Era o último dia do ano e como sempre acontece
nessa data havia muita euforia pelas ruas da
cidade. As estradas que levavam às praias
estavam congestionadas naquele ano, mais do que
em anos anteriores. Não era apenas mais um
reveillon, era a virada do milênio também.
Na sala de seu apartamento da Avenida São Luis,
para onde se mudara após separar-se de sua
mulher, Cássio colocava mais uma dose de uísque
em seu copo. Após servir-se, ficou olhando para
a garrafa imaginando quantas doses já havia
tomado naquele dia. Difícil de dizer, se ao
menos seu fígado falasse!
Cássio era um advogado bem sucedido, que
dedicara quase toda sua vida à carreira razão
pela qual sua mulher pedira o divórcio. Filhos
crescidos, alguns já casados, Cássio aceitou a
separação. Afinal de contas, nos últimos tempos,
ele já sentia que não tinha mais família. Sua
vida era plena de vazios quando chegava em casa.
Raramente jantava e quando o fazia, fazia
sozinho.
Mas hoje, Cássio estava especialmente triste. O
uísque liberara seus pensamentos fazendo-o
viajar pelo tempo. Ele estava com quase 60 anos
e provavelmente iria morrer sozinho. Essa idéia
o assustava não da morte propriamente dita, mas
de morrer sem que ninguém soubesse e ficasse com
seu corpo inerte por dias em algum lugar
qualquer.
Seu escritório era dos maiores da cidade e sua
clientela era formada por grandes empresas e por
empresários bem sucedidos.
A separação fora amigável, ele não quis discutir
os termos do acordo de separação. Para ele a
vida não se resumia mais aos bens materiais
pelos quais lutara toda sua vida. Tudo o que a
esposa pediu, ele concedeu. Não queria saber de
discussões fúteis.
Enquanto tomava mais um gole de uísque ele ficou
imaginando se um dia ele amara realmente sua
esposa. Lia era uma boa mulher, um pouco
exigente talvez, mas isso ajudou-o a subir na
carreira. Ela também cuidara dos filhos e
orientou-os também na carreira que deveriam
seguir. Tivera três meninas e um menino e, por
incrível que pareça, nenhum deles quis seguir a
carreira do pai. No início, Cássio ficou triste
com a opção dos filhos, mas logo entendeu que
eles deveriam seguir seus próprios caminhos.
Era a primeira passagem de ano que ele passaria
completamente sozinho. Logo ele, tão acostumado
a festas grandiosas com toda a família e com
amigos. Na noite de Natal ele ainda viu os
filhos e a ex-esposa e quase todos o convidaram
para a ceia, mas ele recusou dizendo ter um
outro compromisso. Claro que era mentira, mas
ninguém insistiu e ele foi para seu apartamento
e, com as luzes apagadas, ficou na janela
olhando o céu e imaginando onde estaria a
estrela guia que daria um novo sentido à sua
vida.
A princípio a tristeza foi sendo substituída por
uma emoção muito forte e pela primeira vez em
sua vida ele se lembrou do aniversariante do
dia.
Mas agora era diferente, a festa era diferente,
e, em poucas horas, o milênio seria diferente.
Pessoalmente ele acreditava que isso não iria
mudar nada e que o dia seguinte seria um dia
igual a todos os dias do milênio que acabara.
Como era uma data especial, apesar de tudo, ele
quis reviver os momentos de sua vida na última
metade do século. Abriu as janelas da sala e
saiu para a varanda do apartamento. Sentou-se
ali, o balde de gelo e a garrafa de uísque; no
balde de gelo cuidou também de colocar uma
garrafa de champanha e uma taça. Decidiu que
precisaria comer alguma coisa, pois do contrário
não agüentaria esperar a virada do milênio. Foi
até a geladeira, pegou um queijo, uma faca,
guardanapo, e um pacote de castanhas de caju.
Pronto, sua ceia estava pronta. Neste ano, nada
de assados.
