GEOGRAFIA E GLOBALIZAÇÃO:
O
CAPITALISMO E A EVOLUÇÃO DOS CONHECIMENTOS GEOGRÁFICOS
2.1.1.
INTRODUÇÃO
Discorreremos
neste capítulo sobre os principais aspectos da evolução do pensamento
geográfico do período que vai do século XV até os dias atuais. Nosso objetivo é
tentar relacionar o desenvolvimento deste saber com o avanço do processo de
globalização. Para tanto selecionamos algumas obras referentes à história do
pensamento geográfico de autores que pertencem à chamada geografia crítica, próximos
à teoria marxiana ou trabalhos que
trazem informações importantes tendo em vista nosso objetivo básico.
Esclarecemos, que tendo em vista o propósito geral do
nosso trabalho, não pretendemos abarcar
todos os detalhes da etapa citada e nem mesmo temos a pretensão de esgotar
completamente as questões. Trata-se de um relato extremamente sucinto
considerando os nossos propósitos.
De
início, trataremos resumidamente da história do conhecimento geográfico dos
primórdios dos tempos modernos até aproximadamente o século XVIII; em seguida,
abordaremos a fase posterior,
aproximadamente do final do século XVIII
até o início do século XIX, na
qual se notabilizaram os institucionalizadores desta ciência; logo após,
estudaremos o período de consolidação e
de difusão do conhecimento geográfico, denominado período clássico -
convencionaremos, sumariamente, que este período teria transcorrido de 1901 a
1946; e, finalmente, abordaremos o
período moderno, transcorrido após a
Segunda Guerra Mundial (ANDRADE,1992, 63).
Abordaremos,
a seguir, conforme foi proposto, a
evolução dos conhecimentos geográficos nos tempos modernos.
2.1.
2. O CONHECIMENTO GEOGRÁFICO NOS TEMPOS
MODERNOS
A enorme expansão do espaço conhecido, o
conhecimento da conformação terrestre e o repúdio a um leque de idéias e mitos
sobre a superfície da Terra revelaram-se revolucionários para o saber
geográfico na Idade Moderna (ANDRADE, 1992, 43).
A
dilatação do território conhecido refletiu-se primeio sobre a cartografia, que
sofreu transformações e aperfeiçoamentos. Os conceitos de latitude e longitude,
sem precisão nos mapas da Antiguidade e da Era Medieval, comumente utilizados,
ganharam correções, e um novo
continente, a América, neles foi desenhado. Por um longo período perdurou o
debate se a Terra seria composta de
três ou quatro partes. Ou seja, se ela seria formada por três ou quatro
continentes. Os novos caminhos marítimos, descobertos no século XVI, autorizavam a certeza de que havia um quarto
continente, entre o oceanos Atlântico e
Pacífico. Anos depois, já no século XVII, as viagens exploratórias de Dampier e
de Tasman confirmaram a existência do então previsto quarto continente, a
Austrália. Além disso, supunha-se a existência de mais uma massa continental, a
Antártida, ao sul. No entanto, esta
apenas se tornaria mais conhecida no século XX, principalmente após o Ano
Geofísico Internacional, realizado em 1958.
Considerando
os mapas que renovaram a cartografia, mencionaremos o mapa de Martim Behaim,
cosmógrafo de Nüremberg, que depois de instalado em Lisboa, construiu o famoso
globo, abarcando o leste da Ásia, que leva o seu nome (SODRÉ, 1986, 21); e de
Gerhard Mercator, considerado o pai da cartografia moderna, mapa que mostrou-se
revolucionário, baseado nos princípios da projeção e não na geometria plana
como toda a cartografia que o antetecedeu, apesar de que nele os paralelos e
meridianos dispostos em linha reta, quando representam a superfície terrestre,
aumentam as terras situadas em altas latitudes e tormam menores as terras
próximas ao equador. Mercator reafirmou e consolidou o paradigma do
Renascimento ao introduzir na linguagem cartográfica a idéia de projeção,
deslocando de uma vez por todas o lugar do sujeito observador (SANTOS, 1997,
128).
Em
se tratando de cosmografia, a obra de Sebastião Munster, particularmente a
“Cosmografia”, teve grande destaque
(SODRÉ, 1986, 21).
A
importância estratégica do conhecimento científico para o alcance dos objetivos
comerciais e políticos dos reis era evidente. Deste modo, os soberanos de
Espanha fundaram, em 1503, a Casa de
Contratação de Sevilha, reformulada posteriormente em autêntica escola de
pilotos. Nela estudava-se as bases técnicas da navegação, as informações sobre
os mares, as costas, e desenvolvia-se os conhecimentos relativos à astronomia,
à náutica e à meteorologia.
Do
século XV ao século XVIII ocorreram aperfeiçoamentos nos conhecimentos a
respeito do magnetismo terrestre, discriminado-se a diferença entre o pólo
magnético e o geográfico, fazendo-se com mais precisão, a medida das
longitudes, com a correção dos mapas antigos. Foram melhor pesquisadas as
correntes marinhas, de significativa importância para a navegação entre os
continentes. Assim como a magnitude e o direcionamento dos ventos,
principalmente os alísios. Os navios, em pleno mar tropical, tinham necessidade
dos ventos alísios para a impulsão e precisavam de evitar as calmarias
equatoriais, pois nelas poderiam permanecer estacionários durante meses,
praticamente imóveis. Estes saberes originários da geografia ou ligados a
ciências atualmente consideradas afins da geografia, contribuiriam para que, na
Idade Moderna, no século XVII, aparecessem estudos julgados precursores da
geografia enquanto ciência.
No
século XVIII, em relação à configuração terrestre, foi demonstrado a forma
dilatada na região do equador e o
achatamento nos polos. Em outras palavras, constatou-se que a Terra era
redonda, mas não exatamente esférica, em decorrência do próprio movimento de
rotação, desvendado por Galileu. Para a verificação destas características
realizaram-se expedições à região polar (Lapônia) dirigidas por Maupertuis e
Clairaut, em 1736, e às regiões equatoriais (Peru) sob o comando de Bouger e De
la Condamine. Esta última com a responsabilidade de medir o arco do meridiano.
Ficou estabelecido, assim, o maior comprimento do grau do meridiano na região
polar do que na região equatorial, constatando-se que o geóide é exatamente
achatado nos pólos e dilatado no equador.
A
grande evolução da astronomia, nesta época, repercutiu diretamente sobre o
conhecimento geográfico: a descoberta da lei da gravitação universal por Isaac
Newton, a proposição do sistema solar heliocêntrico, por Nicolau Copérnico
(colocando um ponto final na crença da Terra como centro do sistema planetário),
o descobrimento da forma da órbita dos planetas em seu movimento de translação,
por Kepler, e, finalmente, as grandes descobertas de Galileu. Este deslocou
radicalmente a posição do sujeito e abriu espaço, posteriormente, tanto para o
advento do empirismo mais tacanho quanto para o idealismo transcendental, tanto
para o mecanicismo de Newton quanto para o relativismo de Einstein, tanto para
o descritivismo da cartografia quanto para o romantismo de Ratzel (SANTOS[1],
1997, 218).
Amadureceram,
desta forma, as condições para a consolidação das diversas áreas de saber no
conhecimento científico e para o aparecimento das diversas ciências, com
relativa autonomia (ANDRADE, 1992, 44).
2.1.3. OS PRECURSSORES DA GEOGRAFIA
Quando
se inicia o século XVII, os conhecimentos geográficos espalhados e relacionados
às diversas disciplinas correlatas à geografia, existiam em grande número e demonstravam relativa profundidade.
Copérnico,
na astronomia, redesenha o sistema planetário, propondo o sistema
heliocêntrico, posicionando o Sol como centro do universo e assumindo que os
satélites giravam em torno dos planetas. Confrontava assim, o antigo sistema
geocêntrico de Ptolomeu, referendado pela Igreja e pelo mundo oficial, no qual
a Terra era o centro do universo. Kepler,
posteriormente, tornaria mais
preciso o sistema de Copérnico, demonstrando que os planetas não percorreriam
órbitas circulares, mas elípticas, acontecendo em cada translação um instante
no qual os planetas estariam mais próximos do Sol, o periélio, e outro no qual
estariam mais distantes, o afélio.
A
estrutura da Terra e a formação das rochas passaram a ser objeto de grande
preocupação por parte dos geólogos. A atividade vulcânica e outras
manifestações catastróficas contribuiram para o desenvolvimento da noção de que
a Terra era portadora de um incomensurável calor interno que dissolvia as
rochas mais resistentes, expulsando-as por meio dos vulcões, em correntes de
lava e nuvens de cinza. Estas concepções estimularam também a elaboração de
teorias sobre o papel dos fenômenos internos na configuração do relevo
terrestre. Leibnitz realizou o esforço de explicar que as rochas sedimentares,
por terem sido obra de deposição pelas águas ou pela atividade eólica, se
apresentavam dispostas em camadas. Outros estudiosos se empenhavam na
identificação de fósseis nas rochas sedimentares, com a intenção de fazer
descobertas paleontológicas e também determinar a idade da Terra.
Montesquieu,
o célebre humanista francês, considerou que os climas tinham grande influência
sobre as idéias e a vida prática dos homens, antecipando, desta maneira, o
determinismo geográfico de Ratzel.
Isaac
Newton, o então incontestado físico inglês, desenvolveu o princípio da lei da
gravitação universal, apresentando a
solução para o enigmático problema que preocupava a ciência: o motivo pelo qual
os seres não se descolavam da superfície terrestre.
Para
o conhecimento geográfico, no entanto, o personagem principal foi o de um
médico holandês, Bernardo Varenius, que na primeira metade do século XVII,
compôs uma obra, que apesar de inacabada,
revelou-se importantíssima: a “Geografia Geral”. Neste livro, que será
um dos fundamentos das teorias de Newton (MORAES, 1990, 33), Varenius discorreu
sobre a denominada geografia matemática, que aborda a Terra como astro e busca
conhecer as relações existentes entre ela e os outros corpos celestes; em
seguinda, trabalhando questões referentes à geografia física, tentou explicar o
desenho do relevo, as bacias fluviais e as condições do clima nas suas interconexões,
chegando à atuação da sociedade e dos homens na construção do espaço. Nesta
terceira seção de sua obra, Varenius apresentou um tratamento mais genérico,
menos profundo, tendo em vista a sua morte prematura. De um modo geral,
ele
não se restringiu à descrição da superfície terrestre, fundamentado apenas na
observação e nos dados do momento, mas buscou a explicação da origem dos
fenômenos e das formas que desenham a Terra; por isso, o interesse de Isaac Newton pelo seu livro,
a ponto de reimprimi-lo em 1762. O inequívoco mérito de Varenius reside na
operação que uniu, na sua obra, a geografia geral, de natureza matemática, à
geografia descritiva, de natureza humanística, literária, em um todo coerente,
e, sobretudo, o propósito tanto de descrever quanto o de interpretar as formas
e fenômenos observados, apontando relações causais. Revelou-se um precursor de
Kant, que por mais de duas décadas foi professor de geografia física na
Universidade de Kroeninsberg, e do próprio Humboldt, considerado o patriarca da
geografia científica. O legado de Varenius exige mais divulgação e debate pelos
que fazem a ciência geográfica nos dias
atuais e o que ele deixou é suficiente para mensurar a sua extraordinária
relevância (SODRÉ, 1986, 23).
2.1.4. O CAPITALISMO E O DESENVOLVIMENTO DA
CIÊNCIA GEOGRÁFICA
O desenvolvimento do capitalismo, nos séculos
XVIII e XIX, condicionou a aceleração do desenvolvimento das ciências em geral e, especificamente, o
da geografia. A partir do século XV, o capitalismo comercial impulsionaria a
grande expansão das navegações e, em decorrência, o da descoberta dos novos
continentes e ilhas, ampliando a atividade comercial entre os povos que viviam
em situações “naturais”, nas mais diversas organizações de sociedade. O
continente Europeu, portador da civilização que apresentava o maior dinamismo,
detinha o maior domínio da tecnologia e alargou a sua hegemonia econômica e
política para toda a superfície terrestre, ou, no mínimo, para as regiões do
litoral, de fácil penetração aos seus navios. A classe dos burgueses,
capitalizada por meio do comércio, assumiu notabilidade, produzindo em maior
magnitude e intensificando o contato como outros povos. De posse do dinheiro,
exercendo o controle dos meios de transporte e das atividades comerciais, ela
foi reduzindo o espaço da nobreza (proprietária fundiária e possuidora de
cargos e honrarias), levando-a a
permanecer em plano secundário. Os próprios soberanos e a nobreza de maior
prestígio passaram por um processo de emburguesamento, desenvolvento atividades
ligadas ao comércio.
