Bruxas, Deusas e Anarquia:

uma íntima relação com a natureza

 

Agência de Notícias Anarquistas

O que anarquismo, deusas e bruxas têm em comum? Descubra você mesmo.“O mais importante, sempre, é fugirmos das formas estáticas, cediças, inertes, estereotipadas, lugares-comuns, etc.”, como dizia o escritor Guimarães Rosa. E a ANA, na sua eterna busca de sentir e pensar (para agir), foi conversar com a Bruxa das Águas, mulher tão misteriosa como as profundezas do Mar e poeticamente selvagem como as crianças. A seguir, ela nos fala de liberdade, sensibilidade, amor, delírio, fúria, lutas, ou seja, mais uma forma de SER Anarquista!
Ah, 31 de outubro é o dia das bruxas? Não! Todos os dias são o dia da bruxa!!!


Agência de Notícias Anarquistas - Por que Bruxa das Águas?

Bruxa das Águas - Esse é um segredo, mais uma brincadeira, mas ainda assim, tem ligação com uma cachoeira, com a Juréia, e claro, a Serra do Mar!


ANA - O que anarquismo, bruxaria, deusas... têm em comum?

Bruxa das Águas - Primeiro temos que entender o que é bruxaria, e o que vem a ser esta deusa, a que idéia ela está ligada. Acredito que tanto a bruxa como a deusa, como queira, estão ligadas a concepção dos povos tradicionais, tanto uma como a outra tem uma íntima relação com a natureza... Ao princípio feminino, que tem muito haver com “imaginação e ação”, uma atitude diante da vida, contemplação, sensibilidade, amor, solidariedade, luta e agressividade com vigor, atributos da deusa, da mãe. E que nestes povos o próprio homem, também, encarna este princípio, pois o oposto ao patriarcado, não é o matriarcado, é a fraternidade, ambos desejam o poder, e o principio feminino nos ajuda a ver isto, portanto até mesmo a agressividade e a violência em defesa da vida, como a mãe em defesa de seu filho, uma luta por justiça e liberdade.
A bruxa olha nos olhos dos deuses, encara sem medo, diferente do padre que os adora. Isto é muito diferente do ideal cristão de dar a outra face, e está muito próximo dos ideais anarquistas (encarar o poder e lutar sem medo).

É claro que nem todos os povos tradicionais adoram a Deusa, aliás, cada povo indígena tem suas crenças e religiões totalmente diferentes, apenas o que todos têm em comum é este princípio feminino.
E nós, que nos dizemos anarquistas, ácratos, etc., não conseguimos compreender que a religião destes povos nasce da observação deles com a natureza, e muitos mitos existem para que haja sempre um equilíbrio com esta, uma troca solidária. Aliás, mito e ciência têm muito haver...


ANA - Explique melhor essa relação "mito e ciência"...

Bruxa das Águas - É simples, não tem segredo. A ciência parte da observação dos fenômenos da natureza, é a forma acadêmica de explicá-los. O mito, também, apenas muda a linguagem, pois está ligado com a religião, com o sagrado... E também, com uma visão de mundo racional e equilibrada. Vou dar um exemplo: em algumas tribos indígenas, as pessoas antes de se banharem no leito de um rio, afastam as águas com a mão ou assopram, para espantar os “maus espíritos”, senão ficam doentes. Você sabe que sobre o leito do rio ficam toda espécie de mosquitos, larvas etc.? Precisa falar mais alguma coisa? (risos)
Então eu falo, há a época certa de se caçar, pois senão o totem (animal sagrado) ficará irado, ou seja, é proibido caçar na época de reprodução de determinado animal. Etc., etc. e etc...

Muito do que a ciência descobriu, ela deve a estes povos e sua religião... Sabias que a anestesia vem de uma planta chamada “curare”?, que os índios utilizam na caça, para adormecer o animal antes de ser abatido, por respeito e também para amenizar a dor da morte deste? Então imagina agora a ciência sem o “pensamento selvagem”, sem a sabedoria dos povos tradicionais, não é a toa que a Amazônia está sendo tomada militarmente pelos EUA, que querem não somente a água, mas praticar legalmente a biopirataria, que já acontece há muitos anos.


