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A METAFÍSICA DA
MORTE (1)
Georg Simmel
Nos seus aspectos mais íntimos,
em cada época da civilização, a vida está em
estreita interação com o sentido que se atribui à
morte. A nossa concepção da vida, a nossa concepção
da morte, nada mais são do que dois aspectos de um só e único
comportamento fundamental. Se bem que as reflexões aqui propostas
se proponham a deduzir seus resultados a partir dos mais diversos conceitos
de morte, bem podem, pelo método empregado, ilustrar o modo como
uma forma de pensamento nascido numa dada situação cultural
se situa em relação a este problema.
O que antes de tudo distingue
o corpo não-orgânico do corpo vivo, é que a forma que
o limita é determinada de fora - seja no sentido mais exterior,
de que ele pára onde um outro começa vindo opor-se à
sua extensão, seja de que ele obedece a influências moleculares,
químicas ou físicas: assim a forma do rochedo é constituída
pela erosão, a da lava pela solidificação. O corpo
orgânico dá a si mesmo a sua forma de dentro para fora; deixa
de crescer quando as forças inatas que o determinam tenham atingido
o seu limite; e estas forças determinam constantemente o modo particular
da sua extensão. As condições do seu ser também
são as da forma em que este se manifesta, enquanto para o objeto
não-orgânico, estas últimas residem fora dele.
O segredo da forma é
que ela é limite e é ao mesmo tempo o objeto e a cessação
do objeto, o lugar onde o ser e o não-mais-ser do objeto são
um só. E para fixar este limite, o ser orgânico, ao contrário
do ser inanimado, não tem necessidade de um terceiro.
Ora, o seu limite não
é somente espacial; é igualmente temporal. Como o ser vivo
morre e a morte se coloca ao mesmo tempo que a sua própria natureza,
pouco importando que a necessidade esteja já compreendida ou não,
a sua vida assume uma forma na qual a combinação do
sentido qualitativo e quantitativo se dá diferentemente do que no
espaço.
Para compreender a significação
da morte, tudo depende da medida em que nos liberarmos da idéia
das "Parcas" que exprime o aspecto sob o qual a vemos habitualmente:
como se, num momento dado, o fio da vida fosse bruscamente "cortado",
como se a morte impusesse um limite à vida no mesmo sentido em que
o corpo não- [fim da página 177]
orgânico pára no espaço porque um outro
corpo, com o qual em si nada tem a ver, o empurra e determina a sua nova
forma - quer dizer, a própria cessação do seu ser.
Assim a maior parte das pessoas visualiza a morte como uma profecia sombria
que sobrevoa a vida, mas que só tem a ver com ela no instante da
sua realização, assim como sobrevoou a vida de Édipo
a profecia de que num dado momento haveria de matar seu pai. Na realidade,
no entanto, a morte está, de saída, intimamente ligada à
vida.
Deixo de lado a querela biológica
sobre se os seres unicelulares são imortais, pois só fazem
dividir-se em vários seres vivos e nunca deixam corpos mortos atrás
de si (e isto sem a intervenção de uma força exterior),
sendo a morte nada mais que um fenômeno que se acrescenta à
vida dos organismos pluricelulares - ou ainda se toda a sua substância
física ou parte dela também perece. Estamos tratando aqui
seres que morrem, quer dizer, cuja vida está intimamente ligada
à morte, mesmo que outros seres apresentem uma forma de vida que
por seu lado não esteja desde sempre submetida àquela condição.