A
riqueza da burguesia e o seu ascendente poderio no governo e na administração
impulsionaram o desenvolvimento das técnicas e das pesquisas, objetivando uma
maior e mais eficaz exploração da
natureza. Pressionando pelo controle dos meios de produção, ela realizou a sua
revolução política e aniquilou o secular regime monárquico da França,
sucedendo-se após a citada revolução política uma autêntica revolução na
cultura e na esfera administrativa. A
ideologia da Revolução Francesa foi exportada para outros países da Europa,
principalmente sob o Império de Napoleão, e, apesar desses regimes monárquicos
perdurarem, acabaram, de alguma forma,
transigindo e incorporando diretrizes que possibilitaram, e muitas
vezes, foram um estímulo para o pleno
desenvolvimento da sociedade burguesa.
Desde
a Revolução Gloriosa, realizada em 1688,
na Inglaterra, a burguesia abocanhava progressivamente parcelas do poder
e promovia uma política inteiramente necessária aos seus interesses de classe:
a de enfraquecimento sistemático dos
poderes reais. Explica-se assim, dentre outras razões, o fato da Revolução
Industrial ter-se iniciado na Inglaterra, no século XVIII, se alastrado pelo
território francês na primeira metado do século XIX, e logo após pela Europa
central e ocidendal, a partir dos meados do século XX.
Uma
extraordinária revolução de ordem cultural e técnica foi produzida pela
inusitada importância política da burguesia. Durante a segunda metade do século
XVIII, as ciências da natureza, como a física, a química, a biologia, a
botânica, a zoologia, a astronomia, evoluíram com reflexos no campo da
geografia. A influência da Igreja e a
reverencia às idéias tradicionais ocasionaram embates entre a ciência e a
religião, mas as concepções e os princípios finalistas e teleológicos começaram
a perder vigor. A Filosofia das Luzes foi sendo paulatinamente substituída pelo
racionalismo burguês. A filosofia debateu problemas e crenças e assentou os
fundamentos das novas ciências, as sociais, que tiveram desenvolvimento no
século XIX. O final do século XVIII, pode ser admitido como o término da longa
etapa inicial, preliminar, preparatória da geografia, em outras palavras, a sua
chamada pré-história (SODRÉ, 1986, 23).
Esta
ciência, foi amplamente influenciada pelo pensamento de Kant, embora este a
concebesse como uma disciplina do
âmbito da razão prática e admitisse, em decorrência, que ela era, semelhante à
história, um ciência descritiva, assumindo-se, desta maneira o caráter
corológico, enquanto a história era cronológica. Aceitava também a dicotomia
entre geografia física e a humana, tendo em vista que em suas aulas demonstrava
que a geografia elaborava o sumário ordenado da natureza, desmembrando-se em
duas partes, a primeira, geral, abarcando a Terra, as águas, o ar, os
continentes, e a segunda, particular, abordando os produtos da terra, em outras
palavras, o homem, os animais, os vegetais e os minerais. Na sua concepção
havia na geografia cinco abordagens: a matemática, preocupada com a análise da
forma, dos movimentos, das dimensões e da localização terrestre no sistema
planetário; a da geografia moral, abarcando os hábitos e costumes regionais; a
da geografia política, que se dedicava ao estudo dos estados; a da geografia mercantil, que enfocava as
atividades comerciais; e a da geografia teológica, que pesquisava as
manifestações religiosas.
Leibnitz
e Herder também se preocuparam com
questões geográficas, e Paul Claval, apud Andrade (1992, ANDRADE, 47),
defende que o último teria influenciado de forma mais significativa a Humboldt
e Ritter do que o próprio Kant. Herder, de certa maneira apresentou-se como um
determinista; considerando as discrepâncias das condições naturais nas várias
regiões da superfície terrestre, propunha que cada povo cumpria o seu destino e
erguia a sua civilização, conforme a relação com o meio físico. No
relacionamento entre o homem e natureza, os homens individuamente não faziam
história, e sim, o povo, os agrupamentos unidos por uma comunhão étnica,
cultural, religiosa, etc. O grupo, ou o povo, e não meramente o indivíduo é que
seriam os impulsionadores das modos de ocupação territorial.
O
saber a respeito dos novos mundos, recentemente descobertos, impressionou a classe dominante da Europa,
que buscava razões para a diversidade presente entre as áreas e países,
deslumbrando-se com as diferenças culturais encontradas. Este fascínio provocou
a elaboração de inúmeras obras, estimulou, posteriormente, a constituição de
sociedades científicas e exploratórias, alavancou a organização de expedições
militares e o aparecimento de tendências que procuravam explicações para
aquelas diferenças. Os povos da Europa, superiores do ponto de vista econômico,
político, e principalmente, da tecnologia militar, disseminaram diante dos
povos que confrontavam, a noção de sua superioridade racial, concebida como uma
decorrência da ação do clima. O preconceito racial europeu de então, fortaleceu-se, alcançou os dias atuais,
ganhando notoriedade, por exemplo, por meio do Conde de Gobineau, e a concepção
da influência exacerbada do clima sobre os povos resultaria no determinismo
geográfico. Hobbes e Rousseau, pensadores políticos, elaboraram perspectivas
contraditórias sobre os povos considerados selvagens. O primeiro defendeu que o
selvagem era, principalmente, de índole malévola, que a sociedade se constituiu
sob a dominação dos fortes sobre os fracos e que a criação do Estado, o chamado
Leviatã, teria que ser forte e estabelecer o seu poderio por meio da imposição
das suas normas e interesses sobre os fracos. O segundo, com idéias
diametralmente opostas, preconizava que o selvagem era de caráter benigno,
cândido, e que por meio de um pacto entre os homens, denominado contrato
social, foi gestado o Estado, afirmando o descrédito no direito divino dos reis
e dando visibilidade ao princípio de que os homens devem escolher a forma de
governo que lhes convém. Destas concepções brotaram os princípios fundamentais
para o constituição do Estado moderno.
Montesquieu
propôs modalidades de governo fundadas
na democracia, com a clássica separação de poderes, entretanto, ao discorrer
sobre os fenômenos geográficos, reconhecia a representativa ação da natureza
sobre o pensamento e ação do homem.
Simultâneamente
aos filósofos e cientistas políticos que refletiam sobre o relacionamento entre
a natureza e o homem organizado socialmente, sobre as manifestações do estado,
do governo e das religiões, dentre outros temas, os comerciantes e
administradores organizavam o universo de recursos a disposição e possíveis de
exploração e compunham a sua contabilidade para maximizar os lucros. Desta
forma, originou-se a estatística, a geografia política e a economia,
primordialmente concebidas tanto como autênticos catálogos de estados e cidades
quanto como a distribuição da produção.
O
século XIX trouxe no seu bojo os fundamentos de uma grande revolução econômica
e cultural que fortaleceria a hegemonia da burguesia e do modo de produção
capitalista por todos os continentes.
Em
termos ideológico-culturais, ocorreu a consolidação da chamada razão
instrumental. Esta possibilitava o domínio sobre a natureza, ocasionando sua
exploração em proporções inéditas, a supremacia da técnica, a supervalorização
das ciências, com o propósito do desvelamento de leis universais, a partir das
concepções de Newton, e, sobretudo, a fé generalizada no progresso inintenrrupto. A humanidade,
fazendo uso dos instrumentos que criara, exerceria o poder absoluto sobre a
natureza, forçando-a a produzir inteiramente de acordo com esses interesses. A
idealização do papel histórico da
Europa se firmou concomitantemente a
expansão de sua civilização por toda a Terra,
em um processo de exploração e
submissão dos povos considerados selvagens e bárbaros. Dentre outros inúmeros
exemplos, segundo Andrade, em pleno
século XX, na década de 1930, a Itália
explicaria a invasão do território etíope e sua transformação em colônia, sob a
alegação que promoveria a civilização, ocultando os interesses de rapina que,
de fato, orientavam a sua política. Os mesmos argumentos que os povos
colonizadores haviam imposto, no século anterior, para justificar a guerra e o
domínio sobre os povos asiáticos e africanos (ANDRADE, 1992, 49).
2.1.5. A CIÊNCIA DO SÉCULO XIX E O SURGIMENTO DA
GEOGRAFIA MODERNA
As
bases econômicas, políticas e culturais do princípio do século proporcionaram
os norteamentos teóricos e científicos que transportariam o pensamento do
século XIX em direção ao positivismo, elaborado por Auguste Comte. A obsessão
pelo controle da natureza resultou no crescimento das ciências da observação e
da experimentação, do domínio da chamada razão prática, segundo a expressão de
Kant. Os cientistas, por esta época,
buscavam o acúmulo de conhecimentos empíricos e o desenvolvimento das
conseqüentes teorizações (ANDRADE, 1992, 49).
Os
governos dos países mais engajados na expansão colonialista, tais como
Inglaterra, França, a Prússia e, depois de 1871, a Alemanha, a Rússia, dentre
outros, instigaram o aparecimento das sociedades geográficas que patrocinavam
viagens científicas ao interior dos continentes africano, asiático e americano
do sul. O objetivo principal era a busca de recursos que pudessem ser objeto de
exploração. No Brasil, no início do século XIX, foram inúmeros os cientistas da
Europa que viajaram pelo nosso território, escrevendo obras sobre a natureza
nativa e suas formas de exploração, a situação de vida do povo, incentivando,
desta maneira, o desenvolvimento da antropologia cultural, ciência vizinha da
geografia humana. Além disso, em 1838
havia sido fundado o Instituto Brasileiro de História e Geografia,
correlato às sociedades geográficas da época (CAPEL, 1982, 174).
O
périplo realizado por um dos mais importantes cientistas do século XIX, o
inglês Charles Darwin, com o objetivo de pesquisar a fauna e flora nos diversos
continentes, resultou em um livro célebre, “A origem das espécies”. Assim teve
início o evolucionismo que influenciou de forma decisiva inúmeros cientistas e
pensadores. Haekel, seguidor de Darwin, ao estudar as relações entre o homem e
o meio inauguraria o emprego da palavra “ecologia”, e Herbert Spencer levaria
para as ciências sociais as concepções darwinistas. O evolucionismo redundaria
no organicismo, que estabelecia uma relação
analógica entre os organismos e a sociedade, e também levaria à
convicção no progresso sem fim e no aprimoramento do homem, sendo que esta
concepção seria comum tanto aos positivistas quanto aos anarquistas da segunda
metade do século XIX.
A
transplantação do princípio da seleção natural, demonstrado por Darwin, para as
ciências sociais, funcionou como justificativa para a supremacia dos vencedores
da luta no interior e entre as sociedades capitalistas. Justificava no nível
individual, a desigualdade social, as diferenças de renda, e, no nível geral,
autorizava o predomínio dos estados mais fortes, julgados mais capazes, sobre
os mais fracos, os dominados e explorados. Ou seja, justificava ao mesmo tempo,
as desigualdades da sociedade, internamente, e a política colonialista
externamente. Os fundadores da geografia não permaneceram alheios a estas
idéias.
No
século XIX, a flagrante injustiça da sociedade capitalista serviu de estímulo
para que alguns pensadores elaborassem
teorias contrapostas aos axiomas
justificadores do capitalismo em expansão. Esta crítica inicialmente foi
realizada pelos denominados socialistas utópicos. Em seguida, entraram em cena
os pensadores materialistas, que fundamentados na observação, no estudo do
desenvolvimento das estruturas sociais, contestaram estas estruturas e deram
início a criação de um método forjado a partir da dialética. A superação da
sociedade capitalista estava posta em questão. A filosofia dialética procurava
se opor à filosofia positivista. As concepções hegelianas, reinterpretadas por
Karl Marx e Friedrich Engels, buscavam explicitar as contradições internas da
sociedade numa perspectiva totalizadora. Estes autores além de aplicar o método
histórico no estudo da formação do capitalismo e na sucessão dos modos de
produção na Europa Ocidental, preocuparam-se com a questão da natureza. Marx,
por exemplo, dissertou em sua tese de doutorado sobre as “Diferença entre a
filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro”, e Engels, ao abordar a sociedade
e a natureza, considerava relevante o relacionamento entre o homem e o
meio, procurando demonstrar suas reações recíprocas. Na “Dialética da
Natureza”, estudou as “transformações dialéticas provocadas na natureza virgem,
pela ação do homem, explicando como ela, ao se reconstituir, não o fazia de
forma semelhante à primitiva, mas apresentando novas características” (ANDRADE,
1992, 51).
O
pensamento de Marx e Engels, contraposto à ideologia dominante na sociedade,
não obteve repercussão sobre os geógrafos do século XIX. Estes, na sua maioria,
permaneceram inteiramente identificados com o poder constituído de seus países.
Além disso, Élisée Reclus e Pietr Kropotkin, geógrafos anarquistas, romperam
com os partidários de Marx no seio da Primeira Internacional. Apesar do ideário
contestador, ambos permaneceram circunscritos às diretrizes metodológicas
positivistas.
2.1.6. A CONTRIBUIÇÃO DE HUMBOLDT E DE RITTER
Constitui
opinião quase unânime que Alexandre von Humboldt e Karl Ritter são os
fundadores da geografia moderna. Contemporâneos, mantiveram relações estreitas
com as classes dominantes do seu país. Viveram de maneira muito diferente, e no
entanto, o pensamento de ambos desaguou na direção dos mesmos princípios.