Tornou a pensar na ex-esposa e voltou a
perguntar-se se a tinha amado de verdade algum
dia. Chegou à conclusão que não. Quando ela
viajava de férias com os filhos, ele nunca
sentira falta dela e de seus queixumes. Suas
semanas eram tranqüilas e produtivas e suas
noites eram de paz e por que não dizer de alguns
prazeres também. Mas os finais de semana eram
bem desagradáveis e ele não sentia emoção
nenhuma em rever a esposa e também não sentia
nela nenhuma reação positiva. A rotina é que
dominava suas vidas e eles foram-se sujeitando a
isso até o momento em que não tiveram mais
forças para tentar continuar com o casamento.
Ele voltou, em pensamento, até o dia de seu
casamento, mas não conseguia mais lembrar nem
dos nomes de alguns dos padrinhos, não se
lembrava direito de detalhes da cerimônia e
tampouco da festa. Tudo fora tão bem organizado
por Lia, tudo tão certinho e tão chato! Por que
ele se casara com ela? Não foi pela beleza
apesar de Lia ter sido sempre uma mulher bonita.
Pela inteligência talvez, ela sempre sabia o que
queria. Foi voltando no tempo e lembrando-se de
seu namoro com Lia, das brigas por ciúme, da
primeira transa com ela e aí ele se lembrou
porque havia se casado. Ela engravidara na
primeira transa. E por isso ele se casou.
Mastigou algumas castanhas e bebeu mais um gole
de uísque. Tornou a olhar para a paisagem e só
aí percebeu que a noite já havia chegado. Que
horas seriam? Há quanto tempo estaria ali? Pelo
vazio da avenida, deveriam ser umas oito horas
da noite. Levantou-se e foi colocar uma música
de seu tempo para ajudar naquela sua regressão.
Escolheu um CD de Ray Conniff e foi-se lembrando
dos bailes que eram realizados todos os sábados,
sempre na casa de alguém.
Ia se lembrando dos amigos dos quais nunca mais
tivera notícias, das namoradas e das garotas de
quem ele gostou mas que nunca namorou. Cássio
perguntou-se se tivesse se casado com alguma
delas, teria sido mais feliz. Era difícil
responder. Ele continuou se lembrando das
garotas mas nenhuma lhe despertara atenção como
Lia fizera. Mas espera aí! Tinha uma garota, ele
não se lembrava do nome. Era muito bonita,
esguia e muito inteligente e estudiosa. Ele se
lembrou de que gostava dela, do jeito especial
que ela tinha, ela era diferente das outras.
Como era mesmo o nome dela? Enquanto tentava se
lembrar, no CD a música era Aqueles Olhos Verdes
e aí ele se lembrou de tudo, dos olhos verdes,
dos cabelos louros e compridos, do sorriso que
saia dos lábios finos também. Faltava o nome, o
nome e ele foi regredindo, tentando ver o nome,
lembrava que ela usava um pingente com uma
letra, que letra era aquela meu Deus?
Fechou os olhos, relaxou-se na cadeira, respirou
profundamente umas três vezes até sentir seus
músculos se relaxarem por completo e pensou no
ano em que a vira pela primeira vez. Teria sido
1964? 1965 talvez? A música que ouvia era dessa
época e Cássio resolveu que iria até o final de
1964. Foi relaxando e iniciando uma contagem
regressiva, começando no dez e indo até o um.
Quando chegou no um ele se sentiu no final de
1964 e aí ele lembrou de que não era a época
certa, pois no final daquele ano seu pai,
jornalista famoso, teve que viajar às pressas
para fora do país para escapar das perseguições
políticas que começavam a eclodir no Brasil.
Tinha que ser 1965. Abriu os olhos saindo
daquele estado de relaxamento em que se
encontrava e puxou pela memória. De janeiro a
março não havia bailinhos nas casas, muitos
viajavam de férias e havia os bailes de
formatura. Teria que ser de abril em diante, até
novembro talvez, pois dezembro também não tinha
bailes.
Ele a conhecera num baile, mas na casa de quem?
Quem de sua turma costumava dar aquelas
festinhas além dele próprio?
