Apocalipse sonoro em versão ideal para nerds
O Devo juntou ficção científica com humor negro e Kraftwerk com Giorgio Moroder para fazer de sua estréia, Q: Are We Not Men? A: We Are Devo, um manifesto contra a burrice.
por André Barcinski
Corria o ano de 1974. Mark Mothersbaugh e Jerry Casale cursavam arte
na Universidade Kent State, em Ohio (Estados Unidos), quando um evento macabro mudou a
vida dos dois: naquele ano, a polícia invadiu o campus para reprimir uma manifestação
estudantil. Os tiras distribuíram bordoadas e tiros. Quatro estudantes morreram. O fato
ganhou manchetes em todo o mundo e inspirou Neil Young a escrever seu clássico Ohio,
gravado pelo Crosby, Stills, Nash & Young.
A morte dos alunos mexeu muito com Mothersbaugh e Casale e convenceu-os
da veracidade de uma teoria maluca que há muito vinha remoendo seu cérebro: a tese da
"de-evolução". "Começamos a perceber que o homem estava andando para
trás", disse Casale certa vez. "Atingimos o ápice do avanço tecnológico e,
em vez de evoluir, passamos a retroceder, a voltar à época das cavernas."
Fanáticos por Kraftwerk, música eletrônica e artes plásticas, os
dois juntaram tudo isso à teoria da de-evolução e formaram o grupo que, sozinho, fundou
a new wave. O Devo era mais um conceito do que uma banda. Antes de lançar qualquer disco,
já tinham pensado num visual, uma mistura engraçada de roupas à Jornada nas
Estrelas com ridículos capacetes de peão de obra. Em 1974, isso era o futuro.
O grupo nasceu com o puro espírito punk do "faça você
mesmo". Casale e Mothersbaugh começaram a gravar demos num porão. A música era
minimalista ao extremo: órgãozinho vagabundo, bateria eletrônica de quinta, uma ou
outra guitarra, vocais quase falados. Apesar da precariedade, essas demos (editadas anos
depois nos dois CDs da série Hardcore Devo) são obras-primas absolutas.
O primeiro disco do Devo, Q: Are We Not Men? A: We Are Devo!,
de 1978, juntava todas as influências da banda: futurismo kitsch, George Orwell, Planeta
dos Macacos, 2001, ficção científica barata, o humor negro do Monty
Python, Kraftwerk, Giorgio Moroder, cinema experimental. Era uma experiência audiovisual,
uma trilha sonora do Apocalipse, versão nerd. E a música era sublime: batidas
eletrônicas capazes de sacudir até o mais enferrujado dos mortais, refrãos pop
pegajosos e letras espertas.
O trabalho causou comoção: o festejado Brian Eno produziu o álbum;
David Bowie fez questão de apresentar a banda num show de Nova York. Grupos como Pere
Ubu, B-52's e até o Talking Heads se inspiraram no pop cibernético de Mothersbaugh,
Casale e cia.
Como a maioria dos grandes discos da história, a estréia do Devo não
vendeu bem. Sucesso comercial, o quinteto só obteria em 1980, quando a faixa Whip It
estourou nas rádios. Mas a teoria da de-evolução se espalhou, influenciando muita
gente: Kurt Cobain era um dos maiores fãs; Trent Reznor e Billy Corgan também; grupos
como Man or Astro-Man? e Atari Teenage Riot nem existiram sem o Devo. E até os Simpsons
usaram a banda como prova da teoria da de-evolução em Springfield. Homenagem maior,
impossível.