Fichamento: HESSE, Konrad – A Força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: safE, 1991.
I-
Hesse se contrapõe às concepções de
Lassalle, e busca demonstrar que o desfecho do conflito entre os fatores reais
de Poder e a Constituição não necessariamente implica na derrota desta. Existem
pressupostos realizáveis que permitem assegurar sua força normativa. Apenas
caso estes pressupostos não sejam satisfeitos é que as questões jurídicas podem
se converter em questões de poder (5).
II-
Apesar
de reconhecer o significado dos fatores históricos, políticos e sociais para a
força normativa da Constituição, Hesse enfatiza o aspecto da vontade de
Constituição. A Constituição transforma-se em força ativa se existir a
disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se
fizerem-se presentes, na consciência geral (especialmente na consciência dos
principais responsáveis pela ordem constitucional), não só a vontade de poder,
mas também a vontade de Constituição (5).
III-
Para
Lassalle, as questões constitucionais não são jurídicas, mas políticas, onde os
fatores reais do poder formam a Constituição real do país. Ou seja, esse
documento chamado Constituição – a Constituição jurídica – nas palavras de
Lassalle, não passa de um pedaço de papel. De certa forma, esse pensamento
existe até hoje. Desse modo, o poder da força seria sempre superior à das
normas jurídicas, onde a normatividade se submeteria à realidade fática. Isto
levaria à conclusão de que a condição de eficácia da Constituição, isto é, a
coincidência de realidade e norma, constitui apenas um limite hipotético
extremo. É que entre a norma fundamentalmente estática e racional e a realidade
fluida e irracional, existe uma tensão necessária e imanente que não se deixa
eliminar (9-10).
IV-
Isto
significaria a própria negação da Constituição jurídica, de modo que o Direito
Constitucional não estaria a serviço de uma ordem estatal justa, e teria apenas
a mísera função de justificar as relações de poder dominantes. Para que essa
doutrina possa ser afastada, é preciso admitir que a Constituição contém, ainda
que de forma limitada, uma força própria, motivadora e ordenadora da vida do
Estado. A questão consiste em determinar se ao lado do poder determinante das
relações fáticas, expressas pelas forças políticas e sociais, existe também uma
força determinante do Direito Constitucional – força normativa da Constituição
(11).
V-
Para responder esta questão, deve-se levar em
conta três fatores:
1-
O
condicionamento recíproco existente entre a Constituição jurídica e a realidade
político-social;
2-
Os
limites e as possibilidades da atuação da Constituição jurídica;
3-
Os
pressupostos de eficácia da Constituição.
VI-
1. Ordenação e realidade devem ser consideradas
em sua relação, em seu contexto e em seu condicionamento recíproco. Para quem
apenas contempla a ordenação jurídica, a norma ou está em vigor, ou derrogada.
Já para quem só leva em conta a realidade política e social ou não consegue
perceber o problema em sua totalidade, ou será levado a ignorar, simplesmente,
o significado da ordenação jurídica (13).
VII-
Tanto
no positivismo jurídico de Escola de Paul Laband e Georg Jellinek, quanto no
“positivismo sociológico” de Carl Schmitt, percebe-se o isolamento entre
realidade e norma, entre ser e dever ser.
Deve-se encontrar um caminho entre a realidade despida de qualquer
elemento de normatividade, de um lado, e a normatividade esvaziada de qualquer
elemento de realidade, de outro (14).
VIII-
A
norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua
essência reside em sua vigência, onde a pretensão de eficácia não pode ser
separada das condições históricas de sua realização. Apesar disto, constitui um
elemento autônomo em relação à estas condições (14-15).
IX-
A
Constituição não configura apenas a expressão de um ser, mas também de um dever
ser. Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e
conformação à realidade política e social. Ela não é apenas determinada pela
realidade social, mas também determinante em relação a ela. Desse modo, a força
condicionante da realidade e a normatividade da Constituição podem até ser
diferenciadas, mas não definitivamente separadas ou confundidas (15).
X-
2.
“Constituição real” e “Constituição jurídica” condicionam-se mutuamente, mas
não dependem simplesmente uma da outra. A Constituição adquire força normativa
conforme realiza sua pretensão de eficácia. Nesse contexto cabe analisar as
possibilidades e limites de sua realização (16).
XI-
Somente
a Constituição que se vincula a uma situação histórica concreta e suas
condicionantes, dotada de uma ordenação jurídica orientada pelos parâmetros da
razão, pode, efetivamente, desenvolver-se. Se não quiser permanecer
“eternamente estéril”, a Constituição – entendida aqui como “Constituição
jurídica” – não deve procurar construir o Estado de forma abstrata e teórica.
[...] se as leis culturais, sociais, políticas e econômicas imperantes são
ignoradas pela Constituição, carece ela do imprescindível germe de sua força
vital (16 e 18).
XII-
A
natureza peculiar e a possível amplitude da força vital e da eficácia da
Constituição definem-se simultaneamente. A norma constitucional só atua se
busca construir o futuro com base na natureza singular do presente. Mas a força
normativa da Constituição não reside somente na adaptação inteligente a uma
dada realidade. Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela
pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas
tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a
própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os
questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder
identificar a vontade de concretizar essa ordem [OBS: Ver item II, que trata da
vontade de Constituição] (18-19).