ANA - Caramba, a primeira vez que li o mito Guarani, a "Terra Sem Males", vi ali tanto anarquismo... (risos)

Bruxa das Águas - Uma busca do paraíso que é muito mais que um lugar, mas uma concepção de vida, onde estão os seus ancestrais (a memória preservada), a tradição do povo guarani, onde há caça, pesca e a divisão de tudo isto. E, também, onde todos são parentes e podem viver em festa e rituais... É transformar o lugar que estão na Terra Sem Males... Quer mais anarquismo!? Então lá vai: Pierre Clastres no seu livro “Sociedades Contra o Estado” descobriu que sempre que há a centralização do poder por um cacique, é hora deles caminharem em busca da “Terra Sem Males”. É anarquismo ou não? (muitos risos)


ANA - Você acredita que há mais mistérios entre o céu e a terra, como diz vã a filosofia?

Bruxa das Águas - Do que a nossa vã filosofia pode supor... é claro! Já sentistes o sol nascer para ti? Uma semente germinar da terra e dar-te o fruto para alimentar-te sem nada pedir? Já contemplastes as estrelas numa noite onde a lua rompe a escuridão para iluminar-te o caminho? Será que alguma vez tivestes o privilégio de ver um beija-flor defender o seu ninho, tão pequenino, e espantar sem medo passarinhos cinco vezes o seu tamanho? Ou ainda, apenas sentir a brisa leve acariciar o teu rosto, e enxugar as tuas lágrimas? Somos, Moésio, a própria natureza... Não fazemos parte dela, somos ela... Este é o mistério!


ANA - Você não acha que o anarquismo é a idéia/prática que mais se aproxima da "natureza do ser"?

Bruxa das Águas - Acredito, pois nega todo poder, toda hierarquia, toda ordem estabelecida. E tem a liberdade e a justiça como pilares. O único problema é alguns anarquistas. (risos) Se fecham nas suas próprias idéias como verdade absoluta e não compreendem outros modos de vida, apenas têm como parâmetro a nossa sociedade ocidental e o ego pra alimentar. (risos)

Não nos entregamos ao diferente... A outros mundos... Porque, cada filha e filho da terra, carrega em si um universo... Cada povo carrega em si uma galáxia. Este é o nosso paradigma... Na medida que resgatando mitos antigos, falo da transformação radical da sociedade... Penso que em vez de anarquismo pode ser uma cisão de ecologia profunda, social... O nome é o que menos importa.


ANA - O que alimenta o seu dia-a-dia, expande sua mente e a sua prática. Sabedoria das culturas dos povos originários, taoísmo, ocultismo...

Bruxa das Águas - O que alimenta meu dia-a-dia é o vento, misturado com arroz, feijão e muito verde... (risos) O que expande minhas idéias é cada nascer do sol... Minha prática é procurar sentir ... Em tudo, o pulsar da vida...

Repara como tudo isto: taoísmo, ocultismo, sabedoria dos povos tradicionais, xamanismo, estão intrinsecamente ligados com a natureza? Falam a mesma língua, apenas com idiomas diferentes... (risos) É importante conhecê-los, apenas para compreender o que somos sem dogmatizá-los.


ANA - Existem povos originários capazes de escutar o desabrochar de uma flor. Você acha que o homem civilizado ainda poderá um dia fazer o mesmo?

Bruxa das Águas - O “homem civilizado”, e o que vem a ser civilizado? Eu te digo, o homem moderno, que construiu sua civilização, com o sangue de outros povos e ainda se orgulha de ser civilizado viver numa sociedade urbano-industrial, e se afastar cada vez mais de si mesmo. E é a partir da idéia de progresso que os homens modernos tem cometido os maiores crimes contra a mãe Terra e também contra os filhos da Terra, não é à toa que os povos indígenas têm sido massacrados há 504 anos no continente americano, pois nós, nós mesmos, inclusive muitos anarquistas, acreditamos que eles vivem num estágio inferior à “civilização”. Bom pretexto pro massacre, “o ideal civilizatório”, e ainda, que a natureza existe apenas para nos servir, idéia que nasce com René Descartes, quando ele idealiza o mecanicismo, ou melhor, a Mecânica Celeste que abrirá caminho para uma visão utilitarista da natureza.
Poderemos escutar, ver e sentir, pois sentir é viver, quando acordarmos do pesadelo da civilização... Tá parecendo Matrix, mas, não achas, que somos carrascos de nós mesmos, os grandes agentes da manutenção deste sistema?


ANA - Na verdade eu quis dizer "homem sifilizado". (risos)

Bruxa das Águas - Põe sifilizado nisso! (muitos risos)


ANA - O que representa a música, a dança... para uma bruxa?

