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Textos de Palimira Guanais - Academia Caetiteense e Letras - Caetité - Bahia - 2003 - Todos os direitos pertencem à Autora.
NINGUÉM CONHECE NINGUÉM
  Conduzido pela mulher, Leriano sempre batia à minha porta. Passava a imagem de um casal perfeito. Ele muito autoritário, ela, sorrindo de maneira compreensiva e admirada, aceitando cada gesto daquele cego, que podia ser sua paixão ou sua cruz.
   De óculos escuros, sanfoninha na mão, cantava uns versos cadenciados, chamativos, para avisar à criançada que ele havia chegado. Meus filhos corriam para ver de perto aquele artista anônimo. Entoava com voz firme, porém fanhosa, a sua cantilena que dizia assim:
  Em troca recebia uma moeda, um alimento. A mulher sorria agradecida e o que mais me impressionava, além da música daquele menestrel, era a  dedicação e o amor daquela criaturinha pelo seu autoritário Leriano.
   Por muito tempo Leriano (ou Aureliano) sumiu de circulação. Privamo-nos dos seus versinhos de cantador de 3ª categoria e a meninada sempre indagava pelo casal. Eu não sabia por onde andava aquela dupla ambulante.
   Passaram-se os anos. A minha casa já estava vazia. Os filhos haviam dispersado, cada um procurando o seu caminho. Um dia, a "mulher de Leriano" apareceu. O companheiro trovador já havia morrido. Acompanhada de uma filha, trazia-me de presente umas goiabas e pedia-me emprestado R$5,00. Falou-me que não contava mais com o apoio do seu Leriano e que se sentia muito só. Também não sabia versejar e como arrumar dinheiro nesta altura da vida? A sua aposentadoria caminhava a passos lentos e ela passava privações. Penalizada, tentei consolá-la com o velho argumento: "É isto mesmo, dona, a vida é cheia de dificuldades, temos que ser fortes, etc. etc..." Falei-lhe do companheiro bom que fora o seu Leriano e que se lembrasse dele sempre que quisesse fraquejar. Ela olhou-me espantada e segredou-me: "Leriano, dona, era um safado. Não gostava de trabalhar, só sabia tocar sua safoninha sete baixos e jogou fora uma herança recebida de meu pai - um sítio próximo ao Pirajá. Obrigava-me a acompanhá-lo de porta em porta, pedindo esmolas. Aquilo para mim sempre foi uma vergonha."
   Desta vez quem ficou surpresa fui eu. Cheguei à conclusão de que ninguém conhece ninguém. As aparências enganam...

                                                                                     
Salvador, 25 de março de 2001
"Bateu na porta, menina,
Vai ver quem é.
É Leriano, menina,
Com sua mulher

Bateu na porta, menina,
Vai abrir já,
É Leriano, menina,
Do Cabajá

Rodou, rodou, menina,
Tornou rodar
É Leriano, menina,
Do Cabajá".