Humboldt,
nobre prussiano, se empenhou nos estudos das ciências da natureza,
principalmente a botânica. Sua curiosidade
fez com que viajasse pelas terra da Europa, da Ásia Central e
Setentrional e da América Latina. Percorreu latitudes de climas frios,
temperados, tropicais e equatoriais. Observador minucioso, compilou imensa
quantidade de dados, que sistematizou nas suas obras. Sua formação de
naturalista não impediu o florescimento de sua incomparável curiosidade pelas
coisas do homem e da sociedade. Considerava que os fenômenos sociais
vinculavam-se estreitamente às condições naturais. Depois de correr o mundo,
retornou para a Europa e fixou-se em Paris, incentivando a formação de
sociedades e reuniões científicas, cooperando desta maneira para a ampliação do
saber a respeito da superfície da Terra. Em Berlim, já na idade madura,
tornou-se professor, e além disso,
conselheiro do rei da Prússia, dando mostras de preocupação com o
desenrolar da unificação alemã (ANDRADE, 1992, 52).
Karl
Ritter, igualmente prussiano, ligado às áreas das ciências humanas, foi
filósofo e historiador. Íntimo das classes dominantes, foi preceptor de jovens
de famílias ilustres, inclusive em viagens à Itália e à Grécia. Tornou-se um
grande professor na Universidade de Berlim, tendo se dedicado ao estudo minucioso da Ásia Menor (ANDRADE, 1993,12-3).
Um
aspecto decisivo na obra de Ritter é a profunda influência exercida nesta pelo
pedagogo suíço, J. E. Pestalozzi.
Autores defendem que as concepções de Ritter não são nada mais que a aplicação
do método de Pestalozzi à geografia. O assunto é polêmico, mas, segundo Capel,
nota-se um fundo de verdade nesta
crença. De fato observa-se tal influência desde o uso do conceito de “tipo” até
a sua produção cartográfica, que tem sido interpretada em relação à importância
que Pestalozzi reservava ao desenho, como forma de visualização intuitiva das
unidades geográficas (CAPEL, 1982, 45).
Os
maiores geógrafos do final do século XIX, como Friedrich Ratzel, Élisée Reclus
e Vidal de la Blache foram seus
entusiásticos admiradores e alunos, e, no entanto, Ritter não fez escola
(ANDRADE, 1992, 52)
As
concepções fundamentais de Humboldt
formaram-se da convergência do racionalismo da Ilustração francesa, do
século XVIII, do idealismo alemão e da perspectiva positivista. Vem deste
legado o projeto de estabelecer leis gerais que explicassem a realidade,
fazendo a ligação do povo, elemento
social, ao meio ambiente. Para a descoberta das leis sociais, que eram a sua
preocupação, ele admitia e professava
princípios fundamentados da obra de Newton. Sua formação de naturalista buscava
abordar a natureza física, para chegar à explicação do desenvolvimento social,
embora não se preocupasse com as relações sociais em si, reservadas, pelo
pensamento da época, a outra ciência
ainda em formação, a sociologia.
Valorizando
as técnicas cartográficas, que estavam em um período de grande aperfeiçoamento,
Humboldt elaborou o desenho de linhas
que unissem os pontos que apresentassem temperaturas médias idênticas, as
isotermas, para delimitar o que chamou de zodíaco isotérmico que deveria
apresentar um largura de 35º tendo como centro o paralelo de 40º Norte.
Ao
comparar a distribuição do relevo, as condições climáticas, e as formações
vegetais em diversas latitudes, Humboldt fez a análise das conexões entre estes
elementos, determinando causas e efeitos, levando a elaboração do princípio da
causalidade, noção muito importante para os geógrafos da primeira metade do
século XX (ANDRADE, 1992, 53).
Ao
contrário de Humboldt, Ritter não foi viajante, nem explorador, mas um leitor
voraz e talentoso escritor. Buscou, principalmente, descrever a sociedade,
tentando explicitar o desenvolvimento do homem relacionando os conceitos
de povo e de meio natural. Partindo do
idealismo de Shelling e do formalismo neoplatônico, aceitava que o todo era
formado pela soma das partes e que da soma das partículas locais chegar-se-ia
ao estabelecimento de leis gerais, pertinentes à toda superfície terrestre.
Nisto se ancorava o princípio da geografia geral ou da analogia, empregado em
sua extensa obra. Na tentativa de determinar leis gerais que dessem conta dos
fenômenos humanos , encontrou obstáculos, tendo em vista que as leis sociais
não apresentavam a uniformidade das leis físico-naturais. Na atualidade, este
tema ainda embaraça a atuação dos especialistas das ciências sociais, fazendo com
que inúmeras linhas teóricas resvalem para o organicismo (ANDRADE, 1992, 53).
A
obra destes dois estudiosos deve ser considerada no contexto da sociedade
alemã, tendo em vista a o desenvolvimento da dominação capitalista e do
processo de unificação daquele país. A questão que orientava o desenvolvimento
intelectual alemão no século XIX, concentrava-se no problema da unidade
nacional. Este problema já se encontrava posto no início do século, e no seu
transcorrer, sucederam-se diversas desdobramentos. Estava colocada a questão do
espaço nacional no centro das atenções da sociedade alemã. A definição da
indentidade, a demarcação da “área” dos alemães, ou seja, tudo que justificasse o projeto de
unificação exigia a discussão do espaço nacional. Na sociedade alemã, portanto,
encontravam-se poderosos estímulos para a pesquisa e o debate dos temas
geográficos. Por analogia, se a sociologia, segundo Engels, floresceu de forma
autônoma em território francês, país ímpar no que se refere ao desenvolvimento
das lutas de classe que sempre chegaram à decisão final, a geografia enquanto
ciência autônoma, teve tudo para brotar na Alemanha, onde o problema do espaço
ou do território localizava-se exatamente no centro dos problemas da sociedade.
As teorizações de Humboldt e Ritter, elaboradas basicamente entre 1800 e 1840,
inscrevem-se no campo do referendo científico às primeiras propostas de
efetivação da unificação alemã. A receptividade experimentada pelos dois
autores, comprovada no respeito e nas posições acadêmicas por eles usufruídas,
demonstra a repercussão dos temas por eles abordados. Ou seja, o florescimento
da sistematização da geografia, exatamente na Alemanha, aconteceu tendo em
vista as condições específicas do desenvolvimento das relações capitalistas
nesse país. No qual estava colocada o problema do espaço (e em decorrência o
temário próprio da geografia) no centro da discussão política. Esta relevância
provinha da fragmentação nacional vivida pelo povo alemão e do perfil
retardatário de sua unificação. O debate geográfico no século XIX
continuou, recebeu a influência e, por
sua vez, influenciou esse processo de
unificação, tendo sido obra, principalmente, dos dois pensadores alemães
estudados. Além disso, todos os estudos geográficos posteriores vão se reportar
às obras de ambos, tanto para contestá-las quanto para confirmá-las. Apesar das
diferenças, os pontos concordantes vão representar para a geografia posterior
os alicerces de uma geografia única. Deste modo, os dois geógrafos inauguraram
uma perspectiva de continuidade no pensamento geográfico e estabeleceram a sua
respeitabilidade acadêmica. No entanto, não formaram escola, deixaram uma herança mais geral, que será recuperada pela
Geografia Clássica. (MORAES, 1992, 50).
2.1.7. A GEOGRAFIA DO PODER DE RATZEL
Friedrich
Ratzel, também alemão e exatamente prussiano, ganhou notoriedade por ter
concedido maior importância ao homem no seu pensamento geográfico. Tendo
presenciado o processo que unificou a Alemanha, impulsionado pela Prússia,
elaborou uma perspectiva geográfica inteiramente alinhada aos projetos de
expansão do novo império. Ligado às ciênciais naturais, principalmente aos
estudos antropológicos, com formação em
farmácia e zoologia, descreveu o homem como uma espécie animal e não como um
ser histórico que vive em sociedade. Promoveu a extensão das idéias de Darwin
para a explicação da evolução dos fenômenos sociais. Por meio da luta entre as
espécies, com a vitória das mais capazes na sua adaptação à natureza, ocorreria
a evolução. Este raciocínio também foi aplicado no estudo sobre os povos, sendo
escolhidos para a sobrevivência os mais aptos para a adaptação e o controle do
meio natural. Eis a justificativa para supremacia dos povos da Europa,
identificados como civilizados e progressistas, diante dos povos considerados
selvagens e bárbaros, pertencentes a civilizações retrógradas.
Estas
noções induziram aos geógrafos ingleses e norte-americanos, principalmente, a
proclamar o determinismo geográfico, pois para eles o homem era um mero produto
do meio. Os norte-americanos careciam de justificativas para a pretensa
supremacia anglo-saxônica em relação as
nações indígenas autóctones e os hispano-americanos do México e do Caribe, e,
sobretudo, para a sua política de expansão. Os ingleses, beneficiários do maior
império colonial existente, buscavam justificar o controle britânico sobre as
mais diversas nações do globo.
Tendo
como base estes conceitos darwinistas, Ratzel formulou as leis gerais que
explicavam o relacionamento entre o homem e a natureza, mostrando que as
diferenças entre os povos e culturas eram resultado destas relações no decorrer
da história. No que se refere ao Estado, admitiu que este é a sociedade
estruturada controlando um território. Assim,
o domínio do território define o Estado, a sua importância sendo
estabelecida em decorrência da situação e
grandeza da extensão subjugada. São extremamente importantes, na sua
elaboração política os conceitos de espaço e de posição. A evolução, retrocesso
ou estagnação de um Estado são resultantes de sua capacidade de expansão, ou de
contração. Ou seja, ampliação ou diminuição do território submetido. Eis a
justificativa para as guerras de anexação e controle dos povos fracos pelos
fortes. Um conceito estratégico seria o de “espaço vital”, utilizado pelo
estado maior alemão nos meados do século XX, que significa a relação entre a
população de um Estado e a capacidade de uso do seu espaço territorial. Moreira
conseguiu sintetizar muito bem as concatenações do raciocínio ratzeliano:
“...os homens agrupam-se em Sociedade, a Sociedade é o Estado, o Estado
é um organismo. A Sociedade e o Estado são o fruto orgânico do determinismo do
meio. O Estado é um organismo em parte humano e em parte terrestre. É a forma
concreta que adquire em cada canto a relação homem-meio, poder-se-ia dizer. A
própria síntese. O Estado é assim porque possui uma relação necessária com a
natureza: do espaço é que retira sua existência e desenvolvimento. Os Estados
necessitam de espaço, como as espécies. A subsistência, energia, vitalidade e o
crescimento dos Estados têm por motor a busca e conquista de novos espaços.
Troquemos ‘Estado’ por ‘imperialismo’ e entenderemos Ratzel”. (MOREIRA, 1992, 33).
O
pensamento de Ratzel repercutiu amplamente e conduziu ao seu discípulo, o sueco
Kjellen, a utilizar a palavra “geopolítica”, que seria o elo de ligação entre os conhecimentos dos geógrafos e
os propósitos dos generais. Em outras
palavras, seria a operacionalização militar do saber geográfico, campo de
estudos de grande aceitação nos dias de hoje. Mas, segundo Andrade, seria bom fazer uma ressalva, se prospera
uma geopolítica do poder, da dominação,
instrumentalizada pelas ditaduras, pelos conquistadores, pelas classes
dominantes de um modo geral, pode-se também vislumbrar, ainda em construção,
uma geopolítica dos povos, instrumento útil nas revoltas e guerras de
libertação (ANDRADE, 1992, 55).
A
obra de Ratzel só pode ser compreendida na conjuntura de uma Alemanha
recém-unificada e que se encontrava desprovida de colônias num contexto em que
a França, a Inglaterra, a Rússia e os Estados Unidos já haviam promovido a
partilha do mundo. Ele prognosticou que, no decorrer do tempo, os impérios
britânico e francês acabariam se desmembrando, tendo em vista a sua descontínia
distribuição por áreas as mais diversas, associando povos de etnias e culturas diferentes; e, ao contrário,
imaginou a consolidação dos impérios russo e norte-americano, a julgar pela
continentalidade, pelo aspecto contínuo e predominância quantitativa, econômica
e cultural de um povo sobre os outros. Ratzel julgava que a sorte da Alemanha,
localizada no coração da Europa, deveria estar no próprio continente europeu,
expandindo-se para o leste e o sul, e, logo após, para o oeste, onde a derrocada do império de Napoleão III poderia
ser interpretada como sinal de decadência. A Alsácia e a Lorena, ricas em
minério de ferro e de carvão, já haviam
sido conquistas pelo império alemão em detrimento da França. O expancionismo germânico
fora da Europa contentar-se-ia com territórios menos importantes da África
(Tanganica, Namíbia, Togo, Camerum) e alguns arquipélagos da Oceania. As
indagações de Capel, servem de complemento ao que já foi visto:
“Fronteiras, domínio do Estado, expansão, proclamação do Estado acima
das classes sociais, Estados fortes e Estados fracos, estabilidade da
instituição política...poderá alguém por em dúvida que seriam estas
precisamente a idéias que preocupavam, quando Ratzel escrevia, a burguesia
industrial alemã, no momento em que a Alemanha havia se unificado, tendo
alcançado limites no confronto com
outros poderosos vizinhos e em que se lança à expansão colonial fora da Europa,
referendada pelo Congresso de Berlim? Restará alguma dúvida da relação entre as
idéias científicas e a organização social? Poder-se-á negar que as vezes os
cientistas sob um projeto que pretende ser objetivo não fazem mais que contribuir para a justificação
ideológica da classe dominante considerando de fato os problemas que interessam
a esta e da forma que a ela interessa?” (CAPEL[2],
1983, 293).