Bruxa das Águas - Lembra Moésio que um dia me dizeste que o nosso coração é uma orquestra? Quer mais poesia que isto? Eu não poderia significar melhor... Na música sentes o compasso do universo, que faz o teu corpo pulsar em movimentos ritmados ao encontro da própria vida... Um dia vi centenas de borboletas dançando para conquistar suas parceiras... A música? O som de uma cachoeira... Ou seria o vento embalando as folhas das copas? Há uma ligação em tudo: música, dança, sedução, e sexo...

Te disse anteriormente que para os povos da Terra viver é poder estar sempre em festa, dançar, cantar... Pois eles resolvem todos os problemas, intrigas etc. numa festa. Não há ódio que resista a uma música, a uma poesia... Nem corpo que não dance!


ANA - E o sexo?

Bruxa das Águas < O êxtase da alma... É quando corpos apaixonados dançam num ritmo misterioso, em que o prazer impulsiona a música secreta que embala-os e encontra eco nos corações acelerados, entrar em sintonia com o mistério de se estar vivo, com o todo... Sentir o universo pulsando dentro de nós. E ainda, no gozo, nos libertamos das correntes de um sistema manipulador. “Quanto mais se goza mais quero fazer revolução”. Lembrou o cearense Hermes Harlley, slogan da contracultura (Maio de 68), pichado nas ruas da França, e no Brasil também.

E é isso mesmo, o orgasmo liberta-nos de nós mesmos, pois somos os tentáculos invisíveis que mantém a opressão de uma sociedade doente. Se você não goza se torna deprimido, e passa a oprimir, já lestes Wilhelm Reich? Ele levou mais de 20 anos em pesquisas científicas para provar como é essencial para a vida humana o orgasmo, como o governo manipula os corpos oprimidos, e banaliza o sexo. Por causa de sua obra e da sua invenção (o Orgone) ele foi torturado, preso, e morreu num cárcere frio como castigo por tentar libertar as mentes, através do sexo. Ele descobriu o ponto essencial para uma revolução social: “o orgasmo como energia criadora de mentes solidárias”.


ANA - E as "drogas"?

Bruxa das Águas < Depende do que entendemos por drogas... Pois a cannabis, segundo pesquisas científicas pode ser utilizada para cura de muitas doenças: glaucoma, stress, dor de cabeça, insônia, anorexia, entre outras. Inclusive utilizada na cura do câncer no lugar da quimioterapia (isto sim é uma droga possante!) nos países em que a pesquisa e o uso são liberados, como por exemplo, a Holanda. Imagine se as pesquisas quanto aos efeitos benéficos do ácido continuassem?

Existe ainda a Ayuasca, um chá feito a partir de um cipó com uma folha (mariri e chacrona) que está longe de ser classificada como droga, pois, apesar das tentativas do governo federal, não conseguiram encontrar o princípio ativo que determina o que é droga. Utilizada entre os índios da Amazônia, que acreditam curarem de muitas doenças, foi inclusive patenteada pelos EUA, e só depois de um longo processo, a patente foi cancelada.

Há milhares de anos os “índios” utilizam a cannabis, ayuasca, folha da coca, etc. para entrarem em contato com o sagrado, com os elementos da natureza, buscando respostas, perguntas, há uma ligação com o modo de vida e a religião de cada povo, É difícil compreendermos isto, pois, na nossa sociedade, onde perdemos de vista o significado da vida, as drogas são utilizadas como fuga (claro, só fugindo desta loucura), então as tornamos destruidoras de nós mesmos, sem controle, sem significado, muitas são lançadas na periferia para exterminarem os jovens, filhos dos pobres. Sem falar na TV, no cigarro, na coca-cola (que financia a guerra) entre outras distrações “inocentes”.

Existe uma muito interessante inventada por Aldous Huxley na sua obra “Admirável Mundo Novo”: a Soma, (um líquido escuro, não te lembra coca-cola?) produzida pelos governantes e de uso obrigatório. Sem falar na do Ray Bradbury, “Farenheit 451”: a TV interativa, também obrigatória em toda residência no lugar dos livros. Parece ficção, mas, infelizmente, não é.


ANA - O que você teria a dizer sobre os movimentos ecológicos atuais, principalmente grupos como "SOS Mata Atlântica", "Greempeace"...

