Sobre o Conceito de História - Walter Benjamin |
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2ª edição, 1986. 331 p.
Aqui estão, finalmente editadas em português, as famosas teses "Sobre o conceito de história", último escrito de Walter Benjamin, publicadas após sua morte, em 1940. Não pretendo, no âmbito desta breve introdução, fazer delas uma interpretação exaustiva. Prefiro escolher um aspecto essencial mas pouco estudado da filosofia de Benjamin, sua teoria da narração. Se nos lembrarmos que o termo "Geschichte", como "história", designa tanto o processo de desenvolvimento da realidade no tempo como o estudo desse processo ou um relato qualquer, compreenderemos que as teses "Sobre o conceito de história" não são apenas uma especulação sobre o devir histórico "enquanto tal", mas uma reflexão crítica sobre nosso discurso a respeito da história (das histórias), discurso esse inseparável de uma certa prática. Assim, a questão da escrita da história remete às questões mais amplas da prática política e da atividade da narração. É esta última que eu gostaria de analisar: o que é contar uma história, histórias, a História? Questão que Benjamin estuda nas teses e em diversos de seus ensaios literários, muito oportunamente publicados neste mesmo volume.
Benjamin, que, conforme sabemos através do depoimento de seu amigo G. Scholem, escreveu as teses sob o impacto do [8] acordo de agosto de 1939 entre Stalin e Hitler, critica duas maneiras aparentemente opostas de escrever a história que, na realidade, têm sua origem em uma estrutura epistemológica comum: a historiografia "progressista", mais especificamente a concepção de história em vigor na social-democracia alemã de Weimar, a idéia de um progresso inevitável e cientificamente previsível (Kautsky), concepção que, conforme demonstra Benjamin, provocará uma avaliação equivocada do fascismo e a incapacidade de desenvolver uma luta eficaz contra sua ascensão; mas também a historiografia "burguesa" contemporânea, ou seja, o historicismo, oriundo da grande tradição acadêmica de Ranke a Dilthey, que pretenderia reviver o passado através de uma espécie de identificação afetiva do historiador com seu objeto. Sem me deter na análise crítica de Benjamin, já amplamente comentada, [Materialien zu Benjamins "Thesen 'Ueber den Begriff der Geschichte' ", editado por P. Bulthaup, Suhrkamp, 1975, Frankfurt/Main. Cf. também Jürgen Habermas, "Crítica conscientizante ou salvadora" in Habermas, Sociologia, Ática, São Paulo, 1980, org. Barbara Freitag e S. P. Rouanet] eu gostaria de destacar, aqui, duas conclusões. Em primeiro lugar, segundo Benjamin, a historiografia "burguesa" e a historiografia "progressista" se apóiam na mesma concepção de um tempo "homogêneo e vazio" (teses 13 e 14), um tempo cronológico e linear. Trata-se, para o historiador "materialista" - ou seja, de acordo com Benjamin, para o historiador capaz de identificar no passado os germes de uma outra história, capaz de levar em consideração os sofrimentos acumulados e de dar uma nova face às esperanças frustradas -, de fundar um outro conceito de tempo, "tempo de agora" ("Jetztzeit"), caracterizado por sua intensidade e sua brevidade, cujo modelo foi explicitamente calcado na tradição messiânica e mística judaica.
Em lugar de apontar para uma "imagem eterna do passado", como o historicismo, ou, dentro de uma teoria do progresso, para a de futuros que cantam, o historiador deve constituir uma "experiência" ("Erfahrung") com o passado (tese 16). Estranha definição de um método materialista! Permita-me, então, analisar brevemente esse conceito central da filosofia benjaminiana. Com efeito, ele atravessa toda a sua obra: desde um texto de juventude intitulado [9] "Erfahrung" [Experiência, 1913, trad. in W. Benjamin, A Criança, o Brinquedo, a Educação, Summus, São Paulo, 1984, trad. de M.V.Mazzani.], mais tarde um ensaio sobre o conceito de experiência em Kant ("Ueber das Programm der kommenden Philosophie") ["Sobre o Programa da Filosofia a vir", in W. Benjamin, Gesammelte Werke II-1, p157 e ss., Suhrkamp, Frankfurt/Main, 1977], diversos textos dos anos 30 ("Experiência e Pobreza", "O Narrador", os trabalhos sobre Baudelaire) ["Experiência e Pobreza", neste volume p114 e ss. "O Narrador", neste volume p197 e ss.; também in "Os Pensadores", Abril Cultural, 1980, trad. de Modesto Carone, p57 e ss. "Sobre alguns Temas em Baudelaire", mesmo vol. da Abril.] e, finalmente, as teses de 1940. Benjamin exige a cada vez a ampliação desse conceito, contra seu uso redutor. Assim, no texto de 