Friedrich Karl von Savigny e a Escola
Histórica do Direito
Flávio Elias Riche·
O historicismo marca o pensamento alemão durante o fim do século XVIII e
início do século XIX, configurando, no campo filosófico-jurídico, a denominada escola
histórica do Direito, representada magistralmente por Savigny. O contexto
em que ocorre seu advento é caracterizado pela grande simpatia com que contava
o romantismo na época, inspirando a valorização da tradição, do sentimento e da
sensibilidade, em lugar da razão, que não é capaz de tudo gerar. Valoriza,
pois, as manifestações espontâneas, devido à individualidade e variedade do
próprio homem, demonstrando ao mesmo tempo um enorme amor ao passado, que não
apenas explica o presente, mas também gera motivações para o futuro. Dessa
forma, a história possuiria um sentido irracional, de modo que não é possível
compartilhar do otimismo iluminista, que vê na razão uma força propulsora e
transformadora do mundo, capaz de sanar todos os males da humanidade. O Direito
aqui é visto não como mero produto racional, mas antes um produto histórico e
espontâneo peculiar a cada povo.
A escola histórica do
Direito é, portanto, eminentemente anti-racionalista, opondo-se à filosofia
iluminista através de uma dessacralização do direito natural,[1]
substituindo o abstrato e o universal pelo particular e pelo concreto. Ao
criticar radicalmente o jusnaturalismo, a escola histórica abre caminho para o
desenvolvimento do positivismo jurídico na Alemanha. Todavia, é bom lembrar
tais movimentos não são idênticos, de forma que não é possível considerar
Savigny propriamente como um positivista, afirmativa esta que é confirmada pela
posição deste autor frente à polêmica da codificação.
O movimento pela
codificação, de inspiração abertamente iluminista, marca o período de transição
para o século XIX, propugnando a positivação do direito natural através de um
código posto pelo Estado, representante de um direito universal. Rejeita,
assim, o direito consuetudinário, por ter como base o irracionalismo da
tradição, contrário aos princípios da civilização. Sustentado em um
racionalismo extremado, este pensamento foi plenamente recepcionado pela escola
da exegese francesa, e cristalizou-se através do Código napoleônico, cuja
influência se fará presente em praticamente todos os movimentos codificadores
dos demais Estados ocidentais.
A Alemanha foi um dos países europeus que mais tardiamente
formulou um Código Civil, em razão não apenas do ambiente cultural existente,
mas também devido à sua fragmentação territorial. Sua situação político-social
era obviamente bem diversa da francesa, de modo que a defesa de princípios como
o da igualdade formal entre todos os cidadãos, era uma postura bastante
inovadora para uma sociedade que ainda manifestava características feudalistas,
como a distinção da população entre nobreza, burguesia e campesinato. Destarte,
a proposta de se criar um direito único, inspirado nos moldes do Código de
Napoleão, irá gerar inúmeras controvérsias entre os alemães, como se pode ver através
do debate entre Thibaut e Savigny.
Thibaut
será um defensor da codificação, alegando que a positivação permitiria superar
a confusão de conceitos e as obscuridades presentes no direito alemão. Ademais, tal ordenação sistemática
configuraria inclusive um passo decisivo para a futura unificação da Alemanha,
de forma que suas vantagens seriam não apenas jurídicas, mas também políticas.
É bem verdade que Savigny irá compartilhar com os defensores da codificação a
exigência de formular-se um direito mais sistemático para por ordem a este caos
jurídico. Todavia, Savigny afirma que as condições político-culturais da
Alemanha não são propícias ao desenvolvimento de uma codificação, de modo que a
melhor solução para sanar tais defeitos estaria na própria ciência do Direito:
“Raccolgo ora, in breve, i punti, sui quali la mia
opinione s’accorda con quella de’caldeggiatori di un codice, e i punti su cui
discordamo. Nello scopo andiamo di concerto: noi vogliamo il fondamento di un
diritto non dubbio, sicuro dalle usurpazioni dell’arbitrio, e dagli assalti
dell’ingiustizia, questo diritto egualmente comune a tutta la nazione, e la
concentrazione degli sforzi scientifici di lei. Per questo scopo essi
desiderano un codice, il quale però a una metà soltano della Germania
arrecherebbe la bramata unità; chè l’altra metà resterebbe vieppiù separata.