Mesmo assim, o fato de que a
nossa vida esteja orquestrada com a morte e constantemente determinada
por ela, também não está em contradição
com o desenvolvimento da vida normal que segue um movimento ascendente
durante um certo período em que vai sempre crescendo tornando-se
por assim dizer mais viva, e só começa a apresentar os primeiros
sinais da descida, depois de haver chegado a um ponto culminante no seu
desenvolvimento - tendo estado aparentemente mais distanciada da morte
do que em todos os momentos precedentes. No entanto esta vida que se torna
mais plena e mais forte se situa num contexto de conjunto cujo eixo está
na morte. Assim como a causa não precisa perdurar no resultado,
com a sua substância e sua forma próprias, uma primeira criação
pode, ao contrário, ter por efeito a determinação
de uma segunda completamente diferente de um ponto de vista qualitativo,
acontecendo o mesmo no sentido inverso; a morte pode habitar a vida, desde
o início, sem que para isso seja constatável a qualquer momento,
ela ou uma partícula sua, enquanto realidade. Mas a cada instante
da vida nós somos seres que vamos morrer e o momento presente
seria tudo, se este não fosse o nosso destino inato e atuante. Assim
como não estamos verdadeiramente aí desde o instante do nascimento,
mas que há continuamente um pouquinho de nós nascendo, não
é só no instante derradeiro que morremos.
Pode-se ver claramente a significação
da morte como criadora de forma. Ela não se contenta com limitar
nossa vida, quer dizer, dar-lhe forma à hora do desenlace ; ao contrário,
a morte é para a nossa vida um [fim da
página 178] fator de forma, que vai matizar todos os
seus conteúdos, fixando-lhe inclusive os limites. A morte exerce
a sua ação sobre cada um dos seus conteúdos e dos
seus momentos; a qualidade e a forma de cada um deles seriam outras se
lhes fosse possível sobrepor-se a esse limite imanente.
Um dos maiores paradoxos do
cristianismo é o de retirar da morte esta significação
apriorística, colocando a vida sob o ângulo da sua própria
eternidade. E isto não só porque promete uma continuidade
após o último instante de vida na terra; mas também
porque coloca o destino eterno da alma sob os conteúdos da vida:
cada um mantém ao infinito a sua significação ética
como causa determinante do nosso futuro transcendente, quebrando assim
a sua própria limitação intrínseca. Nestes
termos, a morte parece suplantada: primeiro porque a vida, esta linha que
se estende no tempo, ultrapassa o limite formal do seu fim; mas também
porque ela nega a morte, que opera através de todos os momentos
da vida e os limita do interior; ela a nega precisamente em virtude das
conseqüências eternas desses momentos singulares.
E quando olhamos na direção
oposta, a morte aparece de novo como aquilo que dá forma à
vida. Para todo organismo, a situação dada no seio do seu
próprio universo é a seguinte: para manter-se em vida, a
cada instante é preciso de certo modo adaptar-se - no sentido mais
amplo do termo. O fracasso desta adaptação significa a morte.
Assim como todo movimento automático ou voluntário pode ser
interpretado como pulsão vital, pode sê-lo igualmente como
fuga diante da morte. Com relação a isso, cada um dos nossos
movimentos pode ser apresentado simbolicamente em um número aritmético
que se obtém seja por adição, seja por subtração.
Talvez ainda a nossa atividade consista, pela sua essência, numa
unidade misteriosa aos nossos próprios olhos, que não podemos
alcançar como tantas outras unidades, a não ser decompondo-a,
na busca de vida e na fuga da morte. Não somente cada passo da vida
nos aproximaria da hora da morte, mas seria, positivamente e a priori
modelado por ela, que é um elemento real da vida. E esta modelagem
é então determinada ao mesmo tempo pela evitação
da morte: na verdade, pena e prazer, trabalho e repouso e todos os nossos
comportamentos considerados naturais, são uma fuga instintiva ou
consciente da morte. Esta vida que ao passar nos aproxima da morte, nós
a passamos fugindo dela. Somos como homens andando sobre um barco no sentido
oposto ao seu curso: avançamos para o sul, mas o lastro que pisamos
é levado junto conosco para o norte. O acoplamento destas duas direções
em que nos movemos determina a todo instante a nossa situação
no espaço.