XIII-
Essa vontade de Constituição origina-se de três
vertentes diversas. Baseia-se na compreensão da necessidade e do valor de uma
ordem normativa inquebrantável, que projeta o Estado contra o arbítrio
desmedido e disforme. Reside também na compreensão de que essa ordem
constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos (e que, por isso,
necessita estar em constante processo de legitimação). Assenta-se ainda na
consciência de que, ao contrário do que se dá com uma lei do pensamento, essa
ordem não logra ser eficaz sem o concurso da vontade humana. Essa ordem adquire
e mantém sua vigência através de atos de vontade (19-20).
XIV-3. Os pressupostos que permitem
à Constituição desenvolver sua força normativa referem-se tanto ao conteúdo da
Constituição quanto à práxis constitucional. Enunciaremos abaixo os principais
requisitos:
XV-
Quanto
mais o conteúdo de uma Constituição lograr corresponder à natureza singular do
presente, tanto mais seguro há de ser o desenvolvimento de sua força normativa.
Isso lhe há de assegurar, enquanto ordem adequada e justa, o apoio e a defesa
da consciência geral. Deve também a Constituição mostrar-se em condições de
adaptar-se a uma eventual mudança dessas condicionantes (sociais, políticas,
econômicas, e principalmente as referentes ao estado espiritual de seu tempo).
Por fim, a Constituição não deve assentar-se numa estrutura unilateral, se
quiser preservar a sua força normativa num mundo em processo de permanente
mudança político- social. Deve, então, incorporar, mediante meticulosa
ponderação, parte da estrutura contrária. Pois caso a Constituição ultrapasse
os limites de sua força normativa, a realidade haveria de pôr termo à sua
normatividade, derrogando os princípios que ela buscava concretizar (20-21).
XVI-O desenvolvimento da força
normativa da Constituição não depende, como dito, só do conteúdo da
Constituição, mas também de sua práxis. A concepção de vontade de Constituição
deve ser partilhada por todos os partícipes da vida constitucional. O
comprovado respeito à Constituição é fundamental, sobretudo naquelas situações
onde sua observância revela-se incômoda (exemplo: sacrifica-se um interesse, ou
alguma vantagem justa em favor da preservação de um princípio constitucional)
(21-22).
XVII-
Também
é perigosa para a força normativa da Constituição a tendência para a freqüente
revisão constitucional, que abala a confiança na sua inquebrantabilidade,
debilitando sua força. A estabilidade constitui condição fundamental da
eficácia da Constituição. Finalmente, a interpretação tem significado decisivo
para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A
interpretação deve levar em conta as condicionantes dadas pelos fatos concretos
da vida, correlacionando-as com as proposições normativas da Constituição. Mas
ao mesmo tempo em que a mudança das relações fáticas deve provocar mudanças na
interpretação da Constituição, o sentido da proposição jurídica estabelece o
limite da interpretação e, por conseguinte, o limite de qualquer proposição
normativa. Se o sentido de uma proposição normativa não é mais realizável, a
revisão constitucional faz-se inevitável (22-23).
XVIII- Em suma, a Constituição
jurídica está condicionada pela realidade histórica; somente se esta é levada
em conta a pretensão de eficácia da Constituição pode se realizar. Graças ao
elemento normativo, a Constituição ordena e conforma a realidade política e
social – não é simplesmente a expressão de uma dada realidade. Através da
correlação entre ser e dever ser é que se dão as possibilidades e os limites da
força normativa da Constituição. Desse modo, a Constituição jurídica logra
conferir forma e modificação à realidade (24).
XIX-A efetividade dessa força
normativa depende da amplitude da convicção acerca da inviolabilidade da
Constituição (vontade de Constituição). Quanto mais intensa for a vontade da
Constituição, menos significativas hão de ser as restrições e os limites
impostos à força normativa da Constituição. Contudo, a vontade da Constituição
não é capaz de suprimir esses limites, aos quais a Constituição deve se
conformar. Desse modo, a Constituição não configura simples pedaço de papel,
tal como afirma Lassalle (24-25).
XX-
Em caso de conflito, a Constituição não deve
ser considerada, necessariamente, a parte mais fraca. Existem pressupostos
realizáveis que, mesmo em caso de confronto, permitem assegurar a força
normativa da Constituição. Apenas quando esses pressupostos não puderem ser
satisfeitos, dar-se-á a conversão dos problemas constitucionais, enquanto
questões jurídicas, em questões de poder (25).
XXI- A força normativa da Constituição não está assegurada de plano, configurando missão que somente em determinadas condições, poderá ser realizada de forma excelente. Compete ao direito constitucional realçar, despertar e preservar a vontade de Constituição, que, indubitavelmente, constitui a maior garantia de sua força normativa (26-27). Pois a resposta à indagação sobre se o futuro de um Estado é uma questão de poder ou um problema jurídico depende da preservação e do fortalecimento da força normativa da Constituição (32).