A
obra de Ratzel, apesar das críticas que provocou, influenciou sobremaneira a
evolução da geografia. A própria geografia francesa constituiu-se com uma
reação ao pensamento deste autor. Seu valor manifestou-se no propósito de
colocar no centro do debate geográfico
os assuntos político-econômicos e o homem; mesmo que numa perspectiva
naturalizante, e para justificar interesses adversários do humanismo (MORAES,
1981, 60).
2.1.8. A GEOGRAFIA LIBERTÁRIA DE RECLUS E KROPOTKIN
A
contribuição ao conhecimento geográfico de Élisée Reclus e Pietr Kropotkin é
muito diferente daquela que anteriormente abordamos. Os primeiros se alinharam
com as classes dominantes, conquistaram postos acadêmicos e serviram a
soberanos e presidentes, os dois últimos contestaram a estrutura de poder,
desqualificaram a existência do Estado, professaram idéias radicais de mudança
social e saíram em defesa da classe trabalhadora. Positivistas, adversários de
Marx na militância política, incorporaram, todavia, algumas categorias
marxistas e anunciaram um caminho libertário tanto para a sociedade quanto para
a geografia. Oriundos de classes sociais distintas, combateram pelas mesmas
idéias e cooperaram em trabalhos de natureza política e científica.
Reclus,
francês, vindo de família modesta, filho de pastor protestante, era destinado
ao sacerdócio. O estudo da obra dos socialistas utópicos fizeram-no republicano
e ateu. Conspirou para impedir o golpe de Luís Bonaparte, em 1851, e atuou na
Comuna de Paris, em 1871, fato que o levou sair da França pela primeira vez,
para fugir à prisão, viajando para a Irlanda, Estados Unidos e a Colômbia.
Posteriormente sofreu o exílio, radicando-se na Suíça. As suas obras mais
famosas, “A Terra”, em dois volumes, editada em 1869, a “Nova geografia
universal”, que veio a público de 1875 a 1892, em dezenove volumes, e o “Homem
e a terra”, publicada de 1905 a 1908, em seis volumes, foram frutos de
minuciosa pesquisa bibliográfica realizada durante inúmeras viagens. Cuidadoso
e valorizando o pormenor, ressaltava as descrições e as ilustrações
cartográficas, o que o tornava acessível a um grande público. Diversamente dos
seus contemporâneos, não segmentava a geografia entre física e humana, mas
estudava em detalhes fenômenos físicos, apontando suas conexões com a ação
antrópica, bem como as modificações realizadas pelo homem no meio natural para
o seu melhor uso. A pesquisa do meio natural era uma tarefa que facilitava a
compreensão do progresso da humanidade. Eis porque escreveu primeiro uma
“Geografia Universal” na qual estabelecia um corte horizontal da superfície
terrestre, com suas fronteiras políticas, sociais e culturais, e logo após, no
livro “O homem e a terra” , efetuava um corte vertical, em profundidade,
estudando a ação humana da pré-história até a época em que ele viveu. Não
provocou conflitos com sociólogos e antropólogos, como vários geógrafos do seu
tempo, pois não se preocupava em delimitar a geografia, assumindo uma visão
científica totalizante.
A
geografia, segundo Reclus, deveria
analisar os fenômenos baseada nas idéias de que a sociedade está subdividida em
classes sociais, em decorrência das modalidades de apropriação dos meios de
produção; que esta diferenciação de classes engendra a luta entre as classes
dominantes que não ousam perder a hegemonia e a propriedade das riquezas; e
finalmente, que existe uma propensão ao aprimoramento do indivíduo e à melhoria
da sociedade diante do aperfeiçoamento inexorável do homem. Tal inferência era
proveniente da sua fé arraigada no progresso, do seu cientificismo, ou seja, da
concepção de que a atividade científica era a única portadora de soluções para
os problemas, sendo capaz de promover a evolução social da humanidade.
Na
ciência geográfica de Reclus as suas próprias concepções político-sociais estão
sempre subjacentes, mesmo quando sob auto-censura, por razões editoriais, ou
por motivos de sobrevivência. Estudando a supremacia britânica sobre a Índia
demonstra como se realiza o processo de dominação efetivo, e abordando a ação
européia na China, descreve uma dominação diversa, onde continua onipresente a
exploração do dominador sobre o dominado (ANDRADE, 1992, 58).
Os
assuntos em pauta no seu tempo, alguns ainda dramaticamente presentes, foram
estudados nos seus livros numa perspectiva muito diferente da usual entre os
seus contemporâneos. Tais como a questão colonial, a qual nunca promoveu a
justificação; o da destruição da natureza exacerbada com a expansão capitalista
global; a urbanização e industrialização aceleradas com suas seqüelas:
problemas de saneamento básico, de transporte,
de abastecimento, de superpopulação,
do controle exercido pelos países do Norte sobre os países do Sul, classificados
atualmente como subdesenvolvidos, dentre outros temas. Sob o seu ponto de
vista, explicitou-se que já no final do século XIX, em termos proporcionais em relação à população do globo, seria
insignificante o contigente de povos ainda na fase da economia natural. Pois o
capitalismo de forma desigual e combinada, já invadira todos os quadrantes da
Terra. Embora Reclus se autodenominasse e fosse um comunista libertário, não
conseguiu se livrar do eurocentrismo. Ele criticava a implantação de colônias
de exploração, mas referendava o estabelecimento de colônias de povoamento em áreas
com baixa densidade demográfica.
Atualmente
com o florescimento de uma perspectiva crítica nas universidades, constata-se
um ressurgimento do interesse pela obra de Reclus, que tem levado ao estudo dos
seus princípios teóricos e a publicação em antologias dos seus escritos
considerados mais atuais. (MOREIRA, 1992, 36).
Pietr
Kropotkin, de ascendência nobre, da casa de Rurik, mais antiga que a dos
Romanov, era filho de latifundiário. Pela sua estirpe, estava predestinado a
seguir carreira militar, integrando os batalhões de elite que protegiam o Tzar.
Freqüentou a corte e foi matriculado em escola preparatória de oficiais. O
prazer da leitura e o interesse pela natureza fizeram com que se integrasse ao Corpo de Cossacos do Amur, viajando ao
Extremo Oriente. Oficial do Exército Russo, documentou-se sobre a região e
trabalhou em levantamentos topográficos e geográficos no Sougari, nas montanhas
do Grande Khingan, no Salan oriental e no Olekma-Vitim. Cruzou a Manchúria, em
missão secreta, para fortalecer a influência do Império Russo no Extremo
Oriente.
Egresso
da Sibéria, onde corrigiu inúmeras cartas, sobre localização de montanhas e
rios, inclusive fazendo a correção de mapas de Humboldt, renunciou à carreira
no exército, dedicando-se a trabalhos científicos e a tomar parte em
conspirações. Viajou à Finlândia e realizou
pesquisas científicas sobre a região setentrional, de clima glacial,
pertencente ao Império Russo. Estudou glaciologia e previu a existência no mar Ártico do arquipélago, denominado
posteriormente Ilhas de Francisco José,
descoberto em seguida pelos geógrafos da Alemanha. Angariou notoriedade
e integrou, por muitos anos, como secretário, a Sociedade Geográfica Russa, e
pela relevância de suas pesquisas geográficas foi agraciado com a Medalha de
Ouro.
Kropotkin
por meio de viagens e expedições científicas acabou por conhecer as
dificuldades da vida dos camponeses e sensibilizou-se com as precárias
condições de existência destes que não tinham a posse das terras, em contraposição à abundância e conforto
daqueles que as possuíam. Esta desigualdade social intensificou sua militância
revolucionária que resultou no seu aprisionamento na fortaleza de Pedro e
Paulo, em São Petersburgo. Dalí fugiu espetacularmente para o exterior, onde
permaneceu exilado por mais de quatro décadas, retornando apenas depois da
Revolução de 1917, que não recebeu o seu apoio, pois previu que ela
fortaleceria o papel do Estado, o qual ele queria abolir. Apesar disso, gozou de prestígio e homenagens até a sua
morte, em 1921.
Ele
era um apaixonado pela contemplação da natureza e acreditava no poder absoluto
da ciência. Cientificista, portanto, aceitava que as ciências da natureza e as
sociais tivessem a missão de descobrir as
leis gerais que regulassem os
fenômenos e para ele a geografia era uma ciência da natureza. Permaneceu
positivista e discordou que as leis dialéticas, professadas por Marx e Engels,
pudessem fornecer um auxílio positivo ao progresso das ciências. Dava
relevância ao processo educativo e ao papel que nele a geografia poderia
assumir.
Kropotikin,
conforme já vimos, considerava a
geografia uma ciência natural e entendia que ela era composta de quatro campos.
O primeiro abarcaria as leis que regem a distribuição das terras e das águas
sobre a superfície terrestre e as transformações que se realizam em tal
distribuição; o segundo buscaria as leis explicativas da formações orográfica,
hidrográfica, geomorfológica e da atuação das condições meteorológicas sobre o
relevo e encarava os acidentes como partes de processos dinâmicos resultantes
de interação; o terceiro estudaria a configuração e as causas da distribuição
da fauna e flora sobre a superfície terrestre; o quarto, finalmente, abrangeria
o estudo da distribuição dos homens pela superfície da Terra.
Admirador
dos métodos de Pestalozzi, criticou o ensino de um modo geral, e o de
geografia, especificamente, por ser este muito teórico, afeito a nomenclaturas
e por não despertar a curiosidade dos alunos. Defendia que os mestres deveriam
ensinar com o auxílio da literatura de viagens, mostrando a diversidade
cultural dos povos com o objetivo de estimular intelectualmente os jovens. Recomendava os trabalhos de
campo, pois julgava que pela observação das características da paisagem haveria
uma melhor compreensão da natureza, e assim, se tornaria mais aprazível a
utilização dos livros didáticos, que muitas vezes, traziam informações que não
poderiam ser diretamente percebidas.
Em
sua opinião não existia a neutralidade
tanto na ciência quanto no ensino. Defendia que a geografia, cúmplice da
antropologia, deveria contribuir para um maior entendimento entre os povos,
eliminando fronteiras, promovendo a fraternidade, a paz, e a compreensão entre
nações. Acreditava no desaparecimento do Estado e combatia pela formação da juventude para a vida em
liberdade, acessível a todos os homens, sem diferenças de classe, sem
dominadores e dominados e governada por organizações dos trabalhadores.
Estes
dois anarquistas-geógrafos, Reclus e Kropotkin, mesmo permanecendo positivistas,
sofreram certa influência da dialética e empregaram categorias, como por
exemplo, classe social, nos seus
estudos geográficos. Fizeram propaganda da doutrina anarquista em livros e
artigos específicos, simultaneamente à composição das obras de caráter
científico. As premissas filosóficas e políticas atuantes na propaganda
manifestaram-se também na atividade científica. O estudo das formas de ocupação do espaço pela sociedade, por
exemplo, fundamentava-se nas ídéias que
davam sentido às suas vidas. De forma idêntica, mas em sentido contrário, os geógrafos conservadores pensavam o espaço
geográfico, consciente ou inconscientemente de acordo com as predisposições
e interesses das classes dominantes.
Reclus
tornou-se professor da Universidade Livre de Bruxelas, tardiamente, aos 64 anos
e Kropotkin não aceitou lecionar na Universidade de Cambridge, pois a obtenção
do cargo estava condicionada à abdicação da militância política. Nos dias
atuais nota-se
“uma espécie de recuperação da obra dos dois grandes geógrafos,
provocando a difusão e a discussão das mesmas. Observa-se assim que a
neutralidade da Geografia, tão defendida pela escola clássica, é um mito, e que
hoje à Geografia do Poder se vem contrapondo, embora de forma descontínua, uma
Geografia do Povo” (ANDRADE,
1992, 62).