1913, típico do espírito da "Jugendbewegung", contesta a banalização dos entusiasmos juvenis em nome da experiência pretensamente superior dos adultos; no texto sobre Kant, critica "um conceito de conhecimento de orientação unilateral, matemática e mecânica" ["Einseitg mathematisch-mechanisch orientierten Erkenntnisbegriff" ("Ueber das Programm...", op cit, p168)] e gostaria de pensar um conhecimento que tornasse possível "não Deus, é claro, mas a experiência e a doutrina de Deus". ["Damit soll durchaus nicht gesagt sein dass die Erkenntnis Gott, wohl aber durchaus dass sie die Erfahrung und Lehre von ihm allererst ermöglicht", idem, p164] Nos textos fundamentais dos anos 30, que eu gostaria de citar mais longamente, Benjamin retoma a questão da "Experiência", agora dentro de uma nova problemática: de um lado, demonstra o enfraquecimento da "Erfahrung" no mundo capitalista moderno em detrimento de um outro conceito, a "Erlebnis", experiência vivida, característica do indivíduo solitário; esboça, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a necessidade de sua reconstrução para garantir uma memória e uma palavra comuns, malgrado a desagregação e o esfacelamento do social. O que nos interessa aqui, em primeiro lugar, é o laço que Benjamin estabelece entre o fracasso da "Erfahrung" e o fim da arte de contar, ou, dito de maneira inversa (mas não explicitada em Benjamin), a idéia de que uma reconstrução da "Erfahrung" deveria ser acompanhada de uma nova forma de narratividade. A uma experiência e uma narratividade espontâneas, oriundas de uma organização social comunitária centrada no artesanato [10], opor-se-iam, assim, formas "sintéticas" de experiência e de narratividade, como diz Benjamin referindo-se a Proust, ["Sobre alguns temas em Baudelaire", op cit, p30 (a tradução diz "artificialmente")] frutos de um trabalho de construção empreendido justamente por aqueles que reconheceram a impossibilidade da experiência tradicional na sociedade moderna e que se recusam a se contentar com a privaticidade da experiência vivida individual ("Erlebnis"). Este aspecto "construtivista", essencial nas "teses" ("A historiografia marxista tem em sua base um princípio construtivo." tese 17), deve ser destacado, para evitar que a teoria benjaminiana sobre a experiência seja reduzida à sua dimensão nostálgica e romântica, dimensão essa presente, sem dúvida, no grande ensaio sobre "O Narrador", mas não exclusiva. Com efeito, se consideramos os diversos textos dessa época, e, mais particularmente, dois textos freqüentemente paralelos como "Experiência e Pobreza" e "O Narrador", observamos que o diagnóstico de Benjamin sobre a perda da experiência não se altera, embora sua apreciação varie. Idêntico diagnóstico: a arte de contar torna-se cada vez mais rara porque ela parte, fundamentalmente, da transmissão de uma experiência no sentido pleno, cujas condições de realização já não existem na sociedade capitalista moderna. Quais são essas condições? Benjamin distingue, entre elas, três principais:
a) a experiência transmitida pelo relato deve ser comum ao narrador e ao ouvinte. Pressupõe, portanto, uma comunidade de vida e de discurso que o rápido desenvolvimento do capitalismo, da técnica, sobretudo, construiu. A distância entre os grupos humanos, particularmente entre as gerações, transformou-se hoje em abismo pq as condições de vida mudam em um ritmo demasiado rápido para a capacidade humana de assimilação. Enquanto no passado o ancião q se aproximava da morte era o depositário privilegiado de uma experiência q transmitia aos mais jovens, hoje ele não passa de um velho cujo discurso é inútil.
b) Esse caráter de comunidade entre vida e palavra apóia-se ele próprio na organização pré-capitalista do trabalho, em especial na atividade artesanal. O artesanato permite, devido a seus ritmos lentos e orgânicos, em oposição à rapidez do processo de trabalho industrial, e devido a seu caráter totalizante [11], em oposição ao caráter fragmentário do trabalho em cadeia, por exemplo, uma sedimentação progressiva das diversas experiências e uma palavra unificadora. O ritmo do trabalho artesanal se inscreve em um tempo mais global, tempo onde ainda se tinha, justamente, tempo para contar. Finalmente, de acordo com Benjamin, os movimentos precisos do artesão, q respeita a matéria q transforma, têm uma relação profunda com a atividade narradora: já q esta tb é, de certo modo, uma maneira de dar forma à imensa matéria narravel, participando assim da ligação secular entre a mão e a voz, entre o gesto e a palavra.
