Por minha boca expressam-se multidões antigas.
Eu sou a voz do escravo silenciado pelo açoite,
eu sou o discurso que Cícero não pôde pronunciar,
eu sou o punhal assassino de Brutus,
o beijo de Judas, a traição de Lúcifer,
sou a cinza da poderosa Babilônia
e de tantas cidades que se diziam eternas.
Sou a bomba caindo na cabeça de Hiroshima,
a face indecifrável da esfinge,
o látego do tirano, a máscara do bandido,
o silêncio perturbador do general vencido
que se nega a pedir clemência.

Eu sou o pranto invisível da floresta que tomba,
indefesa, aos golpes da motosserra,
dos rios que secam, as fontes envenenadas,
do deserto que avança sem vida, das corredeiras estanques.
Eu sou o ar empesteado, as águas com mercúrio,
eu sou o último pio da última ave em extinção,
eu sou a asfixia dos peixes e o câncer de pele.
Eu sou a voz da ganância que gera todos esses crimes.
Sim, eu sou...

Tenho nome e sobrenome:
Às vezes, me chamo Pilatos,
quando lavo as mãos ante a injustiça.
Outras vezes meu nome é Pilantra,
porque, comerciante, roubo no peso e no preço;
porque, policial, assalto sob o escudo da farda;
porque, juiz, vendo sentenças na base do "quem dá mais",
pouco importando o destino das minhas vítimas.
Pilatos Pilantra: Este é meu nome...

Fui eu quem levou a Sócrates o copo de cicuta,
fui eu que incentivei o suicida para que saltasse no abismo,
fui eu que deu falsas esperanças aos transtornados,
para que mais perdurasse a sua desgraça.
Sim, fui eu...

Mas, sou também Madre Tereza de Calcutá
a beijar leprosos e a alimentar miseráveis.
Sou Luther King, sou Mahatma Ghandi,
repetindo à exaustão um evangelho de paz
em que ninguém acredita.
Sou Bertrand Russell, um ateu tão humano
que nenhum religioso lhe chegou aos pés.
Sou a consciência a torturar ditadores,
sou a moeda, pequena mas inestimável, que se depõe
sobre a mão estendida e não aquinhoada do esmoleiro,
sou o jornal que cobre o desvalido
quando adormece sob o frio dos viadutos.
Sou a noite perdida da prostituta,
sou o pão imprevisto nas mãos do faminto,
sou uma nesga de esperança na aridez do vazio.
Sim, sou eu...

Em mim falam os soterrados dos vulcões,
as mulheres adúlteras que foram lapidadas,
aqueles que o ódio amarrou à fogueira.

Falam em mim vozes espalhadas pelo tempo.

Em meus sonhos eu ouço a voz dos deuses
que o homem inventou no correr nos séculos.
Por mim falam Alá, Zeus, Jeová, Thor, Tupã, Íbis e Íris.
Falam-me Brama, Javé, Buda, Jesus e todos os profetas.
Sussurra-me o deus da vida, quando vejo minha neta Sofia,
enquanto Tânatos, o deus da morte, aluga meus ouvidos
com sua arenga eterna de que a vida tem fim.
Sim, por minha boca falam os deuses...

Eu sou permanentemente confuso:
multiplico pães, mas distribuo serpentes,
agarra-me às tábuas da lei, mas adoro o bezerro de ouro,
morro pelo meu próximo e torço pelo seu mal.

Moram comigo, em renhida disputa,
o bem e o mal, o certo e o errado,
o gesto heróico e o abominável.

Bem se vê que sou tudo isso:
um amaranhado impossível de desatar,
um cipoal de sentimentos enredados,
eu, o puro... eu o delinqüente...
Eu, que sou composto de moléculas
de todos os seres, vivos ou inanimados.

Sim, porque eu sou tu, e tu, e tu, e tu...
Sim, porque eu sou a síntese do homem...
...do homem que é tudo, do homem que é nada.

 

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