2.1.9. AS CARACTERÍSTICAS DA GEOGRAFIA CLÁSSICA
No
início deste trabalho, após o estudo da evolução dos conhecimentos geográficos
nos primórdios dos tempos modernos,
abordamos o período no qual se notabilizaram os institucionalizadores
desta ciência. A seguir trataremos do segundo período, de consolidação e de
difusão do conhecimento geográfico, denominado período clássico, que iria de
1901 a 1946. O desenvolvimento da ciência desenrola-se de modo contínuo, apesar
deste processo não ser linear e demarcar-se em etapas, que às vezes, parecem
ser simultâneas. No caso da geografia, isto se faz mais presente ainda, sendo
que na fase que vamos estudar torna-se
difícil uma delimitação precisa dos fatos. Posto que no princípio do século XX,
estudiosos que tornaram-se respeitados ainda no século XIX, envoltos na
atmosfera intelectual daquela época, continuaram suas obras, e vários dos
proeminentes geógrafos clássicos iniciaram seus trabalhos ainda no século XIX, de forma análoga aos grandes geógrafos da
primeira metade do século XX que
continuaram a escrever livros importantes já no pós-guerra. Ou seja, as
fronteiras entre estes períodos mostram-se relativas.
O
que contrastou esta etapa da anterior, grosso modo, foi a decadência do
finalismo positivista e evolucionista e a tentativa de descobrir leis, válidas
universalmente, que dessem conta das diferenciações da superfície terrestre. A
geografia, incapaz de extender as leis físicas ao processo de produção do
espaço pelos homens, restringiu-se aos fenômenos da natureza, ou limitou-se aos
estudos corológicos, de análise de paisagens e de caracterização de formas de relacionamento entre o homem e
o meio em áreas singulares, estudos estes isentos da preocupação de generalizar
os seus resultados para todo o globo. A respeitabilidade da geografia regional
ascendeu em prejuízo da geografia sistemática ou geral.
Em
plena fase de expansão do capitalismo industrial e da premência de dados
empíricos sobre o espaço produtivo, os geógrafos clássicos realizaram estudos
corológicos, analisando parcelas específicas da superfície da Terra.
Acreditavam que o conhecimento das partes levaria ao conhecimento do todo.
Conduziram a geografia a se transformar em uma ciência idiográfica e
descritiva, por meio do método indutivo, que vai do particular ao geral. Os
geógrafos alemães, nos estudos regionais, descreviam e analisavam a paisagem
nos seus aspectos naturais, enquanto os franceses consideravam a geografia um
ciência de síntese, na qual eram consideradas tanto as características físicas
quanto as transformações produzidas pelo homem. O positivismo transmutou-se em
funcionalismo que contaminaria todas as ciências sociais da época. Os estudos
regionais foram considerados os estudos geográficos por excelência pois neles
se estudava ao mesmo tempo os fenômenos físicos e os humanos. A mera
justaposição de dados naturais e sociais era vista como procedimento que
revelasse a complexidade do real. A particularidade da formação do geógrafo
condicionava a natureza do seu trabalho. Uma formação com ênfase na área física
ou nas ciências humanas, resultaria em
trabalhos onde predominassem os aspectos naturais ou sociais, respectivamente.
A ação do meio natural foi tão supervalorizada que durante muito tempo as regiões
geográficas foram denominadas de regiões naturais, e se acreditava que as
condições naturais determinavam os limites destas, sendo que a ação antrópica
se restringiria a dividi-las em zonas. André Chollay, em 1941, promoveu um
avanço ao propor as regiões como o resultado da ação dos fenômenos físicos,
biológicos e humanos. A perspectiva regional separou a geografia geral ou
sistemática da geografia regional, desmantelando, no âmbito do saber e da
metodologia da época, a união entre o regional e o geral. Esta desestruturação
promoveu uma crescente especialização, criando áreas de pesquisa isoladas, a
meio caminho entre a geografia física e biológica, bem como da geografia
humana. Campos verdadeiramente autônomos se consolidaram em relação a geografia
física: a geomorfologia, a climatologia, a hidrologia, a fitogeografia, a
zoogeografia, etc. e em relação à geografia humana: a geografia da
população, a geografia agrária, a geografia da indústria, a geografia da circulação e dos
transportes, a geografia
econômica, a geografia política, a geografia social, etc. Esta fragmentação
colocou em perigo a própria existência da ciência geográfica, criando
incertezas mesmo em geógrafos conceituados. Este estilhaçamento foi fruto das
condições da época e consolidou o empobrecimento da discussão epistemológica e
metodológica no seio da ciência geográfica (MOREIRA, 1992, 37).
O
enfoque regional necessitava de uma visão mais abrangente das áreas sob
investigação para melhor apreendê-las, o que direcionou o geógrafo a buscar a
explicitação da realidade enquanto totalidade. Aprofundaram-se as pesquisas
sobre as condições naturais e os estudos das formas das organizações humanas.
Estava colocada a urgência de colher em outras ciências, chamadas auxiliares, o
saber imprescindível para o desvendamento
e interpretação da paisagem e da
região. Eis a origem do enciclopedismo atribuído aos geógrafos, das
discordâncias entre si, das disputas de fronteira entre a geografia e outras
ciências, e da celeuma entre geógrafos e cientistas sociais, de outras
especializações, tais como Émile Durkheim. Esforços foram empreendidos para
esclarecer as conexões entre as ciências, mostrando a convergência das mesmas,
apesar das abordagens diferentes, para
um mesmo assunto ou objeto de estudo. No âmbito do positivismo, em parte
renegado, combatido, mas persistindo como referência para o conhecimento
científico, não havia espaço para a existência de uma ciência social única.
Admitia-se um conjunto determinado de ciências com seus respectivos objetos de
investigação exatamente definidos. A ciência geográfica para muitos geógrafos,
inclusive Vidal de La Blache, era classificada como uma ciência natural. Este,
historiador de formação, a aceitava como uma ciência dos lugares e não do
homem. Muito tempo tepois é que a geografia assumiu o seu lugar entre as
ciências sociais, fato de grande significação epistemológica, pois
possibilita-a compreender e explicar o contínuo processo de produção e
reprodução do espaço social; caso contrário abordaria apenas os resultados
deste trabalho. Ao tentar cumprir a tarefa de estudar a sociedade, as relações
que condicionam o espaço produzido e
explicar a materialização da sociedade sobre este espaço, a geografia se posiciona
estrategicamente no centro dos acontecimentos da atualidade.
A
Geografia Clássica prosperou porque, apesar da sua debilidade, atendia, de uma forma ou de outra, à demanda das classes dominantes no seu
projeto de exploração da natureza e dos homens. Como cada país fosse
constituído por especificidades, para melhor serví-los a Geografia Clássica
subdividiu-se nas chamadas escolas nacionais ou até regionais. Entraram em
cena, desta maneira, as escolas alemã, francesa, britânica, soviética,
americana, etc. Elas convergiam seus estudos na direção dos interesses dos seus
respectivos países e buscavam soluções, diretrizes e justificativas para os
mesmos. Na Alemanha legitimariam a conquista do espaço vital; na França e na
Grã-Bretanha forneceram conhecimentos estratégicos aos seus impérios coloniais;
nos Estados Unidos e na Rússia
justificaram e auxiliaram na consolidação do domínio de áreas habitadas
por outros povos. As escolas, como foi visto, estavam imbuídas de nacionalismo
patriótico e inteiramente compromissadas com a política dos governos a que
serviam (ANDRADE, 1992, 67).
Considerando
os objetivos deste trabalho, abordaremos para efeito de exemplificação, apenas
as características que julgamos essenciais das escolas francesa e alemã, e
principalmente o relacionamento entre elas.
2.1.10. AS ESCOLAS ALEMÃ E FRANCESA
Na
Alemanha viveram os dois proeminentes geógrafos, considerados de forma quase
unânime, como os fundadores da geografia moderna, Humboldt e Ritter, além
de Ratzel, de inequívoca importância.
Neste país a geografia também se institucionalizou primeiro. Levando-se tudo
isto em conta, além das características específicas do seu desenvolvimento,
mencionadas anteriormente, é
compreensível que em território alemão tenha ocorrido o aprofundamento dos
estudos geográficos, que nele tenham surgido os destacados geógrafos do período
clássico e que as concepções germânicas tenham se espalhado para outros
lugares, até mesmo pelos Estados Unidos.
No
período clássico verificaram-se inúmeras tendências na geografia alemã, tais
como o estudo das paisagens, onde se valorizava mais o natural que o social; os
estudos de interesse político, em obras de geografia e também de geopolítica,
destacando-se Haushofen, que legitimou o expansionismo alemão; na área
econômica, sob perspectiva naturalista, os estudos de geografia tropical além
de outros estudos de geografia econômica; os estudos de teoria da localização,
destacando-se, na década de 1930, Walter Christaller, com sua teoria do lugares
centrais. O debate sobre sua obra nas décadas de 1960 e 1970 ocasionou o
nascimento da geografia quantitativa e a valorização dos métodos
matemático-estatísticos, significando um retorno ao positivismo e fortalecendo
a escola neopositivista moderna (ANDRADE, 1992,69).
Paul
Vidal de La Blache, primeiro geógrafo francês a assumir uma cátedra
universitária de geografia, foi o personagem principal da escola francesa,
constituída na primeira metade do século XX. Quando a França foi derrotada pela
Alemanha em 1871, muitos explicaram o fato tendo em vista a alegada superioridade
do ensino alemão sobre o ensino francês. Afirmava-se que a guerra havia sido
ganha pelo mestre-escola alemão. A França derrotada, arcando com uma
catastrófica dívida de guerra, sofrendo a perda da Alsácia e parte da Lorena,
buscou uma recuperação. O Governo Republicano que sucedeu ao II Império, dentre
outras medidas, promoveu a
reorganização do ensino e as disciplinas da geografia e da história ganharam
destaque no nível secundário (ANDRADE, 1992, 69).
A
derrota na guerra contra a Alemanha tornava imperativo para a classe dominante
francesa pensar o espaço, de construir uma geografia que desautorizasse as
concepções alemãs e, paralelamente,
fundamentasse a expansão do capitalismo francês.
Se
a geografia de Ratzel referendava a política imperialista do Estado alemão, era
urgente para a França a necessidade de contestá-la. A geografia francesa foi
engendrada por esta urgência. Vidal de La Blache, em interlocução com o
pensamento de Ratzel, foi o catalizador deste processo, que resultou no deslocamento
do centro da discussão geográfica da Alemanha em direção à França. Ratzel só
pode ser entendido no contexto histórico alemão, a geografia de Vidal de La
Blache, por sua vez, torna-se compreensível quando vista no âmbito da Terceira
República, em relação à disputa com a Alemanha, e levando-se em conta as
especificidades históricas francesas.
Ratzel
e La Blache, por meio da produção científica, foram veículos dos propósitos das
classes dominantes de seus respectivos países. Muitas das peculiaridades destas
produções foram condicionadas pelas diferenças do desenvolvimento capitalista
em solo francês e alemão. A perspectiva de Ratzel expressava o autoritarismo
presente na sociedade alemã; ao privilegiar o Estado nos seus estudos apenas
dava relevância ao elemento social hegemônico atuante na própria realidade
local. A ótica de La Blache, mais liberal, de acordo com a evolução francesa, provinha da noção abstrata de
homem do liberalismo. Desta discrepância partiram as críticas de La Blache à
obra de Ratzel e o que tornou possível a execução da tarefa intelectual destinada à geografia pelas classes
dominante francesas.
A
clara politização do pensamento de Ratzel foi criticada por La Blache. Ou seja,
referia-se ao fato das colocações ratzelianas abordarem explicitamente os temas
políticos. Reprovou a conexão direta entre o pensamento geográfico e a tomada
de posição política efetiva, sob a alegação do caráter neutro da atividade
científica. Assim, confrontou-se com a propaganda do expansionismo alemão impressa
na obra de Ratzel. Esta suposta defesa da neutralidade da ciência no entanto
não foi obstáculo para que a geografia vidaliana promovesse a justificação ideológica dos interesses da
França. Apenas o fez de forma oblíqua, ao contrário de Ratzel. A idealização da
autonomia da ciência e uma falsa despolitização da geografia são legados
importantes da escola francesa. Esta camuflagem do contéudo político da
atividade científica era proveniente do retrocesso do pensamento burguês, que
após a tomada do poder, encontrava-se receoso da ocorrência de mudanças na
sociedade que poderiam ser estimuladas pelo desenvolvimento das ciências do
homem. La Blache promove a aparente separação entre o conhecimento e a
sociedade, negando o compromisso deste com a prática dos homens, e portanto,
encobrindo o seu caráter ideológico. O conceito de espaço vital de Ratzel foi
combatido com tenacidade, e por meio desta disputa, enfrentava-se o
expansionismo germânico propriamente dito. No entanto, se La Blache
desqualificou a geopolítica foi para elaborar algo mais condizente com os
interesses da França: uma especialização denominada geografia colonial.