Per me, io veggo il verace mezzo in un’ organizzata progressiva scienza di
diritto, la quale può esser comune all’ intera nazione”.[2]
Portanto,
a ciência do Direito não apenas produz os mesmos efeitos de unidade e
sistematização que a codificação, mas ainda tem vantagem sobre esta na medida
em que não petrifica o Direito através da uma rigidez cega, tornando-o mais
maleável e adaptável. O Direito para Savigny tem suas bases no costume,
devendo, pois, exprimir o sentimento e o espírto do povo (Volksgeist).
Não pode, pois, ser universal e imutável, tampouco criado arbitrariamente pelo
legislador. Doravante, o papel sistematizador que a codificação exerce em
outros países, na Alemanha, principalmente na primeira metade do século XIX,
esta função organizativa será incumbência da ciência do Direito, principalmente
por meio da atividade dos pandectistas, que intentaram sistematizar
cientificamente o direito comum então vigente naquele país.
Como podemos perceber, a noção de
sistema é essencial para Savigny, principalmente no que diz respeito à
interpretação das leis. Todavia, cabe ressaltar que existem dois momentos no
pensamento deste autor: o de sua juventude, até aproximadamente 1814, e o de
sua maturidade, após esta data, quando o elemento sistemático torna-se objeto
de maior atenção.[3]
Em seus primeiros trabalhos, Savigny tomava
como objeto da interpretação tão somente a reconstrução do pensamento expresso
na lei, passível de ser extraído apenas a partir da própria norma, demonstrando
certo teor positivista-legalista em suas concepções. Rejeita, pois, qualquer
interpretação que amplie (extensiva) ou limite (restritiva) o sentido da letra
da lei, assim como nega a possibilidade de uma interpretação teleológica, uma
vez que o dever do juiz se resume a executar a lei, e não aperfeiçoá-la de modo
criador, tarefa esta que cabe tão somente ao legislador. Todavia, em sua
maturidade, Savigny irá rever algumas de suas concepções, passando a admitir –
ainda que muito limitadamente – o uso de uma interpretação extensiva ou
restritiva, com o objetivo de retificar uma expressão defeituosa do texto. Aqui
o Direito não é mais visto como um mero somatório de normas rigidamente
delimitadas por sua literalidade, mas enquanto um conjunto de institutos
jurídicos presentes no espírito do povo, cuja apreensão pressupõe uma
intuição do jurídico, e não um mero racionalismo dedutivo.
Conseqüentemente, ao interpretar uma lei, o juiz
deve se colocar em espírito na posição do legislador, e repetir em si a
atividade daquele que elaborou a norma,
para que assim esta surja de novo em seu pensamento,[4]
tarefa esta que não consiste na mera constatação de um fato empírico dado pela
vontade psicológica do legislador histórico, mas que representa uma atividade
espiritual própria, que pode inclusive levar o intérprete para além do que
o legislador histórico tenha concretamente pensado. Para tal, o juiz deve
recorrer aos elementos gramatical, lógico, histórico e sistemático da
interpretação que, segundo Savigny, não configuram quatro modos de
interpretação distintos, mas fazem parte de um mesmo método:
“El elemento gramatical de la interpretación tiene por objeto
la palabra, que constituye el medio para que el pensamiento del legislador se
comunique con el nuestro. Consiste, por consiguiente, en la exposición de las
leyes linguísticas aplicadas por el legislador.El elemento lógico tiende
hacia la estructuración del pensamiento, o sea, hacia la relación lógica en la
que se hallan sus diversas partes.El elemento histórico tiene por objeto
la situación de la relación jurídica regulada por reglas jurídicas en el
momento de la promulgación de la ley. Esta debía intervenir en aquella de
determinada manera; y el mencionado elemento ha de evidenciar el modo de
aquella intervención: lo que por aquella ley se ha introducido de nuevo en el
Derecho.El elemento sistemático, por último, se refiere a la conexión
interna que enlaza todas las instituciones y reglas jurídicas dentro de una
magna unidad. Este plexo se hallaba lo mismo que el contexto histórico en la
mente del legislador; y por consiguiente no conoceremos por completo su
pensamiento, si no esclarecemos la relación en la cual la ley se encuentra con
todo el sistema jurídico y el modo en que ella debía intervenir eficazmente en
el mismo.Con estos cuatro elementos se agota la comprensión de la ley. No se
trata, por consiguiente, de cuatro clases de interpretación, entre las cuales
se puede escoger según el gusto y el arbitrio pessoal, sino de diferentes
actividades que deben cooperar para que la interpretación pueda dar éxito”.[5]
Embora
Savigny defendesse a existência de um Direito espontâneo, baseado no Wolksgeist,
é interessante notar que, no que tange à influência exercida pelo autor no
pensamento jurídico alemão subseqüente, o fator sistemático e cientificista de
sua teoria termina por prevalecer sobre o fator historicista, permitindo com
isso o desenvolvimento do formalismo
jurídico na Alemanha através da jurisprudência dos conceitos (Begriffsjurisprudenz),
tão bem representada por Friedrich Georg Puchta – antigo discípulo de Savigny –
e por Rudolf von Jhering em sua primeira fase.