Bruxa das Águas - Apenas que são mais uma peça na engrenagem de um sistema corroído pela ganância, uma ecologia que não rompe com a prática vigente. Em muitas ocasiões que precisamos deles, em manifestações ou ações, nos deparamos sozinhos, foi assim, quando do trajeto do lixo atômico (plutônio) para embarcar num navio aos EUA. Ficamos sabendo em cima da hora (pois era segredo de Estado) e eles simplesmente já sabiam, e acompanharam todo trajeto pacificamente, sem nos avisar, mesmo assim, juntamos uma centena de pessoas para alertar a população, e protestar contra o envio e a utilização da energia nuclear pelos governos do Brasil e EUA, você tava junto. Quer mais, recorda, quando fizemos a manifestação em Cubatão contra a instalação da Termelétrica? Eles apareceram no final, com toda parafernália para fotos e foram embora... E quando fomos, você também, à Secretaria do Estado do Meio Ambiente de São Paulo, para impedir a votação para instalação da dita cuja, enfrentamos sozinhos, os guarda costas (guarda roupas) do Trípoli, não tinha ninguém nem do SOS Mata Atlântica ou do Greempeace, conseguimos barrar a instalação, através da denúncia no Ministério Público. Esta luta ainda não terminou. Vou parar por aqui senão vou longe com a minha vassoura... (risos)


ANA - Você é uma bruxa dissidente, militante... Mas no geral sabemos que esse universo místico, esotérico, da nova era está fixado numa lógica consumível, de mercado, de charlatanismo, acomodação, não?

Bruxa das Águas - Corretíssimo, este é o problema da sociedade capitalista: mercantilizar tudo, transformar em moda. É a forma mais perfeita de se acabar com o significado das coisas, dos movimentos, dos sentimentos... etc.

Ação e imaginação... Lembra? Atuar com força e coragem na defesa do que se acredita, por um bosque ou por uma árvore, por um indivíduo, ou por um povo... Nossas atitudes traduzem o que somos. Isto sim, escrever a nossa própria história e o nosso destino, sem medo... Pois somos, todos, bruxas ou bruxos e podemos “olhar nos olhos dos deuses”.


ANA - O "movimento" anarquista é marcadamente masculino, com uma presença bem reduzida de mulheres. E nas minhas divagações eu acredito que o "movimento" anarquista ficará cada vez mais forte, ousado, corajoso... com a presença crescente de mulheres. Aliás, acho que a vida em geral ficará mais legal se os homens "se tornarem mulheres", ou seja, valorizar e liberar o feminino que está dentro de nós. O que você pensa sobre isso? (risos)

Bruxa das Águas - É isso mesmo, eu vou mais longe. Acredito que o problema é a educação e a mentalidade machista tanto em homens como nas mulheres, compreender o que é este princípio feminino, que falei anteriormente, reflexo da própria natureza, tolerância, sensibilidade, amor, contemplação, solidariedade e a revolta como atitude diante das injustiças...

Infelizmente há poucas mulheres em muitas coisas, pois fomos e ainda somos, submetidas pela sociedade machista, e o medo inconsciente é o que nos move, nos aprisiona, num cárcere frio e solitário... Mas ainda assim, sabemos que a força da mulher é imensurável, e por muitas vezes ela fez história, lutou, gritou, reagiu como uma verdadeira bruxa... (muitos risos) Legal seria se todos os homens buscassem a mulher ou a bruxa que reside dentro de vocês.


ANA - Chegamos ao fim do papo, se bem que daria para ir longe com essa conversa, mas antes de você pegar sua vassoura e voar para às águas misteriosas do mar, jogue palavras "finais" ao vento...

Bruxa das Águas - Escuta teu coração... Ele é mais poderoso que qualquer arma já inventada pela mente humana... Não há quem não sinta, nem quem não pulse diante da beleza de SER, simplesmente ser... Lutar com força e raiva... sempre, diante de tudo, agir, se fazer presente, nos transformar em coração... pulsando amor e ódio.
E acima de tudo respeitar a Religiosidade destes povos que é plena e não de alienação, é a forma mais natural de nos conectarmos com as pessoas e o ambiente, é muito mais que uma religião, e não importa nem mesmo se és ateu, ou não, pois isto está ligado com a tradição e a resistência viva anticapitalista, ela é a firmação do pensamento e da prática dos povos tradicionais... filhos da Terra! “Na luz de uma estrela... brilha o teu olhar”.

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