A Propriedade no pensamento de Sto. Tomás de Aquino.

Dalmir J. Lopes Jr.

UNI-RIO 9º período

 

Podemos delimitar algumas fronteiras históricas na abordagem filosófica do direito de propriedade. Em geral seguindo a racionalidade da época, suas práticas comerciais e seus costumes. Parece-nos correto enunciar uma divisão, a qual se estabelece alternada e sucessivamente de forma negativa e em seguida positiva. Primeiramente, encontramos os fundamentos da propriedade no direito romano, em que esta é vista pela sociedade da época como ius utendi et abutendi res sua (Digesto I,5,pr) - ou seja, a faculdade natural de se fazer o que quiser com a coisa, sofrendo limitações ínfimas. Na Idade Média, a filosofia cristã começa a redefinir as noções do conteúdo jurídico em relação a propriedade, insurgindo contra o conceito ilimitado romano - apresentando-se como uma etapa positiva à anterior. Com o advento da modernidade e a primazia das relações comerciais, a propriedade ganha novamente ares ilimitados (Locke). E logo após a segunda grande guerra sofre outra vez novas restrições com a idéia de função social.

Aqui faremos uma incursão histórica ao período medieval, para vislumbrar e tentar desmitificar a afirmação de que a Idade média teria sido um período "perdido nas trevas", de ter sido uma "grande noite", em que a aurora dos tempos se encontrava no iluminismo. Em matéria de direito de propriedade, a filosofia medieval é extremamente reveladora e inspiradora. A Idade Média, em termos filosóficos, divide-se em período patrístico (patrístico – relativo aos padres da Igreja) e escolástico (formação das escolas da Igreja). O primeiro vai aproximadamente do séc. I até o séc. VIII, enquanto o segundo se subdivide em três, mas que no geral, vai do séc. IX ao XV. É na Escolástica, precisamente em sua terceira fase (cujo principal expoente é Sto. Tomás de Aquino), que ocorrem as primeiras traduções latinas da obra de Aristóteles por Guilherme de Moerberke e Roberto de Groselteste, ademais se formam as ordens mendicantes (especialmente a franciscana e a dominicana, cujos seguidores, em geral, despertam cedo para a filosofia marcada pelo pensamento aristotélico - como algo a parte da teologia) e funda-se, também, a Universidade de Paris e de Oxford. Tudo isso marca a sensível passagem do período patrístico, no qual a racionalidade mediadora de Deus é determinante em todos e quaisquer especulações filosóficas. Diferentemente dos escolásticos, que separam totalmente a razão da fé. A razão explica a fé para estes, enquanto para aqueles a fé é inabalável frente a razão, como no dizer de San Anselmo: credo, uti intelligan (creio para conhecer). As doutrinas cristãs, portanto, são primeiro teológicas para depois se tornarem filosóficas.

Para Sto. Tomás a propriedade é subentendida numa dupla divisão: uma propriedade do suficiente e outra da superabundância. Extrai-se esta dualidade da Questão LXVI da Summa Teológica (Do furto e do Roubo), onde Sto. Tomas de Aquino parece encontrar uma barreira intransponível ao analisar o Art. II (se é lícito a alguém possuir uma coisa como própria). Por um lado, depara-se com a afirmação de Basílio, que explica: “Os ricos, que consideram como seus os bens comuns de que em primeiro lugar se apropriaram, são como àquele que chegando primeiro ao espetáculo e apossando-se do que é destinado ao uso comum, privasse dos seus lugares os que chegassem mais tarde”. Donde se extrai que as coisas, como graças divinas, são por direito dos homem em geral, sendo um Direito Natural deste, pois todas as coisas são comuns. Ou ainda, como sustenta Ambrósio, explicitando a questão da terra, “ninguém chame a próprio o que é comum (Nemo proprio dicat quod est comune). No Art. I da referida questão (se é natural ao homem a posse dos bens externos) apresenta como reforço à idéia de direito natural, a seguinte proposição: “(...)não devemos nos atribuir o que pertence a Deus(...), conforme àquilo da Escritura : Do Senhor é a terra, etc. [logo] (...) Deus tem o domínio principal sobre todas as cousas. Ora, ele mesmo, na sua providência, ordenou certas ao sustento corporal do homem. E, por isso, este tem o domínio natural delas, quanto ao poder de usar.” [grifo nosso]. Supõe-se que Deus dispôs os bens a todos. Ilícito, sob o signo divino, apropriar-se da obra de Deus uns e não outros, pois todos são filhos do mesmo pai, não escolheu alguns a sua imagem em detrimentos de outros. Por outro lado, Sto. Agostinho diz: “Chama-se Apostólico, os que arrogantíssimamente a si se deram esse nome, por não receberem na sua comunhão os que usam do matrimônio e que têm propriedade privada, com na Igreja Católica(..)”. O que levaria a aceitar o domínio dos bens exteriores pelo homem.