c) A comunidade da experiência funda a dimensão prática da narrativa tradicional. Aquele q conta transmite um saber, uma sapiência, q seus ouvintes podem receber com proveito. Sapiência prática, q muitas vezes toma a forma de uma moral, de uma advertência, de um conselho, coisas q, hoje, não sabemos o q fazer, de tão isolados q estamos, cada um em seu mundo particular e privado. Ora, diz Benjamin, o conselho não consiste em intervir do exterior na vida de outrem, como interpretamos muitas vezes, mas em “fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história q está sendo narrada”. [“O Narrador”, p200] Esta bela definição destaca a inserção do narrador e do ouvinte dentro de um fluxo narrativo comum e vivo, já q a história continua, q está aberta a novas propostas e ao fazer junto. Quando esse fluxo se esgota pq a memória e a tradição comuns já não existem, o indivíduo isolado, desorientado e desaconselhado (o mesmo adjetivo em alemão: “ratlos”), reencontra então o seu duplo no herói solitário do romance, forma diferente de narração q Benjamin, após a “Teoria do romance”, de Lukács, analisa como forma característica da sociedade burguesa moderna.
O depauperamento da arte de contar parte, portanto, do declínio de uma tradição e de uma memória comuns, q garantiam a existência de uma experiência coletiva, ligada a um trabalho e um tempo partilhados, em um mesmo universo de prática e de linguagem. A degradação da “Erfahrung” descreve o mesmo processo de fragmentação e de secularização q Benjamin, na mesma época, analisa como a “perda da aura” em seu célebre ensaio sobre “A obra de arte na época de [12] sua reprodutibilidade técnica”. [“A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica”, neste volume p 165 ss.; tb no vol Abril p4 e ss.] O próprio Benjamin fala dos “paralelos” entre esse ensaio e “O Narrador” em uma carta a Adorno, de 4 de junho de 1936: “Recentemente escrevi um trabalho sobre Nikolai Leskov (‘O Narrador’) q, se não possui a profundidade do trabalho de teoria estética (‘A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica’), apresenta alguns paralelos com a ‘perda da aura’, devido ao fato de q a arte de contar está chegando ao fim”. [citado em W. Benjamin, Gesammelte Schriften, II-3, p1277] A mesma ambivalência na apreciação caracteriza a atitude de Benjamin diante desse duplo depauperamento: ele é sentido como uma perda dolorosa, sentimento evidente em “O Narrador”, mas não completamente ausente em “A obra de arte ...”, malgrado a ambição “materialista” deste último escrito; mas ele é, ao mesmo tempo, reconhecido como um fato ineludível que seria falso querer negar, salvaguardando ideais estéticos q já não têm qq raiz histórica real. Mais: o reconhecimento lúcido da perda leva a q se lancem as bases de uma outra prática estética; Benjamin cita o Bauhauss, o Cubismo, a literatura de Döblin, os filmes de Chaplin, enumeração – discutível, sem dúvida – cujo ponto comum é a busca de uma nova “objetividade” (“Sachlichkeit”), em oposição ao sentimentalismo burguês q desejaria preservar a aparência de uma intimidade intersubjetiva.
Essas tendências “progressistas” da arte moderna, q reconstroem um universo incerto a partir de uma tradição esfacelada, são, em sua dimensão mais profunda, mais fiéis ao legado da grande tradição narrativa q as tentativas previamente condenadas de recriar o calor de uma experiência coletiva (“Erfagrung”) a partir das experiências vividas isoladas (“Erlebnisse”). Essa dimensão, q me parece fundamental na obra de Benjamin, é a da abertura. O leitor atento descobrirá em “O Narrador” uma teoria antecipada da obra aberta. Na narrativa tradicional essa abertura se apóia na plenitude do sentido – e, portanto, em sua profusão ilimitada; em Umberto Eco e, parece-me, tb na doutrina benjaminiana da alegoria, a profusão do sentido, ou, antes, dos sentidos, vem ao contrário, de seu não-acabamento essencial. O q me importa [13] aqui é identificar esse movimento de abertura na própria estrutura da narrativa tradicional. Movimento interno, representado na figura de Scheherazade, movimento infinito da memória, notadamente popular. Memória infinita cuja figura moderna e individual será a imensa tentativa proustiana, tão decisiva para Benjamin. Cada história é o ensejo de uma nova história, q desencadeia uma outra, q traz uma Quarta, etc.; essa dinâmica ilimitada da memória é a da constituição do relato, com