[fim
da página 179]
Esta modelagem da vida pela
morte em todo o seu decurso, permaneceu até aqui de certo
modo uma expressão que em si não conduz a conclusões:
tratou-se apenas de substituir a representação habitual -
a morte considerada simplesmente, por assim dizer inorganicamente, como
o golpe de tesoura da Parca que põe fim à existência
- pela sua representação ccomo um fator de forma no curso
contínuo da vida; se a morte não existisse, se não
existisse além da sua visibilidade total na hora derradeira, a vida
seria absolutamente, inconcebivelmente outra. Quer se considere a sua difusão
embiótica (sic) seja como um começo de sombra advindo do
acontecimento que constitui a morte singular, seja como uma modelagem e
uma coloração autóctones próprias a cada momento
da vida, de todo modo é somente ela que, ao mesmo tempo que a acuidade
da morte, serve de fundamento para certas representações
metafísicas sobre a essência e o destino da alma. Nas reflexões
que se seguem, não dissociarei expressamente as modificações
introduzidas por uma ou por outra acepção da morte: seria
fácil isolar a parte de cada uma destas representações.
A formulação hegeliana
- de que toda coisa atrai o seu contr&aaacute;rio e forma com ele uma síntese
superior, à qual está certamente subsumida, mas onde precisamente
ela vem assim a "si"- em nenhum outro lugar revela mais o seu
sentido profundo do que na relação entre a vida e a morte.
A vida em si atrai a morte enquanto contrário, enquanto o "Outro"
em que se transforma a coisa e sem o qual essa coisa não possuiria
absolutamente o seu sentido e a sua forma específicos. Conseqüentemente
a vida e a morte se encontram no mesmo degrau do ser como tese e antítese.
Assim se eleva acima de ambas alguma coisa de superior, os valores e as
tensões da nossa existência situados além da vida e
da morte não são mais atingidos pela sua oposição
e só nessa coisa a vida chega a ela mesma, ao seu sentido supremo.
O fundamento deste pensamento
é de que a vida, segundo os seus dados imediatos, desenrola o seu
processo na indivisão completa dos seus conteúdos. Esta unidade
efetiva só pode ser vivida, pois enquanto tal ela não se
deixa dominar intelectualmente. É o entendimento que pela sua análise
a recorta nestes dois elementos, e a linha assim traçada deve igualmente
corresponder a uma estrutura objetiva do objeto que corresponda a unidade
do vivido nos seus dados afetivos - certamente a outro nível da
realidade.
Tanto sobre o plano objetivo
como sobre o plano psicológico, a possibilidade desta separação
não está dada, me parece, e em particular com relação
a certos valores superiores, dado que o seu suporte, o seu processo, estão
submetidos à morte. Se vivêssemos eternamente, a vida [fim
da página 180] se misturaria indiferenciadamente aos
seus valores e aos seus conteúdos; não haveria incitação
nenhuma a pensá-los fora da forma única onde os conhecemos
e poderíamos vivê-los inúmeras vezes. No entanto nós
morremos, e assim sentimos a vida como alguma coisa de contingente, de
passageiro, que também poderia ser diferente. Nasceu assim, sem
dúvida, o pensamento de que os conteúdos da vida não
têm qualquer necessidade de partilhar o destino do seu processo;
assim se terá imposto à atenção a significação
de certos conteúdos, válida além da vida e da morte,
independentemente do seu caráter passageiro e finito. Só
a experiência da morte terá podido desfazer esta fusão
estreita, esta solidariedade entre a vida e os seus conteúdos.
Mas são precisamente
estes conteúdos de significação intemporal que permitem
à vida terrestre atingir seus píncaros mais puros: absorvendo
em si estes conteúdos que são mais do que ela mesma, seja
derramando-se neles, a vida ultrapassa a si mesma, sem se perder. Na verdade
ela se ganha, pois o seu curso toma sentido e adquire valor enquanto processo
e de certo modo vem a consciência da sua razão de ser.. É
preciso primeiro que a vida possa destacar dela mesma, idealmente, estes
conteúdos, para elevar-se conscientemente até eles; e esta
separação se realiza na perspectiva da morte que certamente
pode anular o processo da vida mas não a significação
dos seus conteúdos.
Quando esta separação
entre a vida e o seu conteúdo que sobrevêm com a morte deixa
sobreviver os conteúdos, o mesmo acento recai sobre a outra corrente,
sobre a linha que os separa. O processo da vida psíquica na sua
totalidade faz surgir cada vez mais, clara e forte, num ritmo sempre crescente,
esta construção a que se pode chamar o eu. Trata-se da essência
do valor, do ritmo e por assim dizer do sentido íntimo que voltam
à nossa existência, este fragmento particular do universo;
trata-se de estarmos na verdade como que entrando num jogo, mas sem por
isso o sermos no sentido pleno. Este eu se situa numa categoria específica
pedindo uma descrição ainda mais precisa: uma terceira que
está além ao mesmo tempo da realidade dada e da idéia
axiológica, uma categoria irreal e unicamente postulada.