Da polêmica conclui Sto. Tomás que, em relação aos bens exteriores, o homem tem dois poderes:

1º - Administrar e distribuir – E quanto a esse, é lícito alguém possuir alguma coisa como própria. Constitui-se em princípio fundamental à vida humana por três razões. Primeiro é que cada um é mais solícito em administrar o que lhe pertence, do que o comum a todos. Segundo, as coisas humanas são melhor cuidadas quando cada um emprega os seus cuidados em administrar uma coisa determinada. Terceiro, porque cada um cuidando do que é seu satisfeitamente, reina a paz entre os homens.

2º - Uso – como deixou transparecer acima, esta é a essência, porque o uso é o delimitador do quantum cada um deve se apropriar individualmente; é a medida comum; é fruto da lei natural como argumenta na passagem do Art. I: “quanto a este [o uso], o homem não deve ter as coisas exteriores como próprias, mas, como comuns, de modo que cada um comunique facilmente aos outros, quando delas tiverem necessidade”. Tudo que excede às nossas necessidades é uma violência ao próximo (Plus quam sufficeret sumptui, violenter obtentum est).

Assim, a propriedade do suficiente é absoluta em relação à necessidade. A necessidade é medida pelo mínimo necessário para sustentar a vida moral, e este mínimo é obtido com base na dignidade humana. Apesar de ser, por um lado, o conceito de dignidade humana um tanto abstrato, pois é acima de tudo um conceito ético, assevera G. Renard, que existia uma obrigação correlativa: o trabalho. Pois está escrito no Cap. II do Gênese: Tu ganharás teu pão com o suor de teu rosto, e S. Paulo acrescenta: Aquele que não trabalha não tem o direito de comer. Portanto, o trabalho é a condição moral da posse da subsistência. “E quando nem o trabalho, nem a despeito do trabalhado não se lhe prestar a devida assistência para assegurar esse indispensável, então, o direito a vida do pobre prevalece sobre a superabundância do rico” (Renard. 1965. P.13) Pois, aquele que se encontra em estado de necessidade premente tem o direito de subtrair da superabundância alheia. Assim Sto. Tomás: sive manifeste sive occulte sublatis, então não há furto nem rapina, nec hoc proprie habet rationem furti vel rapinae. Enquanto a propriedade da superabundância diz respeito a tudo que extrapole a este mínimo (ético).

Já a propriedade da superabundância deve ser fundada a partir da utilidade geral, e não somente sob a necessidade privativa do proprietário. A propriedade entendida aqui é afetada por uma relatividade distinguindo dois elementos: um individual e um social, atribuídos respectivamente aos princípios de administrar e distribuir (procuratio et dispensatio). Os bens exteriores por este aspectos específico “(...)devem reverter em benefício da comunidade, pois a propriedade é um serviço do Bem Comum (...)”(Renard.1965. p14).  Administração ordena os valores e depois deve haver uma distribuição proporcionada às necessidades de cada um.

Em síntese, vislumbra-se a brusca mudança de pensamento da época romana, para o pensamento medieval (especialmente o escolástico), em que a propriedade antes tida como postestas, passa a ser um atributo funcional (procurandi et dispensandi). A propriedade agora não se define como um fim em si mesmo, mas como um meio de alcançar a dignidade humana com base no mínimo à vida moral. Passou-se de um visão do direito como ordenador da sociedade, para uma visão do mesmo como coordenador social. Por fim, terminamos com as palavras de Gulherme (Personagem de Humberto Eco em O nome da rosa)  que parecem sintetizar o pensamento tomista essencialmente ético: “Nós dizemos [franciscanos]: não possuímos nada e temos tudo em uso. Ele dizia [Sto. Tomás]: podeis considerar-vos possuidores contanto que, se a alguém faltar o vós possuís, vós lhe concedais o uso, e por obrigação, não por caridade”.

 

·          Aquino, Sto. Tomás. Summa Teológica.

·          Messer, A. Filosofía Antigua y Medieval. 2ª Ed. Revista do Ocidente. Madrid. 1933.

·          Moreira Alves, J. C. Direito Romano. RJ. Forense. 1997 (V. I)

·          Renard, Georges. A função social da propriedade privada. RJ. 2ª Tiragem. 1965.

·          Wróblewski Lodz, Jerzy. La propriedad: tipologia, axiologia y politica en el marco socialista. In: Revista Crítica Jurídica. Ano V. nº 8. UAP. México. 1988.

 

 

 

 

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