La
Blache contestou o lugar subalterno que era relegado ao homem na obra
ratzeliana. Valorizou a história, a liberdade,
enaltecendo a criatividade da ação humana, que não seria apenas uma
resposta à natureza. Esta concepção constitui a melhor herança de La Blache à
geografia, apesar deste autor não ter se afastado totalmente da visão
naturalista. Uma declaração de sua
autoria diz que a geografia seria uma ciência dos lugares, não dos homens.
Assim, o objeto de análise seria apenas o resultado da práxis humana na
paisagem, e não o processo propriamente.
La
Blache contestou a idéia da determinação da história pelas condições naturais.
Defendeu uma perspectica relativista no que se refere às relações entre o homem
e a natureza, afirmando que tudo que é relacionado ao homem seria mediado pela
contingência. Este ponto de vista, referendado pelos seus discípulos, tornou a
geografia francesa impossibilitada de qualquer generalização. Ao criticar o
determinismo naturalista de Ratzel, a concepção de La Blache ofuscou a
existência de qualquer outra determinação.
Partindo
das idéias anteriormente relatadas, engendradas pela sua interlocução conflituosa
com Ratzel, La Blache desenvolveu o
cerne do pensamento geográfico da escola francesa (MORAES, 1981, 67).
Muito
próximo do poder de Estado, La Blache disseminou os princípios que orientaram,
grosso modo, a geografia na França,
empurrando para a obscuridade a obra de Reclus, até então popular. A Geografia
de Estado, oficializada nos meios acadêmicos e ligada aos setores conservadores
ocupava o seu espaço. Principalmente numa época em que se consolidara o Império
Colonial Francês.
La
Blache deu relevância aos trabalhos de campo, valorizou a intuição e não se
preocupava com teorizações globalizadoras. Opôs o regional ao geral, orientando
seus alunos a realizar pesquisas sobre áreas restritas, levando em consideração
os aspectos físicos justapostos aos
aspectos humanos e econômicos. Estimulou tanto os estudos regionais, que seus
discípulos entendiam geografia como um sinônimo daqueles. A pretendida
integração entre o físico e o humano, de fato se limitava a uma superposição.
O
conceito de gênero de vida seria entendido como um complexo integrado de ações
que, perenizadas pelo força do hábito, mostrariam a adaptação, ou seja, as
reações dos seres humanos diante dos obstáculos do meio geográfico. Este
conceito assemelha-se à noção de cultura, e por outro lado, conduziria a uma
perspectiva rural, desprovida de dinamismo, enquanto nas ciências sociais, de
um modo geral, assumia relevância a
categoria de classe social. La Blache enfatizou o estudo das comunicações para
que se percebesse a relação entre os gêneros de vida e as regiões,
principalmente rurais, e as aglomerações urbanas que se desenvolviam e chamavam
atenção.
A
proposta lablacheana coesionou e conferiu homogeneidade aos geógrafos
franceses, apesar de algumas divergências, dominou por décadas a França e foi
exportada para o exterior, sobretudo Grâ-Bretanha, chegando inclusive ao
Brasil. Após a Segunda Grande Guerra sofreu adaptações na medida em que o
geógrafo foi chamado a contribuir para a reconstrução, o planejamento, e foi
obrigado a dar mais valor ao papel da indústria e da cidade na construção e
reestruturação espacial (ANDRADE, 1992, 74)
2.1.11.
O LEGADO DA GEOGRAFIA CLÁSSICA
De
um modo geral, podemos afirmar que a Geografia Clássica legou um arcabouço
científico constituído, um conjunto de saberes organizados, com homogeneidade
intrínseca e inequívoca continuidade nas discussões. Deixou conceitos, que
apesar de controversos, caracterizaram uma área comum de pesquisa, consolidando
a independência de uma disciplina. Nesta trajetória, independente de como o interpretou, construiu um temário que
permaneceu como a sua melhor contribuição. Sua façanha foi a apresentação de
problemas válidos, a formulação de perguntas legítimas, mesmo que os
equacionamentos e respostas apresentados possam ser considerados completos
equívocos.
A
Geografia Clássica, apesar dos procedimentos metologógicos utilizados, também
reuniu um valioso conjunto de dados empíricos e de mapas, resultado de uma
observação minuciosa de áreas específicas. Esta compilação não pode ser
menosprezada, pois pode subsidiar pesquisas posteriores, comprovando a
utilidade das técnicas de descrição e de representação. E, por fim, a Geografia
Clássica construiu conceitos, tais como território, ambiente, região, habitat,
área, dentre outros, que exigem ser repensados (MORAES, 1981, 92).
2.1.12. A CRISE DA GEOGRAFIA CLÁSSICA
A
Segunda Guerra Mundial destruiu as atividades econômicas, arrasou um grande
número de cidades e colocou abaixo antigos valores na maior parte da Europa.
Face à necessidade de reconstrução, urgia estruturar o planejamento, sob as
diretrizes políticas do Estado burguês. Abriram-se novas oportunidades de
trabalho para os cientistas sociais que eram convocados a diagnosticar e
planificar tendo em vista metas e prazos determinados. Este desafio, repercutiu
nos geógrafos envolvidos, provocando a revisão dos conceitos científicos e
abrindo o debate sobre o futuro da ciência geográfica.
Em
meados da década de 1950 começou a aflorar a crise da Geografia Clássica, que
depois se precipitou e ganhou vulto nos anos seguintes. Na década de 1960 a
crise já era um fato consumado, e após
os anos 80, o obituário do pensamento
geográfico clássico já estava pronto. Os seus vestígios que ainda teimavam em
existir foram considerados como anacronismos. Estava aberto um período de
constestações, debates e alternativas para a ciência geográfica. O tempo da
relativa homogeneidade no seio da Geografia Clássica havia se esgotado e novas
perspectivas metodológicas pediam passagem. A crise foi necessária, pois
permitiu exorcizar o passado da geografia que teve sempre “um peso maior do
que as expectativas criadas” (SANTOS, 1978, 85).
Tentaremos,
a seguir, alencar os motivos principais
da decorrada da Geografia Clássica. Em primeiro lugar, os fundamentos
econômicos e sociais que possibilitaram o seu nascimento haviam ruído. A
realidade mudou deixando para trás a
todos que foram incapazes de acompanhá-la, inclusive a geografia. Superada a
fase da concorrência entre as empresas médias, havia chegado a hora dos
trustes, dos monopólios, do grande capital. A revolução tecnológica, um divisor
de águas formidável, demarcava o limite entre as duas eras. A crise de 1929 aposentou o liberalismo econômico e
exigiu a intervenção estatal, abalando a livre iniciativa e a propalada
auto-regulação do mercado. Defendia-se a ingerência do Estado na administração
e planejamento da realidade econômica, além do claro propósito de autorizá-la
na organização territorial. A urgência do planejamento ordenava que as ciências
sociais se travestissem em técnicas. A Geografia Clássica, ferramenta
inútil, foi relegada ao passado.
Em
segundo lugar, a cidade, o campo e suas relações recíprocas foram abaladas com
o impacto do crescimento dos níveis de urbanização e pela industrialização e mecanização das áreas rurais.
Definhavam as comunidadas inteiramente isoladas e se interconectavam cada vez
mais os lugarejos, as cidades, as
metrópoles, as megacidades e as megalópoles. O lugar, por si só, não tinha mais explicação e o que ele fosse,
talvez tivesse sido definido, em outro lugar, do outro lado do mundo. O capitalismo das empresas multinacionais, o
capitalismo dos transportes e das comunicações intercontinentais, enfim, o
capitalismo mundializado estavam
transformando o espaço, em espaço
geográfico globalizado. A aldeia global estava sendo antevista e as técnicas
descritivas, de representação e de
pesquisa da Geografia Clássica não mais
a enchergavam. O Globo estava tornando-se único, ao mesmo tempo múltiplo, e muito mais complicado. O espaço escrito
pela economia global pedia uma nova linguagem, uma nova metodologia, pedia,
enfim, uma nova geografia. Um salto foi tentado: o que ia direto das técnicas
de pesquisa de campo do século passado
para o sensoreamento remoto, as imagens de satélite e os dados
informatizados. Eis o vislumbre de uma Nova Geografia que acabou se revelando,
apesar do aparato, tão antiga quanto a Geografia Clássica.
Em
terceiro lugar, o positivismo clássico, fundamento da geografia, exposto ao
novo mundo, revelou-se igualmente defasado. Este método, criticado internamente
por seus defensores, passara por reformulações, ignoradas pela geografia, e
tentara obter uma recuperação. O desenvolvimento científico e a reflexão
filosófica tolheram suas pretensões, considerando-as ingênuas. A intrínseca
complexidade dos novos fenômenos e a sofisticação do novo instrumental de
pesquisa só confirmaram a sua crise, que do outro lado do espelho, também seria a crise da geografia.
Finalmente,
o declíno do pensamento geográfico clássico pode ser atribuído à fragilidade
interna. Ou seja, a existência no cerne da disciplina de deficiências de
formulação, lacunas lógicas e imprecisões. O movimento de renovação da
geografia ressaltou tais problemas em
detrimento de um debate mais profundo que melhor esquadrinhasse a natureza da
crise, os motivos anteriores e os inconfessáveis vínculos sociais da geografia.
De qualquer forma estas questões internas irresolvidas também deram sua
contribuição para a queda da Geografia Clássica.
O
pensamento geográfico clássico foi responsabilizado e duramente criticado, pela
persistência do problema da “indefinição do objeto de estudo” (MORAES, 1981,
96). Esta carência que acompanha a disciplina desde o seu nascimento, municiava
o ataque de outros ramos científicos contra a legitimidade da geografia.
Outra
falta apontada contra o pensamento geográfico clássico foi a incapacidade deste
de elaborar leis gerais. Estas, quando formuladas, revelavam-se insuficientes,
mecanicistas, arbitrariamente deterministas ou existiam em detrimento da unidade da disciplina. De qualquer forma,
aquela geografia, supostamente de síntese,
que tinha pretensões de abarcar tanto os fenômenos humanos quanto os da
natureza, acabava por se limitar ao estudo de áreas individualizadas. A
inexistência de generalização ocupava o centro da crise da Geografia Clássica,
segundo os seus detratores. A indefinição do objeto de estudo e a inexistência
de generalização imbricavam-se nas dicotomias próprias desta ciência: geografia
física e geografia humana, geografia regional e geografia geral, geografia
sintética e geografia tópica. Quando se resolvia, ou se pensava resolver, um
dos dilemas, descobria-se que outro permanecia sem solução.
O
descontentamento com a Geografia Clássica tornou-se unâmime, mas a amplitude
das críticas, não. Vários estudiosos vão se deter nas razões formais, outros
irão além, procurando as causas efetivas nas estruturas sociais e no papel
ideológico desta disciplina. Desta forma, no movimento de constestação,
ocorrerá uma diversidade de perspectivas filosóficas, metodológicas e
políticas, muitas delas excludentes.
2.1.13.
A PROCURA DE NOVAS TRILHAS
Dentre
as várias influências teóricas que forçavam a renovação do discurso geográfico,
segundo Amorim Filho, tiveram destaque a teoria geral dos sistemas, o
estruturalismo, as bases teóricas da cibernética, a teoria dos conjuntos, a
teoria dos jogos e as bases teóricas da comunicação (AMORIM FILHO, 1985,13). Na
gênese da teoria geral dos sistemas estaria o positivismo organicista e na
origem do estruturalismo, um revisionismo marxista de dimensões antropológicas,
segundo Andrade (ANDRADE, 1992, 105). Observava-se o crescimento do prestígio
das formulações matemáticas e estatísticas
e das metodologias quantitativistas que promoviam a abstração e
teorização do conhecimento geográfico. Os procedimentos dedutivos entram em
evidência em prejuízo da tradicional perspectiva indutiva da geografia.
O
debate que se seguiu demonstrou a falácia da neutralidade científica. Algumas
tendências de renovação da geografia ao pretenderem que esta disciplina se
mantivesse intelectualmente distante das opções políticas e ideológicas,
acabaram por servir, de uma forma ou de outra, aos desígnios do capital. A
matemática, a estatística, as técnicas, enfim, não conseguiram escapar da ideologia. É o que veremos, a
seguir, em relação às principais correntes teórico-metodológicas que sucederam
a Geografia Clássica.
2.1.14. AS GEOGRAFIAS QUANTITATIVA, SISTÊMICA E DA
PERCEPÇÃO
No
campo das concepções que não aprofundaram as críticas ao papel conservador da
geografia, mas de uma forma ou de outra, o reforçaram, destacaram-se as
chamadas Geografia Quantitativa, Geografia Sistêmica e a Geografia da
Percepção.
Já
não era suficiente para a lógica capitalista a simples coleta de dados e a
justificação do seu desenvolvimento. A expansão dos negócios exigia uma ciência
que oferecesse alternativas de localização e monitoramento da alocação de recursos em
todos os quadrantes do globo. A Geografia Quantitativa veio para cumprir esta
tarefa e se alastrou com desenvoltura, seguindo a mundialização do capital. Seu nascimento nos Estados Unidos
apresenta uma ligação direta com a supremacia global do capitalismo americano.