Ora o eu, no começo do
seu desenvolvimento, tanto na consciência subjetiva quanto no seu
ser objetivo, está estreitamente ligado aos conteúdos particulares
do processo da vida. E assim como este processo de vida aparta de si os
seus próprios conteúdos, assim como eles assumem uma significação
além da realidade dinâmica na qual são vividos, do
mesmo modo o processo de vida recai igualmente sobre a sua outra corrente,
por assim dizer, o eu; este se destaca e se diferencia , num certo sentido
uno actu dos conteúdos e, enquanto significação
particular, enquanto valor, existência e exigência, ele se
[fim da página 181] destaca
ao mesmo tempo também dos conteúdos que em primeira instância
se encontram exclusivamente na consciência ingênua. Quanto
mais vivemos, mais o eu se assinala como a unidade e a continuidade no
interior de todas as oscilações pendulares do destino e da
representação do mundo; e isso não só no sentido
psicológico, em que a percepção do mesmo e do durável,
em fenômenos diferentes, é facilitada e garantida pelo seu
crescimento numérico; o eu se deixa ver também no sentido
objetivo, em tal medida que ele se junta mais puramente em si, se destaca
de todo o fluxo das contingências que circundam os conteúdos
vividos, se desenvolve cada vez com maior segurança, cada vez mais
independente daqueles, a caminho do seu próprio sentido e do seu
próprio conceito.
Aqui intervém o pensamento
da eternidade. Assim como no caso anterior a morte submerge a vida como
para liberar a intemporalidade dos seus conteúdos, vista a coisa
sob outro ângulo, ela põe termo à série dos
conteúdos vividos, sem que para isso seja interrompida a exigência
do eu: aperfeiçoar-se eternamente ou continuar a existir, que é
o durante dessa intemporalidade. A imortalidade, esta nostalgia ancorada
no mais fundo de muitos humanos, significa que o eu poderia conseguir separar-se
inteiramente da contingência dos conteúdos particulares.
Do ponto de vista religioso,
a imortalidade costuma ter outro sentido. Mais freqüentemente ela
diz respeito a um ter: a alma deseja a felicidade ou a contemplação
de Deus, ou simplesmente quer continuar a existir; ou ainda, num grau mais
intenso de sublimação ética, ela deseja uma qualidade
que é sua: ser liberada, justificada, ou purificada. Mas tudo isso
não fica em jogo em relação ao sentido que damos aqui
à imortalidade: um estado da alma em que ela não vive mais,
onde o seu ser não se realiza mais num conteúdo que tenha
qualquer sentido ou existência fora dela. Enquanto vivemos, vivemos
objetos. Certamente com o passar dos anos e com o seu aprofundamento, o
eu se destaca cada vez mais como processo puro, como o invariável
e o sólido no fluxo múltiplo dos conteúdos, permanecendo,
de um modo ou outro, estreitamente ligado; a alma que se desprende, se
autonomiza; significa só que ela se aproxima assintoticamente de
um eu que por nada existiria a não ser por si mesmo. Sempre que
a crença na imortalidade existe numa recusa de todo conteúdo
material que a tomasse por finalidade - seja por ausência de profundidade
ética ou simplesmente em nome do incognoscível - sempre que
se procure a imortalidade na sua forma pura, a morte haverá de aparecer
como o limite além do qual os conteúdos singulares da vida
ainda enunciáveis deixam o eu, e onde o seu ser, o seu processo
nada mais são do que puro pertencimento a si, pura autodeterminação.
NOTA
1)Traduzido
pela professora Simone Carneiro Maldonado (DCS/PPGS-UFPb).
Este site foi modificado pela última vez em 18 de Outubro de 1999, por
Carla Mary S. Oliveira.