· Mestrando em Direito pela
Puc-Rio
[1] BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do
Direito. Tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São
Paulo: Ícone, 1999, p.45.
[2] SAVIGNY,
Friedrich Karl von. La Vocazione del nostro
Secolo per la Legislazione e la Giurisprudenza. Bologna: Forni, 1968, p.201-202.
[3] Esta distinção é feita não apenas por Karl Larenz (Metodologia da
Ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 3a ed. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 1997, p.9 e segs.), como também por Tércio Sampaio Ferraz
Júnior (Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação. 3a
tiragem. São Paulo: Atlas, 1991, p.241).
[4] Isto se modo algum significa que Savigny seja um partidário da teoria
subjetivista da interpretação, centrada na voluntas legislatori. Da mesma
forma, apesar de sua primeira fase ser marcada por um viés mais racionalista,
vinculada ao sentido expresso da norma, também aqui não é possível identificar
plenamente seu pensamento com a teoria objetivista, centrada na voluntas
legis. A bem da verdade, tanto o conceito psicológico de vontade do
subjetivismo quanto o conceito realista e racionalista do objetivismo são
produtos do positivismo, que, conforme já ressaltamos, surge na Alemanha em um
momento posterior ao historicismo. Conforme esclarece Larenz: “Ambas as teorias, cada uma na sua
unilateralidade, são expressão da época positivista, inconciliável com a
unidade interna pressuposta por Savigny entre Direito e relação da vida
juridicamente ordenada (instituto jurídico) e entre razão material-objectiva e
vontade do legislador. Identificar a concepção de Savigny com uma ou outra
dessas teorias, ambas temporalmente condicionadas, corresponde necessariamente
a não compreender precisamente naquilo que constitui a sua especificidade e a
sua grandeza” (Op. cit., p. 16-17). A fim de que não
restem dúvidas, vale aqui a transcrição das palavras de Savigny: “Toda ley
tiene la función de comprobar la naturaleza de una relación jurídica, de
enunciar cualquier pensamiento (simple o compuesto) que asegure la existencia
de aquellas relaciones jurídicas contra error y arbitrariedad. Para lograr este
fin, hace falta que los que tomen contacto con la relación jurídica, conciban
pura y completamente aquel pensamiento. A este efecto se colocan mentalmente en
el punto de vista del legislador y repiten artificialmente su actividad,
engendran, por consiguiente, la ley de nuevo en su pensamiento. He aquí la
actividad de la interpretación, la cual, por consiguiente, puede ser
determinada como la reconstrucción del pensamiento ínsito de la ley. Sólo de
esta manera podemos obtener una inteligencia segura y completa del contenido de
la ley; y sólo así podemos lograr el fin de la misma”. (“Los Fundamientos
de la Ciencia Jurídica”. In: SAVIGNY, KIRCHMANN, ZITELMANN. La
Ciencia del Derecho. Buenos Aires: Losada,
1949, p.82-83).