir das notas e dentro dos princípios da tonalidade. Este quadro é alterado pelas diversas correntes contemporâneas - a música concreta, eletrônica, aleatória, etc., cujas contribuições se entrecruzam e se complementam -, que rompem os princípios da tonalidade e ampliam o material musical para muito além das notas: incorporam o ruído como material musical; exploram fontes sonoras alternativas, desde aparelhos eletrônicos a objetos do cotidiano, incluindo modos novos de produzir sons com os instrumentos musicais tradicionais - como, por exemplo, manusear diretamente as cordas do piano, ou percutir a caixa de madeira do violino.
Essas correntes permitem, ainda, tomar gravações de sons da natureza ou do cotidiano como material. para a composição musical. Deste modo, é justamente no contexto da música contemporânea que o canto de um pássaro pode se tornar música: neste caso, o homem intencionalmente se apropria do canto do pássaro, incorporando-o em seu fazer artístico, quando grava esse canto e o articula a outros elementos, com finalidade significativa, em uma peça musical.
Essa ampliação do material musical proposta pela música erudita contemporânea corresponde também a uma nova estética, a princípios distintos de organizar os sons - em séries, blocos, massas, texturas, etc. -, levando-se em conta, muitas vezes, a participação criativa do executante, do intérprete. A música, assim concebida, exige inovações na grafia musical, uma vez que a notação tradicional não é mais suficiente para o registro dessas novas alternativas sonoras.
No entanto, apesar de seu importante papel, essas correntes contemporâneas têm, de modo geral, um público relativamente pequeno; raramente são contempladas nos repertórios das orquestras ou mesmo na formação de músicos e de professores de música. Na verdade, as sonoridade da música erudita contemporânea distanciam-se dos padrões da música tonal e, exatamente por não fazerem parte de nossa vivência, soam "estranhas" para nós: não estamos familiarizados com os seus princípios de organização sonora, com a sua estética. Aliás, creio que todas as vanguardas artísticas sofrem este "estranhamento", na medida em que cumprem a função de abrir caminhos, questionando os limites da própria linguagem artística, em seus padrões de organização já consagrados. Neste sentido, as diversas correntes da música erudita contemporânea contribuem para ampliar o material sonoro, para apontas alternativas para o fazer musical, indicando novos recursos expressivos e significativos. E muitos destes recursos já estão incorporados mais rotineiramente no fazer artístico, convivendo e interagindo com padrões mais tradicionais de organização musical.
Por outro lado, esses novos recursos expressivos e significativos da música contemporânea abrem alternativas para a prática educativa. Propostas pedagógicas de compositores eruditos contemporâneos baseiam-se no trabalho exploratório e criativo sobre o material sonoro na oficina de música - também chamada de laboratório de som ou experimentação sonora. Na oficina, a música não é tomada como pronta, a ser aprendida e repetida, mas a ser construída pela ação do aluno. 0 material básico desse processo é o próprio som, de modo amplo, e não mais as notas ou os elementos musicais convencionais, como no ensino tradicional. Desta forma, o trabalho sonoro criativo torna-se mais acessível, não dependendo de uma longa formação voltada para o aprendizado da notação tradicional, das regras de harmonia ou contraponto.
A proposta pedagógica da oficina de música, vinculada à estética da música contemporânea, traz sem dúvida indicações valiosas para o ensino de música. Acredito, contudo, que não é o caso de opor um padrão a outro, de colocar a música contemporânea em oposição - ou em substituição - à música tradicional, de base tonal. Tal oposição não teria sentido, na medida em que a função da educação musical na escola é justamente ampliar o universo musical do aluno, dando-lhe acesso à maior diversidade possível de manifestações musicais, pois a música, em suas mais variadas formas, é um patrimônio cultural, capaz de enriquecer a vida de cada um, ampliando a sua experiência expressiva e significativa. Cabe, portanto, pensar a música na escola dentro de um projeto de democratização no acesso à arte e à cultura.
A questão de como viabilizar este projeto educacional seria tema para uma outra discussão, de modo que não cabe aqui estendê-la. No entanto, quero ressaltar que não há um caminho único nem uma receita pronta para esse projeto de uma educação musical democratizante. É preciso construi-lo, e para tal duas atitudes renovadoras são imprescindíveis:
Em lugar da acomodação que leva a repetir sem crítica ou questionamentos os modelos tradicionais de ensino de música, faz-se necessária a disposição de buscar e experimentar alternativas, de modo consciente;
Em lugar de se prender a um determinado "padrão" musical, faz-se necessário encarar a música em sua diversidade e dinamismo, pois sendo uma linguagem cultural e historicamente construída, a música é viva e está em constante movimento.
Sendo assim, na medida em que formos capazes de ampliar a nossa concepção de música, estaremos em sintonia com este projeto de democratização no acesso à arte e à cultura, e contribuindo para a sua efetiva construção.
Referência Bibliografica:
PENNA, Maura. Dó, ré, mi, fá e muito mais: discutindo o que é música. Ensino
de Arte - Revista da Associação dos Arte-Educadores do Estado de São Paulo,
[S. l.], v. II, n. III, p. 14-17, [1999].
* Maura Penna é professora do Departamento de Artes da UFPB, onde leciona disciplinas ligadas na área de música.