A
atual realidade está formada, como nunca esteve, de imensas penas e de cinismo:
uma grande lágrima no coração da humanidade. O quotidiano vê aumentar a sua dose
de horrores sem cessar acompanhada por um apocalipse rompante do meio ambiente.
A alienação dos espíritos e os poluentes químicos disputam o predomínio na
dialética da morte que rege a vida de uma sociedade dividida e gangrenada pela
tecnologia. O cancro, desconhecido antes da civilização, transformou-se numa
epidemia numa sociedade cada vez mais estéril e literalmente tumorosa.
Repentinamente,
todos consumiremos drogas; sejam administradas sob regras ou vendidas sob
contrabando, isto apenas é uma distinção formal. A terapia dos transtornos de
cuidados oferece outro exemplo da tendência coercitiva da medicamentação da
angústia e a agitação generalizada, que gera uma realidade cada vez mais
frustrante. A ordem dominante fará, evidentemente, todo o possível por negar a
realidade social. A sua tecnopsiquiatria considera o sofrimento humano como de
natureza biológica e de origem genética.
Novas
patologias, resistentes à medicina industrial estendem-se à escala planetária da
mesma forma que o fundamentalismo religioso - sintoma de frustração e de
profunda miséria psíquica. E à espiritualidade New Age (a filosofia para uso
"dos caranguejos", segundo Adorno), assim como as inumeráveis terapias paralelas
deleitam-se em vãs ilusões. Pretender que pode-se estar íntegro, esclarecido e
em paz no seio da loucura atual é, de fato, aceitar esta loucura.
O
fosso entre ricos e pobres alarga-se, particularmente neste país onde os sem-teto e os presos
contam-se por milhões. A cólera aumenta e as mentiras da
propaganda que fundamentam a sua sobrevivência não encontram já a mesma
credibilidade. Este mundo, onde reina a falsidade, encontra apenas a adesão que
merece: a desconfiança em direção às instituições é
quase absoluta. Mas a vida social parece congelada, e o sofrimento dos jovens é
sem dúvida o mais profundo. A taxa de homicídios entre adolescentes de 15 a 19
anos duplicou entre 1985 e 1991. O suicídio transformou-se em reação de procura
de cada vez mais adolescentes, que não encontram forças para alcançar a idade
adulta num inferno como este.
A
nossa época pós-moderna encontra a sua expressão essencial no consumo e na
tecnologia, que dão aos mass media a sua força estupefaciente. Imagens e slogans
impactantes e fáceis de digerir impedem de ver o espetáculo terrorífico da
dominação que repousa essencialmente sobre a simplicidade das representações.
Inclusive os enganos mais flagrantes da sociedade podem servir para esta empresa
de hipnose coletiva, como é o caso da violência, fonte de infinitas diversões.
Seduzem-nos as representações de comportamentos ameaçantes, pois o aborrecimento
é uma tortura maior que o espanto. A natureza, ou o que resta dela, reprova-nos
amarguradamente o modo em que a existência atual está pervertida, frígida e
adulterada. A morte do mundo natural e a penetração da tecnologia em todas as
esferas da vida desenvolve-se a um ritmo cada vez mais rápido. A multidão
informaticamente enlaçada, os marginais tecnóides, os ciber-não-importa-quê, a
realidade virtual, a inteligência artificial... Até chegar à vida artificial,
última ciência pós-moderna. Entretanto, a nossa Era da Computação "pós-industrial", tem com principal conseqüência a nossa transformação acelerada
num "apêndice da máquina", como se dizia no século XIX. As estatísticas da
administração judicial indicam, todavia, que as empresas, cada vez mais
informatizadas, são o teatro de cerca de um milhão de delitos violentos por ano,
e que o número de patrões assassinados duplicou nos 10 últimos anos.
O
sistema, na sua atroz arrogância, espera que as suas vítimas se conformem
votando e reciclando os seus resíduos, fazendo-lhes crer que tudo irá muito
bem.
O espectador é somente suposto, não tem de saber nada e não merece nada.
A civilização, a tecnologia e as divisões que dilaceram a sociedade, são componentes de um todo indissolúvel. Uma carreira para a morte, fundamentalmente hostil às diferenças qualitativas. A nossa resposta terá de ser qualitativa, sem fazer caso dos eternos paliativos quantitativos que reforçam, de fato, aquilo que queremos abolir.
Tradução de Manuel Oliveira