Seu aspecto cosmopolita, ao contrário das escolas nacionais, acompanha o
crescimento da importância das empresas multinacionais. Para os defensores da
Geografia Quantitativa os fenômenos sobre os quais a disciplina se debruçava
poderiam ser traduzidos integralmente
pelos métodos matemáticos. Todo o
universo da geografia poderia ser reduzido a números e apreendido na forma de
cálculos. A estatística e a computação poderiam explicar a paisagen. A
descrição desta cede lugar à sua matematização. As formas individualizadas são
substituídas pela tipologia, tudo sob o manto asséptico da matemática
estatística. A descrição subjetiva é suplantada pelo rigor do discurso
matemático. A técnica torna-se visão de mundo. Resumindo tudo, o positivismo
lógico assume o lugar do positivismo clássico. Vejamos como Santos
contextualiza a situação:
“Havia, já então, os instrumentos indispensáveis para dar ao novo
enfoque as condições de factibilidade. Tais condições instrumentais eram, para
começar, um resultado dos progressos obtidos pelas ciências exatas, tanto por
causa das necessidades da própria guerra, como em resposta às exigências de uma
nova organização da economia, tornada possível após o término da guerra. Além
disso, e influindo muito mais que as condições instrumentais, as necessidades
do novo período da história do capitalismo internacional iam exigir que as
ciências do homem se adaptassem e se acomodassem.” (SANTOS, 1978, 74).
De
fato, a linguagem matemática que desembarca na geografia, pelos anos sessenta, depois de já ter
contaminado outras ciências sociais, revela-se inteiramente contemporânea às
transações internacionais. A necessidade de contabilizar um monumental e crescente universo de trocas
impulsionará a matemática. Esta, integrada ao desenvolvimento da
tecnologia, sobretudo à informática, permitirá que o capitalismo exerça sobre a
natureza e os povos um controle jamais visto. E a Geografia Quantitativa,
exatamente, contribuirá para a total realização desta tarefa.
A
Geografia Sistêmica, que é complementar à anteriormente citada, defende o
emprego de modelos de representação ao estudo dos fenômenos geográficos.
Considera-se um aperfeiçoamento em relação à Quantitativa, pois se diz
portadora de um nível de generalização mais amplo. Segundo Moraes, “Os
modelos seriam representações das estruturas fundamentais da organização do
espaço, assim as articulações tidas como constantes em todos os casos
singulares.” (MORAES, 1981,104). Estes modelos desempenham nas pesquisas o
papel de hipóteses lógicas a priori, sendo compostos de dados
permanentes, ou fatores, e de elementos agregados, ou variáveis. O cientista
deve se ater às especificações do modelo, tentando incorporar neste os dados da
realidade estudada, introduzindo as variáveis que expressem as particularidades
da mesma. Os dados constantes e os variáveis, entrelaçados em programas
específicos de computação resultarão em padrões e tendências. Este modelos
seriam construções teóricas com um grande nível de abrangência, de validade
universal. Os modelos fundamentam-se na crença de que os fenômenos são
articulados como sistemas. Ou seja, relações de elementos estruturados por
fluxos. Os modelos buscariam exprimir a estrutura dos sistemas, sendo que a sua
variedade seria consoante com a própria diversidade do real. A utilização dos modelos
possibilitaria a seleção dos elementos de estudo e o entrelaçamento destes segundo critérios do cientista. O
aprofundamento da pesquisa poderia prosseguir com a introdução de outras
variáveis. Assim, o sistema poderia se
tornar cada vez mais complexo. Santos, em seu importante livro, argumenta que conceber o espaço como um
sistema não seria suficiente. Pois,
seria preciso definir anteriormente, o que seria um sistema. Tendo em
vista que a definição clássica que afirmaria que “um sistema seria um
conjunto de elementos e de relações entre esses elementos e entre seus
respectivos atributos”, não seria uma definição que possibilitasse a
análise espacial (SANTOS, 1978, 60). Posto que os elementos em suas relações
recíprocas teriam que ser considerados em sua conexão com a totalidade. O conhecimento efetivo de um espaço não está
presente em suas relações, mas nos processos, e a análise de sistemas minimiza
este fato. Talvez porque tenha sido criada especificamente para interagir com
modelos matemáticos. A aplicação mecânica dos modelos é resultante da
transformação dos conceitos em categorias congeladas, que imobilizadas, paralizam a história e
retroagem a ciência. “A partir do momento em que se esquece tudo isto e se
aplica modelo congelado, para explicar uma realidade em movimento, trata-se de
uma violência metodológica pura e simples, cuja aplicação não pode conduzir à
realidade científica e sim ao erro.” (SANTOS, 1978, 60).
A
Geografia da Percepção, de um modo geral, dentre outros temas, tenta compreender como o indivíduo percebe o
espaço ao seu redor, como responde às características do meio, como se processa este conhecimento, e como
tudo isso se espelha na atuação sobre o espaço. Os seus defensores trabalham a
questão da valorização subjetiva do território, a apreensão do espaço cotidiano
e os padrões de comportamento em relação ao meio. A psicologia social,
principalmente a behaviorista, fornece
um dos seus fundamentos teóricos. Os
estudos realizados tratam do comportamento do indivíduo nas cidades, em relação
às áreas de lazer; a atuação das formas espaciais na produtividade do trabalho;
a interação da sociedade com o meio natural, materializadas nos parques; a
reação diante de novas técnicas agrícolas em comunidades específicas; as modalidades
de representação espacial em comunidades indígenas (MORAES, 1981,106).
A
Geografia da Percepção, que não tem unidade interna, apesar das expressivas
divergências, tem se expandido. Assumindo uma perspectiva de valorização do
indivíduo, e muitas vezes, não o inserindo em um contexto social mais
abrangente, acaba por menosprezar alguns condicionantes do comportamento individual. Além disso,
revela-se conservadora, ao supervalorizar a subjetividade. Fortalece, assim, a
noção de que a apreensão do real se refere exclusivamente ao sujeito e não mais
ao objeto; dissemina a crença de que o comportamento seria impermeável às
determinações sociais, como se as atitudes individuais somadas representassem a
totalidade da práxis social; e, finalmente, torna obscura a atuação da
ideologia sobre o comportamento do indivíduo. Portanto, verifica-se que esta corrente encaminha-se para a aceitação
da ordem vigente. Mas, segundo Capel, a Geografia da Percepção, ao colocar em
pauta a subjetividade, teve o mérito de tornar claro as insuficiências dos
modelos teóricos desenvolvidos pela Geografia Quantitativa, a respeito da
localização espacial. Além do mérito de, a seu modo, ter aberto o caminho paras
as chamadas Geografias Radicais ou Críticas (CAPEL,1983,422-3).
2.1.15. A GEOGRAFIA ECOLÓGICA
A
degradação ambiental tornou-se
também um sério objeto de preocupação
dos geógrafos. Muitos superaram as pesquisas específicas sobre geomorfologia,
climatologia, hidrologia, etc., para assumir um enfoque mais amplo sobre o meio
ambiente. Ou ainda, ao prosseguirem os estudos em suas áreas, o fizeram levando
em consideração a reação da natureza quando submetida à ação antrópica. O
geógrafo francês, Jean Tricart, reformulador da geomorfologia, sob inspiração
da dialética, escreveu um livro no qual apresenta a visão global de uma
geografia ecológica, além de Paskoff, depois de muito tempo pesquisando na
Tunísia áreas desérticas, ou em processo de desertificação, elaborou uma obra
geográfica sobre o tema. A preocupação ecológica é mais intensa entre aqueles
que estudam os desertos ou regiões semi-áridas, tendo em vista o crescimentos
destas, muito vezes provocado pelo uso irracional da terra. A Geografia
Ecológica também se preocupa com a devastação das florestas equatoriais em
decorrência da exploração de produtos nativos, a implantação de projetos
agropecuários, o cultivo de culturas
temporárias e pela atuação das frentes pioneiras, processos que, de forma
isolada ou somados, colocam em risco a
integridade da fauna e flora originais.
No
âmbito da Geografia Ecológica não existe unidade de pensamento sobre as
soluções alternativas frente a destruição do meio ambiente. O que a unifica é a
defesa da preservação da natureza, o combate ao desenvolvimentismo e ao
economicismo. Sob muitos aspectos ela encontra-se mais próxima dos denominados
geógrafos críticos, sob outros, ela se liga aos defensores da Geografia da
Percepção (ANDRADE, 1992, 121).
2.1.16. AS GEOGRAFIAS CRÍTICAS
A
partir da década de 1950 uma série de
abalos sociais e econômicos vão repercutir profundamente nas ciências do homem.
Ou seja, o fim da Guerra Fria, trazendo
uma política de coexistência pacífica, amenizou a tensão ideológica entre as
superpotências e possibilitou a existência do pensamento marxista no mundo
ocidental; as transformações econômicas, sociais e políticas nos países do Sul;
a perda de legitimidade da supremacia ocidental, inclusive com o processo de independência dos países coloniais; o
Movimento dos Países não Alinhados (Bandung, 1955), onde se reivindicou uma
participação maior destes na agenda internacional; a Conferência Mundial de
Comércio (Bruxelas, 1964), na qual ganharam visibilidade muitos problemas
sociais e econômicos do chamado subdesenvolvimento, impactando a economia e
outras ciências sociais. O denominado subdesenvolvimento foi estudado sob outro
ângulo, agora tendo em vista as conseqüências do domínio do capital e as
relações necessárias entre atraso econômico, dependência e mercado global.
Acontecimentos históricos como a
Revolução Comunista na China, o Movimento pela Paz, a independência de países
na África, com a implantação de regimes que se prentendiam socialistas e a
Revolução Cubana reorganizaram o mapa do mundo e aprofundaram a crise de
hegemonia européia e norte-americana.
A
crise explodiu nos Estados Unidos durante a Guerra do Vietnã. Os protestos em
massa revelaram um descrédito crescente
nas qualidades do chamado american way of life. Uma nova perspectiva
permitiu que as ciências sociais enfocassem
os problemas da dependência econômica e tecnológica, da hegemonia das
potências do ocidente e do desenvolvimento capitalista periférico. Os novos
problemas exigiram das ciências sociais respostas inéditas, que só poderiam ser
formuladas sob uma nova visão ideológica. Nos anos 60 manifestou-se uma grande
insatisfação no conjunto das ciência sociais. O neopositivismo foi avaliado
como anacrônico e incapaz de apreender o movimento do real. A fenomenologia e o
existencialismo foram valorizados no intuito de tornar relevante a dimensão subjetiva
e as experiências pessoais. A geografia não permaneceu alheia a esta atmosfera
e, assim, revigorou-se, parcialmente o legado historicista da disciplina
(FERREIRA & SIMÕES, 1992, 92).
De
forma simultânea às transformações globais, internamente fez-se necessário
outras respostas. Em oposição ao capitalismo e às péssimas condições de vida e
de trabalho, ocorreram, inúmeras rebeliões de massa nas cidades. As
instituições governamentais com o propósito de levantar informações a fim de
controlá-las, convocaram os serviços das diversas ciências sociais que foram estimuladas a contribuir na solução
destes problemas. Além disso tudo,
agigantou-se a consciência do
processo de destruição ambiental do planeta e floresceram os movimentos
ecologistas. A Razão que veio à luz em
decorrência da revolução científica do século XVII começou dar sinais de
enfraquecimento. Os cientistas questionaram o lugar da ciência, as implicações
do uso da tecnologia e os fundamentos éticos de ambas. Os princípios do
positivismo clássico e do positivismo lógico foram abalados e a ciência
começou perder a aura de única forma de
saber legítimo. A racionalidade científica e os valores deveriam ser
harmônicos, posto que se defendeu que a ciência deveria buscar resultados com
relevância social.
O
meio acadêmico norte-americano, por volta de 1965, afastou-se do
neopositivismo, rejeitou a ilusão da neutralidade científica e a ideologia
tecnocrática, condenou o uso irracional da ciência e o seu autoritarismo, bem
como a cooptação ao sistema social por meio da escola. As chamadas reformas revolucionárias estavam na
ordem do dia. A partir do final dos
anos 50 e na década seguinte proliferaram em todas as áreas científicas as
correntes críticas, que se autodenominaram como radicais. Sendo que a economia
e a sociologia foram as primeiras disciplinas que enveredaram por esta direção.
Deste
modo, seguiram este caminho, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, as
demais ciências, tais como a antropologia, a ciência política, o urbanismo, a psicologia
e o direito. O propósito da maioria dos cientistas foi a interlocução com a
teoria marxista, visando a elaboração de
explicações alternativas às concepções tradicionais. Desta forma, estava se consumando o divórcio com o
pensamento neopolitivista (CAPEL, 1983,407).
A
Escola de Frankfurt, declaradamente antipositivista, ao desenvolver a chamada
Teoria Crítica, consolidou o radicalismo nas ciências sociais. O seu projeto
principal foi o estabelecimento de uma base única para o conjunto das ciências
do homem, unindo teoria e prática, a partir do marxismo.
