Histórias de Quartel

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03.12.1971
No Quartel

Era 25 de janeiro de 1967. Era feriado em São Paulo,
mas não na unidade onde eu estava, que era no município
de Quitauna, no 4o. Regimento de Infantaria ou Recanto
do Inferno com querem alguns. Eu havia me incorporado
no dia 13 daquele mês e era ainda um novato, assustado
com tudo o que poderia me acontecer naquela nova experiência.

Estávamos todos correndo em volta do quartel numa
prova de resistência. Uma volta completa deveria ter
mais ou menos dois mil metros. Era a segunda volta e
avistei meus pais no portão principal do quartel.
Era uma visita que foram me fazer e me levaram biscoitos,
bolo, sanduíches, chocolates e refrigerantes. Eu não pude
falar com eles, mas me entregaram tudo o que eles haviam
me levado em meio à uma instrução sobre armamento.

Fui obrigado a abandonar a instrução para ir guardar
a merenda em meu armário, sob olhares de protesto do tenente.

À tarde, mais educação física. Eu já não agüentava mais,
como quase todos os outros soldados. Era o exercício mais
difícil e eu fiquei pregado ao solo. Foi quando ouvi a
voz zombeteira e irritada do tenente: “Ah seu Ivan,
nem com Fanta, bolachinhas e outros bichos você
levante heim?” Aquilo fez subir o sangue, pus-me a fazer o
exercício com uma vontade tamanha que, depois, se ele
não apitasse o fim do exercício de física e nos ordenasse
em forma, eu estaria fazendo flexões até hoje. Ora, onde já se viu?
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03.12.1971
Um outro dia

Um outro dia, também no quartel, estávamos fazendo exercícios
de obstáculos com uniforme de educação física.
Os obstáculos, na ordem, eram os seguintes:
1.- escalar uma espécie de escada de dois metros e meio de altura e pular lá de cima;
2.- arame farpado a 20 cm do chão; teríamos que passar por baixo;
3.- valetas;
4.- tronco de árvore num cavalete, sobre o qual deveríamos correr;
5.- novas valetas, ou melhor, buracos largos com um tronco de árvore
dentro, dispostos em ziguezague;
6.- bambuzal trançado;
7.- barra;
8.- labirinto;
9,- obstáculo com um tronco de árvore enorme, apoiado sobre cavaletes
mais largos que o tronco, de foram que este pudesse rolar sobre os
mesmos a uma altura de dois metros do chão.

A prova seria feita em grupos de quatro, sendo que os últimos
colocados de cada grupo deveriam passar na fila indiana, cujos
componentes usariam as camisetas como armas.

A prova se desenvolvia normalmente até os últimos obstáculos e,
principalmente o último, pois os músculos já estavam cansados e
não era mole pular o tronco.

Chegou a minha vez. Dada a ordem de partida eu e meus companheiros
disparamos a correr. Vencido o primeiro obstáculo, dei azar no
segundo, pois minha roupa ficou presa no arame farpado impedindo-me
de prosseguir. O suor escorria no rosto sujo de terra, quando
avistei meus companheiros nos últimos obstáculos.
O suor já estava misturado com lágrimas ao ver que todos
estavam no último obstáculo, quando me lembrei da fanta e
das bolachinhas. Dei um arranco tão forte que perdi a
camiseta e ganhei um enorme arranhão nas costas, mas fui
vencendo os obstáculos com muita voracidade, até chegar
ao tronco quando pareio, enxuguei os olhos, mordi os lábios e saltei.
Ganhei a prova em primeiro lugar.


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03.12.1971
Quando a situação aperta, a gente tem que se virar,
de uma maneira ou outra.