E uma lista de nomes começou a passar por sua
mente: Robertinho, Zé Carlos, Zé Eduardo, Inês,
Carioca, Soninha, Bete, Claudião.
- É isso, foi na casa do Claudião, no
aniversário da irmã dele. Foi em maio. Eu
preciso ir na casa do Claudião em maio, o dia, o
dia, véspera do dia das mães. É isso.
Cássio tomou mais um gole do uísque e sentiu que
já não desceu tão bem quanto os goles
anteriores. Tentou adivinhar as horas, mas teve
que se levantar para olhar o relógio. Eram onze
e quinze da noite. Estava quase na hora da
virada. Decidiu deixar o uísque de lado e tornou
a por uma música do seu tempo para tocar.
Procurou, procurou e colocou um CD de Johnny
Mathis.
“It’s not for me to say, you love me”. Enquanto
ia ouvindo a música, Cássio reiniciou todo o
processo de relaxamento. Como da primeira vez,
ele mentalizou o ano e a data e iniciou a
contagem regressiva de 10 até 1 com os olhos
fechados. Tentou visualizar a festa de
aniversário da irmã do Claudião e foi vendo a
casa, o amigo e a irmã, olhou-se e viu que
estava usando uma calça de veludo cotelê marrom
e uma blusa verde. Viu-se encostado na parede
conversando com amigos e segurando um copo de
Cuba Libre na mão, quando ele a viu chegar.
Olhou bem nos olhos verdes dela quando ela
passou por ele e viu também o pingente que
pendia de uma corrente. A letra era L e o nome
agora ele nunca mais esqueceria: Lucy.
Ele acompanhou Lucy com os olhos até ela se
encontrar com a aniversariante e cumprimentá-la.
Seu coração batia descompassadamente, pois ele
nunca havia sentido aquilo com nenhuma das
garotas que ele conhecia. Aproximou-se da
aniversariante e com a voz um tanto embargada,
presa na garganta, ele perguntou:
- Não vai me apresentar?
- Ué! Vocês ainda não se conhecem?
- Só de vista – ele respondeu.
Feitas as apresentações ele não conseguia largar
a mão da moça e na vitrola, alguém colocou o
disco do momento: Johnny Mathis e a música era a
mesma que estava tocando agora em seu CD Player:
My Love For You. Ele sem pedir foi puxando a mão
de Lucy e quando ela se deu conta, já estavam no
meio da sala dançando. Ele quase não respirava e
notou nela certo nervosismo também. A conversa
não rolava direito e às vezes os dois faziam uma
pergunta ao mesmo tempo, o que provocava risos
tímidos, mas não gerava respostas. Lucy estava
com um vestido azul estampado que combinava
muito bem com ela e Cássio não se cansava de
olhar para os olhos dela a ponto dela pedir para
ele não deixá-la encabulada. Ele se desculpou
educadamente e quando a música acabou e Lucy ia
se soltando dele, ele a segurou e pediu:
- Mais uma?
Na vitrola Johnny Mathis começava a cantar:
“Look at me..” e Cássio abraçou Lucy com mais
firmeza agora e sentiu seu corpo mais perto de
si. Cássio sentiu-se nas nuvens e enquanto
dançava ele parecia flutuar no espaço tal era a
leveza de Lucy quando dançava. Aproximou seu
rosto ao rosto dela e sentiu seu perfume. Jamais
esqueceria aquele cheiro, jamais! Sentindo-se
mais solto e sentindo que Lucy estava gostando
da companhia dele, assim que a música terminou
ele convidou-a para irem até o jardim que ficava
em frente da casa.
- Não sei se devemos, a gente acabou de se
conhecer.
- Na verdade eu a conheço há muito tempo Lucy,
desde que a vi pela primeira vez eu procurei
saber tudo a seu respeito.
- Você está me deixando sem graça, por favor.
- Vamos até o jardim, não estaremos sozinhos lá.
Sempre tem gente que sai para tomar um pouco de
ar.
- O que será que vão pensar?
- Não se importe com isso. Às vezes por nos
importarmos com o que os outros vão pensar de
nós, a gente não faz o que devia e fica infeliz
pelo resto da vida.