cada texto chamando e suscitando outros textos. [Cf. T. Todorov, “Les hommes-récits”, in Poétique de la Prose, Seuil, Paris, 1971] Mas tb um segundo movimento, q, se está inscrito na narração, aponta para mais além do texto, para a atividade da leitura e da interpretação. Aqui Benjamin cita Heródoto, [“O Narrador”, p 197] “pai da história” e pai de inúmeras histórias, referência importante para nosso objetivo, já q na figura de Heródoto enquanto protótipo do narrador tradicional, vemos tb como a escritura da história está enraizada na arte (e no prazer) de contar, como Paul Veyne, bem mais tarde, destacaria. [Paul Veyne, Comment on écrit l’histoire, Seuil, Paris, 1971] Ora, a força do relato em Heródoto é q ele sabe contar sem dar explicações definitivas, q ele deixa q a história admita diversas interpretações diferentes, q, portanto, ela permanece aberta, disponível para uma continuação de vida q dada leitura futura renova:
“Heródoto não explica nada. [trata-se da história de Psammenites (Heródoto, Enquête, III, 14). Benjamin contou-a a diversos amigos e anotou as diferentes interpretações. Não é completamente verdadeiro q “Heródoto não explica nada”. Refere-se à própria explicação de Psammenites sobre sua atitude. É verdade q Heródoto não fornece nenhuma explicação por conta própria.] Seu relato é dos mais secos. Por isso essa história do antigo Egito ainda é capaz, depois de milênios, de suscitar espanto e reflexão. Ela se assemelha a essas sementes de trigo q durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e q conservam até hoje suas forças germinativas”. [“O Narrador”, p204]
Notemos, aqui, q justamente aquilo q foi criticado muitas vezes em Heródoto, a saber a ausência de um esquema [14] global de interpretação e de explicação, como teremos, por exemplo, em Tucídides, é, para Benjamin, não uma falha, mas uma riqueza. Mesmo se Heródoto funciona, aqui, antes de mais nada como aquele q conta (“Erzähler”), não como historiador, podemos testar a hipótese de q uma tal sobriedade na explicação tb é recomendada por Benjamin para o historiador verdadeiramente atento ao passado, principalmente aos seus elementos decretados negligenciáveis e fadados ao esquecimento. Testemunha-o esta defesa do cronista contra o historiador clássico:
“O cronista q narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de q nada do q um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história.” (tese 3).
No momento em q a experiência coletiva se perde, em que a tradição comum já não oferece nenhuma base segura, outras formas narrativas tornam-se predominantes. Benjamin cita o romance e a informação jornalística. Os dois têm em comum a necessidade de encontrar uma explicação para o acontecimento, real ou ficcional. A informação deve ser plausível e controlável; já o romance parte da procura do sentido - da vida, da morte, da história. Ora, de acordo com Benjamin, que, aqui, segue Lukács, a questão do sentido só pode se colocar, paradoxalmente, a partir do momento em q esse sentido deixa de ser dado implicitamente e imediatamente pelo contexto social. Aquiles não se questiona sobre o sentido da vida pq sua existência segue certas regras determinadas, aceitas e reconhecidas por todos os seus companheiros e por ele próprio em primeiro lugar (em compensação, ele se colocará outras questões, q, hoje, não compreendemos: por exemplo a da morte gloriosa). O romance coloca em cena um herói desorientado ("ratlos"), e toda a ação se constitui como uma busca, seu sucesso ou seu fracasso. O leitor do romance persegue o mesmo objetivo; busca assiduamente na leitura o q já não encontra na sociedade moderna: um sentido explícito e reconhecido. Por isso ele espera com impaciência pela morte do herói, verdadeira ou figurada pelo final do relato, para poder provar para si q este último não viveu em vão e portanto, reflexivamente, ele, leitor, tampouco. Assim, a questão [15] do sentido traz a necessidade de concluir, de pôr um fim na história. Enquanto a narrativa antiga se caracteriza por sua abertura, o romance clássico, em sua necessidade de resolver a questão do significado da existência, visa a conclusão. Essa oposição, desenvolvida em "O Narrador", é, entretanto, recolocada em causa no romance contemporâneo, como o próprio Benjamin vai demonstrar em seus ensaios literários. Selecionarei aqui dois exemplos privilegiados desse não-acabamento essencial, os de Proust e Kafka.