Esta história também aconteceu no quartel.
Foi talvez a mais dramática e engraçada história
da qual fui o personagem principal.
Eram mais ou menos 5,30 da manhã, quando a companhia
pôs-se em forma. O sargento fazia a vistoria da tropa:
mochilas bem presas às costas, cantil cheio, fuzil, pá e
picareta. Dada a ordem de marcha, começamos a andar.
Tínhamos que marchar 12 quilômetros até o Morro do Farol,
onde teríamos exercício de guerrilha, a chamada guerra moderna.
Chegamos ao local designado às oito e meia ou nove horas;
desfizemo-nos das mochilas e veio a ordem: cavar trincheiras
individuais e camuflá-las. Foi uma luta, pois as pás eram um
pouco maiores que aquelas que as crianças usam na praia para
cavar areia. Trabalhávamos sob forte sol e a sede e a fome
era uma constante. Havia a perspectiva de que o almoço
seria melhor, pois seria preparado no próprio local.
Dado o toque do rancho, preparamo-nos para a refeição. Todos
haviam terminado suas trincheiras; cada uma tinha um metro de
largura e dois de comprimento e a altura de cada um.
No almoço serviram “Q Suco” de abacaxi, o que veio a melhorar
o apetite. O suco estava quente e com aquele calor...
Após o almoço veio uns minutos de instrução e descanso.
Eram 3 horas da tarde e estávamos tendo instrução sobre
guerrilhas, quando o suco de abacaxi começou a manifestar-se
dentro de meu organismo, no intestino mais precisamente. Veio
o drama: aonde eu iria e como sair da instrução? Estávamos todos
sentados e eu comecei a afastar-me apoiando-me nas mãos. Quando
já estava um pouco distante do pessoal, pus-me a correr já tirando
as calças e mergulhei na trincheira que eu havia cavado.
Eu nunca pensei que uma trincheira fosse tão confortável.
Voltei à instrução sem que ninguém percebesse. Dadas as
explicações do que seria feito nos assustamos um pouco:
uma parte da companhia sairia às cinco horas e marcharia
pelo mato até às 6 ou 7 horas, quando a noite já se faria
presente. A outra parte ficaria nas trincheiras e em pontos
estratégicos. O primeiro grupo deveria tomar as posições
inimigas sem ser visto. Eu fazia parte deste grupo que estaria
armado apenas com granadas de gás lacrimogêneo, além dos fuzis
descarregados. O grupo que ficaria à nossa espera, estava armado
com as mesmas granadas e os fuzis estavam carregados com festim.
O festim, se atirado de pequena distância queima o corpo e fomos
alertados para não nos aproximarmos e nem nos deixarmos enganar pelo inimigo.
Estávamos bem distante do local de partida e novamente o suco
de abacaxi se manifestou. Por pouco eu não bombardeei a mim mesmo.
Mais adiante, novamente, mas fiz força para que nada acontecesse.
O sargento, comandante do grupo deu as instruções:
atacaríamos de três em três a cada 5 minutos.
E a cada 5 minutos partíamos para cumprir a missão.
Estava bem escuro, fazia frio e garoava.
Pareceu-nos fácil a missão.
chegou a minha vez e junto com meus dois companheiros
partimos. Em dado momento, lá estava o intestino me incomodando.
Era uma espécie de planície e mais à frente um paredão de terra.
Deixei o fuzil com um companheiro e fui escolher um “bom lugar”.
Depois saí à procura de meu companheiro e ao encontrá-lo,
este me disse que havia deixado o fuzil lá embaixo.
Estávamos escalando o paredão.
Fiquei desesperado e desatei a rolar terra abaixo.
Demorei muito para encontrar o fuzil e, ao encontrá-lo,
parti novamente para a escalada. tinha que cravar as unhas
na terra para facilitar a subida. Já estava só, perdido dos companheiros.
Bem mais à frente, já cansado, parei atrás de uma moita
para descansar. Foi quando ouvi um barulho. Do outro lado
da moita estava um inimigo. Eu estava sem granadas e não
sabia se ele as tinha. Além do mais havia o perigo do festim.
Tinha medo de sair dali para não ser agarrado e o inimigo talvez
tivesse medo de mim pois não saía do lugar. Foi quando o
suco de abacaxi me incomodou novamente, fazendo com que eu
realizasse uma das maiores proezas da história: deitado, pois é,
deitado. Eu não me arriscaria a levantar.
Ouvia-se muitos tiros mais acima no acampamento e a voz do
tenente soava forte: “podem sair, vamos embora, acabou a instrução”;
foi um erro, todos se levantaram e foram presos.
Após a advertência de termos deixado nos enganar, foi dada por
encerrada a instrução e retornaríamos ao quartel. Eram quase 23 horas.
A companhia preparava-se para o regresso, quando um soldado
fez a queixa: “roubaram meu relógio”. Feitas as investigações,
o culpado não apareceu.
Já no quartel, a tropa passara por revista
para ver se o relógio aparecia, mas nada.
Quando eu entrava para o alojamento, disse ao tenente:
“por que o senhor não faz todo mundo tirar a roupa? talvez
o relógio apareça”. Ele não concordou dizendo que o único
culpado era o dono do relógio e mandou que eu fosse dormir.
No chuveiro percebi do que eu havia escapado.
Do jeito que aquele suco de abacaxi deixou as minhas roupas,
seria um vexame despir-me perante os outros. Só de pensar,
quase, quase. Ainda bem que eu fui o único que tomou banho
naquela noite, pois a água era fria e o tempo mais frio ainda.

 
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