- Você está exagerando Cássio.
- Diz de novo.
- Você está exagerando.
- Não isso, eu queria ouvir você dizer meu nome
outra vez.
Ela ficou com as faces ruborizadas e um calor
subiu pelo seu rosto e agora foi ela quem pediu
para saírem um pouco e irem até o jardim.
Cássio acompanhou-a colocando a mão em suas
costas e logo encontraram um lugar onde puderam
se sentar, ou melhor, se encostar. Ficaram
conversando sobre banalidades e aos poucos os
dois iam se soltando e já se podia ouvir seus
risos.
À medida que o tempo passava começaram a confiar
um no outro e já trocavam confidências e assim
Cássio ficou sabendo que Lucy tivera um namorado
na escola e que havia desmanchado há pouco
tempo. Ele perguntou se ela tinha intenção de
voltar a namorar o rapaz e ao ouvi-la dizer que
não deixou escapar um sorriso, ao que ela
perguntou:
- Por que você está rindo?
- De felicidade! Assim talvez eu tenha uma
chance com você.
- Será?
Ele ficou sem jeito com a pergunta dela e
abaixou um pouco seus olhos.
- Você só vai saber se perguntar – ela disse.
Ele tornou a elevar seus olhos para dentro dos
olhos dela e pelo brilho que vinha deles ele
tinha a certeza de qual seria a resposta.
- Eu te amo Lucy! Há muito tempo que eu te amo.
Às vezes tarde da noite, eu passo em frente de
sua casa só para sentir você dormindo, olho para
sua janela e fico imaginando um dia desses você
acenando a mão para mim. Eu não paro de pensar
em você. Namora comigo Lucy.
- Olha, eu vou confessar que também faz tempo
que olho para você, mas sempre fiz força para
que você não percebesse. Eu não sei bem porque,
mas sempre tive medo de você me decepcionar.
- Isso nunca irá acontecer Lucy! É tão grande o
que eu sinto por você que jamais irei magoá-la.
Me dê sua mão, quero sentir você.
Deram-se às mãos e ficaram mais um pouco no
jardim. Quando um vento mais frio soprou, Lucy
arrepiou-se e Cássio puxou-a para perto de si e
os dois ficaram frente a frente. Olhos nos
olhos, corações palpitando e Cássio fez o que
sempre desejara fazer, aproximou-se mais de Lucy
e beijou-a nos lábios docemente. Uma vez, mais
outra e outra. E ficariam a noite toda ali se
alguém não chamasse todos para dentro para
cantarem o Parabéns a Você.
Entraram na casa de mãos dadas e muitos
perceberam que um namoro havia começado.
Ao final da festa, Cássio insistiu em acompanhar
Lucy até sua casa e foram andando pelas ruas de
mãos dadas, parando aqui ou ali para se
beijarem.
- Bem, chegamos – disse ela.
- Eu sei, infelizmente. Eu gostaria de ficar
mais tempo com você.
- Eu também Cássio, estou me sentindo tão leve,
nunca havia sentido isso antes.
- Eu também me sinto assim Lucy. É como se eu
tirasse um peso de 40 anos de meus ombros.
- É essa a mesma sensação que eu tenho. Mas está
na hora de eu entrar, meus pais não gostam que
eu fique no portão a essa hora. Boa noite!
- Boa noite meu amor, amanhã à noite eu venho te
ver novamente.
Beijaram-se mais uma vez e Lucy entrou para
dentro de casa.
Cássio virou as costas e seguiu seu caminho
feliz da vida por ter reencontrado a felicidade
que julgava perdida.
Na varanda do prédio da Avenida São Luiz o CD
Player tocava repetidamente Johnny Mathis. Na
mesinha um prato com queijo intocado, meia
garrafa de uísque e no balde de gelo somente
água, uma taça e uma champanha que não fora
aberta na virada do milênio. Na cadeira, o corpo
de Cássio, já sem vida, tinha um sorriso nos
lábios como nunca alguém o vira dar.
WebDesigner Isolda Nunes
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