A influência de Proust sobre seu tradutor Benjamin é de tal ordem q este se vê obrigado, durante algum tempo, a renunciar à sua leitura para não cair um "uma dependência de drogrado q impediria... sua própria produção". [Citado por Peter Szondi, Satz und Gegensatz, Suhrkamp, Frankfurt/Main, 1976, p80]. Proust realiza, com efeito, a proeza de reintroduzir o infinito nas limitações da existência individual burguesa. Esse infinito, q o comprimento da obra e da frase proustianas configura, interna-se na vida desse parisiense elegante pelos caminhos convergentes da memória e da semelhança. A experiência vivida de Proust ("Erlebnis"), particular e privada, já não tem nada a ver com a grande experiência coletiva ("Erfahrung") q fundava a narrativa antiga. Mas o caráter desesperadamente único da "Erlebnis" transforma-se dialeticamente em uma busca universal: o aprofundamento abissal na lembrança despoja-o de seu caráter contingente e limitado q, em um primeiro momento, tornara-o possível. "Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo q o acontecimento lembrado é sem limites, pq é apenas uma chave para tudo o q veio antes e depois." ["A imagem de Proust", neste volume p37] A grandeza das lembranças proustianas não vem de seu conteúdo, pois a bem da verdade a vida burguesa nunca é assim tão interessante. O golpe de gênio de Proust está em não ter escrito "memórias", mas, justamente, uma "busca", uma busca das analogias e das semelhanças entre o passado e o presente. Proust não reencontra o passado em si - q talvez fosse bastante insosso -, mas a presença do passado no presente e o presente q já está lá, prefigurado no passado, ou seja, uma semelhança profunda, mais forte do q o tempo [16] q passa e q se esvai sem q possamos segurá-lo. A tarefa do escritor não é, portanto, simplesmente relembrar os acontecimentos, mas "subtraí-los às contingências do tempo em uma metáfora". [Marcel Proust, A la Recherche du temps Perdu, ed Pléiade, vol III, p889]
Se relemos as teses "Sobre o conceito de história" à luz destas poucas observações, poderemos observar quanto o método do historiador "materialista", de acordo com Benjamin, deve à estética proustiana. A mesma preocupação de salvar o passado no presente graças à percepção de uma semelhança q os transforma os dois: transforma o passado pq este assume uma forma nova, q poderia ter desaparecido no esquecimento; transforma o presente pq este se revela como sendo a realização possível dessa promessa anterior, q poderia ter-se perdido para sempre, q ainda pode se perder se não a descobrirmos, inscrita nas linhas do atual. Daí, tb, a importância, sobre a qual não me estenderei aqui do conceito de semelhança na filosofia de Benjamin (cf. "Lehre von Aehnlichen", "Doutrina do Semelhante").
Se Proust personifica a força salvadora da memória, Kafka faz-nos entrar no domínio do esquecimento, tema chave da leitura benjaminiana. Poderíamos dizer, tb, q se Proust representa a tentativa - árdua - de uma rememoração integral, Kafka instalou-se sem tropeços e sem lágrimas na ausência de memória e na deficiência do sentido. É daí q vem, segundo Benjamin, sua extraordinária modernidade, ao mesmo tempo cruel e serena. Em uma carta a Gershom Scholem, em q critica a interpretação q Max Brod faz de Kafka, Benjamin escreve:
"A obra de Kafka representa uma doença da tradição. A sabedoria tem sido às vezes definida como o lado épico da verdade. Com isso a verdade é designada como um patrimônio da tradição; é a verdade em sua consistência hagádica.
É esta consistência da verdade q se perdeu. Kafka estava longe de ser o primeiro a enfrentar esta situação. Muitos se acomodaram a ela, aferrando-se à verdade, ou àquilo q eles consideravam como sendo a verdade; com o coração mais pesado ou então mais leve, renunciaram à sua transmissibilidade. [17] A verdadeira genialidade de Kafka foi ter experimentado algo inteiramente novo: ele sacrificou a verdade para apegar-se à sua transmissibilidade, ao seu elemento hagádico.
Os escritos de Kafka são por sua própria natureza parábolas. Mas sua miséria e sua beleza é o fato de terem precisado tornar-se mais do que parábolas. Eles não se colocam singelamente aos pés da doutrina, como a Hagada em relação à Halacha. Depois de terem se deitado, erguem uma poderosa pata contra ela." [W. Benjamin, Briefe, Suhrkamp, Frankfurt/Main, 1966, vol II, p763] (Trad. manuscrita de M. Carone com algumas modificações.)
Não é por acaso q Benjamin utiliza aqui categorias teológicas, justamente para criticar a interpretação trivialmente teologizante e Max Brod. Na religião judaica a Halacha é o texto sagrado da lei divina, palavra originária e fundamental, lembrada e reatualizada nos comentários da Hagada. Ora, mesmo no discurso teológico q remete à verdade primeira e essencial, oriunda do verbo divino, nesse paradigma do discurso verdadeiro ocidental fundado em um sentido ao mesmo tempo originário e último, surge uma dúvida: sob o amontoado de comentários, notas e glosas desaparece a palavra primária. Não q ela se tenha apagado, mas poder-se-ia dizer q não somos mais capazes de distingui-la das outras inúmeras palavras legadas pela tradição – como no contexto diverso de “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica” já não ssbemos distinguir entre o manuscrito originário/original da(s) cópia(s). Ou ainda, como diz Benjamin, a “consciência” da verdade foi submergida por sua transmissão: arrastada por seu próprio movimento, a tradição torna-se autônoma em relação ao sentido inicial no qual, originalmente, tinha suas raízes. Esse movimento é, profundamente, o da metáfora, q parte do sentido “literal” mas acaba abandonando-o e até, de transposição em transposição, prescindindo dele. Assim, na bela imagem de Benjamin, as “parábolas” (“Gleichnis”) de Kafka, q no início estão deitadas docilmente, como pequenas feras mansas, aos pés da doutrina, acabam não apenas tornando-se independentes como derrubando a Halacha com um violento coice. Em lugar de se atrelarem a uma verdade primeira, [18] cada vez mais distante e fugaz, Kafka se concentra em um comentário perpétuo, criando uma figura de discurso místico cujo núcleo de iluminação está ausente. Discurso infinitamente aberto sobre outros comentários, sobre outros textos q já não remetem a um texto sagrado. Poderíamos arriscar um paradoxo e dizer q a obra de Kafka, o maior “narrador” moderno, segundo Benjamin, representa uma “experiência” única: a da perda da experiência, da desagragação da tradição e do desaparecimento do sentido primordial. Kafka conta-nos com uma minúcia extrema, até mesmo com certo humor, ou seja, com uma dose de jovialidade (“Heiterkeit”), [idem, p764] q não temos nenhuma mensagem definitiva para transmitir, q não existe mais uma totalidade de sentidos, mas somente trechos de histórias e de sonhos. Fragmentos esparsos q falam do fim da identidade do sujeito e da univocidade da palavra, indubitavelmente uma ameaça de destruição, mas tb – e ao mesmo tempo – esperança e possibilidade de novas significações. À imagem do pai em seu leito de morte, evocada por Benjamin no início de seu ensaio “Experiência e Pobreza”, q lega aos filhos uma experiência certa e imutável, corresponde o imperador moribundo de “A muralha da China”, um conto de Kafka de q Benjamin gostava especialmente. [W. Benjamin, “Franz Kafka, Beim Bau der Chinesischen Mauer”, in Ges. Schriften, II-2, p676 e ss. Ensaio q, infelizmente, não consta deste volume] Se lembramos q o signo do imperador, o sol desenhado sobre o peito do mensageiro, é, desde Platão, o símbolo do Absoluto, temos de reconhecer como é irreversível o deslocamento q nos distancia dessa imagem de verdade e de palavra, deslocamento q o romance de Kafka, em uma espécie de vertigem controlada, conta-nos suavemente:
“O imperador – assim dizem – enviou a ti, súdito solitário e lastimável, sombra ínfima ante o sol imperial, refugiada na mais remota distância, justamente a ti o imperador enviou, do leito de morte, uma mensagem. Fez ajoelhar-se o mensageiro ao pé da cama e sussurrou-lhe a mensagem no ouvido; tão importante lhe parecia, q mandou repeti-la em seu próprio ouvido. Assentindo com a cabeça, confirmou a exatidão das palavras. E diante da turba reunida para assistir à sua morte – haviam derrubado todas as paredes impeditivas, e na escadaria em curva ampla e elevada, dispostos em círculo, estavam os grandes do império – diante de todos, despachou o mensageiro. De pronto, este se pôs em marcha, homem vigoroso, incansável. Estendendo ora um braço, ora outro, abre passagem em meio à multidão; quando encontra obstáculo, aponta no peito a insígnia do sol; avança facilmente, como ninguém.
Mas a multidão é enorme; suas moradas não têm fim. Fosse livre o terreno, como voaria, breve ouvirias na porta o golpe magnífico de seu punho. Mas, ao contrário, esforça-se inutilmente; comprime-se nos aposentos do palácio central; jamais conseguirá atravessá-los; e se conseguisse, de nada valeria; precisaria empenhar-se em descer as escadas; e se as vencesse, de nada valeria; teria q percorrer os pátios; e depois dos pátios, o segundo palácio circundante; e novamente escadas e pátios; e mais outro palácio; e assim por milênios; e quando finalmente escapasse pelo último portão – mas isto nunca, nunca poderia acontecer – chegaria apenas à capital, o centro do mundo, onde se acumula a prodigiosa escória. Ninguém consegue passar por aí, muito menos com a mensagem de um morto. Mas, sentado à janela, tua a imaginas, enquanto a noite cai.” [Esta história volta duas vezes à obra de Kafka: como conto independente “Uma mensagem imperial” (“Eine kaiserliche Botschaft”) e dentro do conto maior “Durante a Construção da Muralha da China” (“Beim Bau der chinesischen Mauer”)] (Trad. de Lucia Nagib.)]
(p222, tese 1)
Conhecemos a história de um autômato construído de tal modo q podia responder a cada lance de um jogador de xadrez com um contralance, q lhe assegurava a vitória. Um fantoche vestido à turca, com um narguilé na boca, sentava-se diante do tabuleiro, colocado numa grande mesa. Um sistema de espelhos criava a ilusão de q a mesa era totalmente visível, em todos os seus pormenores. Na realidade, um anão corcunda se escondia nela, um mestre do xadrez, q dirigia com cordéis a mão do fantoche. Podemos imaginar uma contrapartida filosófica desse mecanismo. O fantoche chamado “materialismo histórico” ganhará sempre. Ele pode enfrentar qq desafio, desde q tome a seu serviço a teologia. Hoje, ela é reconhecidamente pequena e feia e não ousa mostrar-se.
(p222-223, tese 2)
“Entre os atributos mais surpreendentes da alma humana”, diz Lotze, “está, ao lado de tanto egoísmo individual, uma ausência geral de inveja de cada presente com relação a seu futuro”. Essa reflexão conduz-nos a pensar q nossa imagem da felicidade é totalmente marcada pela época q nos foi atribuída pelo curso da nossa existência. A felicidade capaz de suscitar nossa inveja está toda, inteira, no ar q já respiramos, nos homens com os quais poderíamos ter conversado, nas mulheres q poderíamos ter possuído. Em outras palavras, a imagem da felicidade está indissoluvelmente ligada à da salvação. O mesmo ocorre com a imagem do passado, q a história transforma em coisa sua. O passado traz consigo um índice misterioso, q o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar q foi respirado antes? Não existem, nas vozes q escutamos, ecos de vozes q emudeceram? Não têm as mulheres q cortejamos irmãs q elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso.
(p223, tese 3)
O cronista q narra os acontecimentos, sem distinguir entre os gdes e os pequenos, leva em conta a verdade de q nada do q um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à l’ordre du jour – e esse dia é justamente o do juízo final.
(p223-224, tese 4)
"Lutai primeiro pela alimentação e pelo vestuário, e em seguida o reino de Deus virá por si mesmo”.
Hegel, 1807
A luta de classes, q um historiador educado por Marx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor. Elas se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos. Elas questionarão sempre cada vitória dos dominadores. Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol q se levanta no céu da história. O materialismo histórico deve ficar atento a essa transformação, a mais imperceptível de todas.
(p224, tese 5)
A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem q relampeja irreversivelmente, no momento em q é reconhecido. “A verdade nunca nos escapará” – essa frase de Gottfried Keller caracteriza o ponto exato em q o historicismo se separa do materialismo histórico. Pois irrecuperável é cada imagem do presente q se dirige ao presente, sem q esse presente se sinta visado por ela.
(p224-225, tese 6)
Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem q ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os q a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, q quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem tb como o vencedor do Anticristo. O Dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de q tb os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.
(p225, tese 7)
"Pensa na escuridão e no grande frio q reinam nesse vale, onde soam lamentos.”
Brecht, Ópera dos três vinténs
Fustel de Coulanges recomenda ao historiador interessado em ressuscitar uma época q esqueça tudo o q sabe sobre fases posteriores da história. Impossível caracterizar melhor o método com o qual rompeu o materialismo histórico. Esse método é o da empatia. Sua origem é a inércia do coração, a acedia, q desespera de apropriar-se da verdadeira imagem histórica, em seu relampejar fugaz. Para os teólogos medievais, a acedia era o primeiro fundamento da tristeza. Flaubert, q a conhecia, escreveu: “Peu de gens devineront combien il a fallu être triste pour ressusciter Carthage”. A natureza dessa tristeza se tornará mais clara se nos perguntarmos.
(p226, tese 9)
"Minhas asas estão prontas para o vôo,
Se eu pudesse, eu retrocederia
Pois eu seria menos feliz
Se permanecesse imerso no tempo vivo."
Gerard Scholem, Saudação do anjo
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.
(p227, tese 10)
(...) Nosso ponto de partida é a idéia de que a obtusa fé no progresso desses políticos, sua confiança no "apoio das massas" e, finalmente, sua subordinação servil a um aparelho incontrolável são três aspectos da mesma realidade. Estas reflexões tentam mostrar como é alto o preço que nossos hábitos mentais têm que pagar quando nos associamos a uma concepção da história que recusa toda cumplicidade com aquela à qual continuam aderindo esses políticos."
(p227-228, tese 11)
'O conformismo, que sempre esteve em seu elemento na social-democracia, não condiciona apenas suas táticas políticas, mas também suas idéias econômicas. É uma das causas do seu colapso posterior. Nada foi mais corruptor para a classe operária alemã que a opinião de que ela nadava com a corrente. O desenvolvimento técnico era visto como o declive da corrente, na qual ela supunha estar nadando. Daí só havia um passo para crer que o trabalho industrial, que aparecia sob os traços do progresso técnico, representava uma grande conquista política. A antiga moral protestante do trabalho, secularizava, festejava uma ressurreição na classe trabalhadora alemã. O Programa de Gotha já continha elementos dessa confusão. Nele, o trabalho é definido como "a fonte de toda riqueza e de toda civilização". Pressentindo o pior, Marx replicou que o homem que não possui outra propriedade que a sua força de trabalho está condenado a ser "o escravo de outros homens, que se tornaram ... proprietários". Apesar disso, a confusão continuou a propagar-se, e pouco depois Josef Dietzgen anunciava: "O trabalho é o Redentor dos tempos modernos... No aperfeiçoamento... do trabalho reside a riqueza, que agora pode realizar o que não foi realizado por nenhum salvador". Esse conceito de trabalho, típico do marxismo vulgar, não examina a questão de como seus produtos podem beneficiar trabalhadores que deles não dispõe. Seu interesse se dirige apenas aos progressos na dominação da natureza, e não aos retrocessos na organização da sociedade. Já estão visíveis, nessa concepção, os traços tecnocráticos que mais tarde vão aflorar no fascismo. Entre eles, figura uma concepção da natureza que contrasta sinistramente com as utopias socialistas anteriores a março de 1848. O trabalho, como agora compreendido, visa uma exploração da natureza, comparada, com ingênua complacência, à exploração do proletariado. Ao lado dessa concepção positivista, as fantasias de um Fourier, tão ridicularizadas, revelam-se surpreendentemente razoáveis. Segundo Fourier, o trabalho social bem organizado teria entre seus efeitos que quatro luas iluminariam a noite, que o gelo se retiraria dos pólos, que a água marinha deixaria de ser salgada e que os animais predatórios entrariam a serviço do homem. Essas fantasias ilustram um tipo de trabalho que, longe de explorar a natureza, libera as criações que dormem, como virtualidades, em seu ventre. Ao conceito corrompido de trabalho corresponde o conceito complementar de uma natureza, que segundo Dietzgen, "está ali, grátis".'
(p229, tese 13)
'A teoria e, mais ainda, a prática da social-democracia foram determinadas por um conceito dogmático de progresso sem qualquer vínculo com a realidade. Segundo os social-democratas, o progresso era, em primeiro lugar, um progresso da humanidade em si, e não das suas capacidades e conhecimentos. Em segundo lugar, era um processo sem limites, idéia correspondente à da perfectibilidade infinita no gênero humano (Kant). Em terceiro lugar, era um processo essencialmente automático, percorrendo, irresistível, uma trajetória em flecha ou em espiral. Cada um desses atributos é controvertido e poderia ser criticado. Mas, para ser rigorosa, a crítica precisa ir além deles e concentrar-se no que lhes é comum. A idéia de um progresso da humanidade na história é inseparável da idéia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da idéia do progresso tem como pressuposto a crítica da idéia dessa marcha.'
(p229, tese 14)
"A Origem é o Alvo."
Karl Kraus, Palavras em verso
A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de "agoras". (...)
(p230-231, tese 16)
'O materialista histórico não pode renunciar ao conceito de um presente que não é transição, mas para no tempo e se imobiliza. Porque esse conceito define exatamente aquele presente em que ele mesmo escreve a história. O historicista apresenta a imagem "eterna" do passado, o materialista histórico faz desse passado uma experiência única. Ele deixa a outros a tarefa de se esgotar no bordel do historicismo, com a meretriz "era uma vez". Ele fica senhor das suas forças, suficientemente viril para fazer saltar pelos ares o continuum da história.
(p231, tese 17)
'O historicismo culmina legitimamente na história universal. Em seu método, a historiografia materialista se distancia dela talvez mais radicalmente que de qualquer outra. A história universal não tem qualquer armação teórica. Seu procedimento é aditivo. Pensar não inclui apenas o movimento das idéias, mas também sua imobilização. Quando o pensamento para, bruscamente, numa configuração saturada de tensões, ele lhes comunica um choque, através do qual essa configuração se cristaliza enquanto mônada. O materialismo histórico só se aproxima de um objeto histórico quando o confronta enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido. Ele aproveita essa oportunidade para extrair uma época determinada do curso homogêneo da história; do mesmo modo, ele extrai da época uma vida determinada. Seu método resulta em que na obra o conjunto da obra, no conjunto da obra a época e na época a totalidade do processo histórico são preservados e transcendidos. O fruto nutritivo do que é compreendido historicamente contém em seu interior o tempo, como sementes preciosas, mas insípidas.'
(p232, apêndice 1)
'O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios. O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um rosário. Ele capta a configuração em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito de presente como um "agora" no qual se infiltraram estilhaços do messiânico.'