A
década de 1960 foi repleta destas mudanças de atitude. Vários filósofos e
cientistas sociais rejeitaram as teorias fundamentadas nos parâmetros das
ciências da natureza. Ou seja, recusaram a extensão destes princípios às
ciências do homem. Semelhante a todas as ciências sociais, a geografia também
foi influenciada por estas transformações.
A
Geografia Crítica, forjada a partir desta época, não possui unidade de concepção e não constitui uma escola.
Encontraram-se neste campo aqueles
geógrafos que tomaram conhecimento das
graves contradições da sociedade e perceberam, por sua vez, que toda ciência de uma forma ou de outra,
está profundamente comprometida
com a perpetuação ou com a mudança do status quo. A
neutralidade da ciência seria uma ilusão, uma maneira de ocultar os verdadeiros
vínculos políticos e sociais. Compreenderam,
ainda, que não bastavam as críticas epidérmicas feitas aos problemas da
sociedade, e que o prioritário seria ir ao cerne destes, ou seja, ir às
suas raízes. Eis a explicação porque se
autodenominaram radicais,isto é, na análise dos fenômentos sociais tentam
buscar suas causas profundas, não obscurecem os seus compromissos ideológicos, e nem mesmo tentam se esconder sob a alegada
neutralidade científica.
Neste
campo nota-se três subdivisões: a corrente integrada por geógrafos
não-marxistas, mas compromissados com mudanças sociais; a dos geógrafos de
filiação anarquista, defensores de uma transformação libertária, ligados ao pensamento original de Reclus e
Kropotikin. E, finalmente, os geógrafos de formação marxista. Observa-se neste
último grupo aqueles que reconhecem Marx como um filósofo e buscam aplicar seu
pensamento na análise das situações em estudo. Preocupam-se com a questão da
totalidade, ressaltam as características das formações econômico-sociais e dos modos de produção,
sem esquecer, no entanto, que não pode
haver transplantação mecânica de determinados conceitos tendo em vista as
épocas e locais diferentes. Outros, ao contrário, assumem o marxismo como uma
doutrina e aplicam sem mediação alguma, para todos os continentes, as categorias de Marx no estudo dos
fenômenos contemporâneos. Traduzem a filosofia de Marx sob uma ótica
neopositivista, negando o seu caráter dialético. Por isso, cada vez mais se
aprofunda a distância entre os chamados marxistas ortodoxos e os heterodoxos
(ANDRADE, 1992, 123).
A
influência do marxismo sobre o pensamento geográfico nos Estado Unidos
manifestou-se quando um grupo de geógrafos adeptos da Geografia Quantitativa
compreendeu a ineficácia de suas técnicas e o real significado da
responsabilidade assumida com o desenvolvimento do sistema capitalista.
Descobriram que as pesquisas que indicavam a localização ideal para a implantação
das indústrias, as formas mais adequadas de organização do espaço no campo e na
cidade, não eram simplesmente de ordem técnica e tinham conseqüências sociais
maléficas, ao contrário do que pensavam anteriormente. Pois estas conseqüências
estavam diretamente relacionadas à própria lógica de acumulação do capital.
Este radicalismo, então incorporado,
fez com William Bunge, por exemplo,
perdesse os seus postos de trabalho em Detroit e em Toronto, forçando-o
a transformar-se em motorista de taxi; David Harvey, por sua vez, renegou os
seus antigos companheiros da Geografia Quantitativa e ocupando importantes
cargos acadêmicos, produzindo em inglês, com fácil penetração na mídia, fez
avançar a geografia sob inspiração marxista. Harvey, que era positivista em
1969, caminhou rapidamente em direção ao marxismo, revisando seus pontos de
vista anteriores, e logo após, tornou-se, enfaticamente, marxista.
Desenvolveu-se, então, sob a influência do marxismo nos Estados Unidos três
movimentos simultâneos e convergentes: o das expedições geográficas, o da
publicação da revista “Antipode” e o da fundação da União dos Geógrafos
Socialistas.
As
expedições geográficas foram idealizadas por Bunge em Detroit, onde atuava no
ensino universitário e morava nas proximidades do bairro negro de Fitzgerald.
Bunge demonstrou interesse pelos problemas desta localidade e começou a
investigá-la e estabelecer contato com sua população. Constatou que alí a qualidade de vida era muito baixa
e que as demandas dos seus moradores não eram consideradas pelos geógrafos e
urbanistas nos levantamentos realizados para os departametos do governo.
Concluiu que deveria haver uma inversão de prioridades tendo em vista as
reivindicações das populações que iriam ser atingidas. Organizou grupos de professores
e alunos de geografia que se deslocavam até o bairro, reuniam com seus
habitantes, na sua maioria de baixa renda, e levantavam suas necessidades, as
suas reivindicações e também os resultados das intervenções oficiais
anteriores. A partir deste trabalho, Bunge, organizou cursos livres de grande
aceitação entre universitários e populares. Elaborou uma obra a respeito do
bairro e sobre a experiência realizada, provocando reações conservadoras que
culminaram na sua demissão da universidade e na proibição dos seus cursos. Não
havia interesse, por parte destes meios acadêmicos de uma maior aproximação com
o povo e nem mesmo haveria a possibilidade se admitir nos seus quadros alguém
que não fosse comprometido com a situação vigente. Bunge transferiu-se para a
Universidade de Toronto onde seus métodos tiveram continuidade. Suas concepções
marxistas mostraram-se incompatíveis à burocracia dirigente do ensino superior
do Canadá, e novamente desempregado no meio universitário, transformou-se em motorista de taxi,
militando no movimento sindical, teria afirmado que a nova profissão seria
ideal para um geógrafo, pois como taxista, conheceria melhor a cidade na qual
vivia e lutava.
A
revista “Antipode” veio à luz a partir de 1969 com o propósito de divulgar os
trabalhos e as expedições geográficas de Bunge. Representava uma perspectiva crítica radical,
inteiramente contraposta tanto à Geografia Clássica quanto à Geografia
quantitativa. Alcançou sucesso e estimulou os seus editores, não só pela
questão do retorno financeiro, mas,
principalmente por ser uma porta aberta aos novos geógrafos. A maioria
de seus colaboradores havia sido dos quadros da Geografia Quantitativa. Depois
de 1974, consolidaram-se a busca de um direcionamento filosófico e ideológico e
o desejo de ampliar as pesquisas para o mundo subdesenvolvido, no qual as
injustiças sociais e os prejuízos do domínio capitalista eram mais visíveis. A
mudança da linha editorial, agora declaradamente marxista, provocou uma
diminuição da sua influência nos meis acadêmicos, dominados pela reacionária
Associação dos Geógrafos Americanos. “Antipode” teria quatro funcões básicas:
ser um canal de comunicação e idéias; desempenhar um papel didático; abrir
espaço para a crítica e ser um instrumento de divulgação de trabalhos de
investigação teórica e prática inovadores. Dentre os assuntos recorrentes
destacam-se os problemas de desenvolvimento e seu interesse geográfico, a
economia política urbana, os problemas ecológicos, a habitação, a planificação,
os problemas pedagógicos etc. As Universidades de Clark, de Vancouver e de
Londres, são o pólos de difusão das suas propostas.
A
União dos Geógrafos Socialistas, fundada em 1974, é uma associação que não tem
perfil político-militante e nem mesmo profissional. Abriga nos seus quadros os
interessados pela geografia e pela mudança da sociedade. Desenvolve trabalhos
organizativos objetivando uma transformação revolucionária na sociedade e a
elaboração de uma teoria geográfica compatível com estes propósitos. Edita uma
revista, integra movimentos políticos e reivindicatórios locais e regionais,
realiza congressos e mantém centros organizativos em Boston e Baltimore nos
Estados Unidos e Montreal, Toronto e Vancouver no Canadá. Divulga as sua
concepções procurando renovar o conhecimento geográfico, apresentar
alternativas aos profissionais e contribuir para a reforma da sociedade.
Como
foi visto, a chamada Geografia Crítica ou
Radical nos Estados Unidos foi impulsionada principalmente por dois
líderes, David Harvey e William Bunge. Em suas obras mais recentes abordam o
estudo das interações entre o capital e a organização espacial, dando
continuidade aos postulados marxistas (ANDRADE, 1992, 125).
A
Geografia Crítica no continente europeu fundamenta-se em autores do século XIX,
tais como, Marx, Engels, Kautsky, Lênin, Reclus e Kroptkin; autores
menosprezados tanto pelos geógrafos clássicos quanto pelos que vieram da
Geografia Quantitativa.
Depois
da Segunda Guerra Mundial, quando teve início o processo de reconstrução da
Europa, verificou-se interesse entre os geógrafos pelo marxismo. Nesta época,
muitos geógrafos franceses, integraram-se ao partido comunista francês, que
havia se destacado na resistência à ocupação nazista. Estes geógrafos buscaram
fundamentos para a ciência geográfica no materilismo histórico, tentando
conciliar os princípios do possiblismo com a dialética hegelliana-marxista.
Yves Lacoste constestou a Geografia Clássica e
demonstrou o grande abismo existente entre dois tipos de geografia: a dos professores, ministrada nas
escolas secundárias e nas universidades
e um seu sucedâneo, a chamada geografia-espetáculo, presente na mídia; e a dos generais e administradores.
Os
acontencimentos na Hungria, em 1956, precipitaran a saída de muitos geógrafos
do Partido Comunista Francês, ocasionando um certo afastamento do marxismo nos
meios acadêmicos. Restaram vínculos com alguns intelectuais, tais como os filósofos, Althusser e Lefebvre; o urbanista Castels e o economista Charles
Bethleim. Apesar disso, a terminologia
marxista e os fundamentos da dialética permaneceram em trabalhos de inúmeros
geógrafos franceses.
Yves
Lacoste, criador da revista “Herodote” (1976),
liderou a ala mais influente. Nesta publicação foram abordados temais
contemporâneios, tais como, a crise da geografia face às novas
tendências; a relação entre a dialética de Hegel e a geografia; o legado de
Reclus; a questão da ideologia; os problemas da paisagem e do trabalho no
campo; as questões do imperialismo; os problema urbanos, como o das metrópoles;
o problema da Argélia; o problema da estratégia e da ideologia; o problema da
história da geografia; os problemas climáticos e ambientais, dentre outros
assuntos. Depois de algum tempo o termo
geopolítica foi reabilitado por Lacoste, que passou a defender a participação dos geógrafos na ação política e
a construir uma geopolítica dos povos que contribuísse para a libertação
nacional no plano externo e a libertação interna no plano da sociedade.
Além
da “Herodote”, a revista
“Espaces/Temps”, assumiu uma perspectiva amigável em relação ao marxismo. A
questão ecológica é examinada sob uma ótica bastante radical, com escritos de
geógrafos conceituados e de jovens que buscam alternativas.
Seguindo
os passos da Geografia Crítica desenvolve-se o que recebeu o nome de Geografia
Política. Deste modo, Influenciado por Lacoste, na França, vem sendo editado o
“L’État du Monde”, no qual se estuda os problemas políticos no que se referem
ao espaço produzido, apresentando uma visão panorâmica da conjuntura mundial.
Segundo
Capel, apesar de ter se originado da Geografia da Percepção, haveria ainda uma
Geografia Humanista, alinhada com as Geografias Críticas. De filiação
antipositivista, rejeita as características objetivas, mecanicistas, determinísticas da Geografia
Quantitativa e faz a defesa de uma proposta na qual os significados, os
valores, os objetivos e metas da práxis
humana sejam mais valorizados. O seu objetivo prioritário é mostrar que há
discrepâncias entre as condições do meio e a percepção que o indivíduo e a
coletividade têm deste meio. Estas percepções visualizadas nos mapas mentais,
não coincidem com a representação da cartografia e atuam nas escolhas sobre a
organização espacial. Esta concepção de geografia, ao levar em consideração a
subjetividade, a cultura e a sociedade, tenta apresentar uma estruturação do
espaço mais adequada a cada comunidade (CAPEL, 1983, 443).
A
Geografia Crítica, pelo que foi visto, é um espaço muito amplo no qual coabitam
propostas diversificadas, apesar de possuírem objetivos e princípios comuns. A
coesão desta reside na atitude de oposição a um mundo estruturado social e
espacialmente de forma contraditória e injusta. O conhecimento geográfico é
concebido como instrumento estratégico no enfretamento à ordem reinante. É uma
concordância de objetivos fundamentada pela posição de classe, pela perspectiva
da ciência enquanto momento de ação, pela plena convicção da natureza política
do discurso geográfico. Em síntese: a unidade da Geografia Crítica é uma unidade de natureza ética e os seus
objetivos comuns diversificam-se em muitos fundamentos metodológicos e
epistemológicos. Tais como estruturalistas, existencialistas, analíticos,
marxistas de inúmeros matizes, ecléticos, e outros. São resgatados para a fundamentação das propostas vários
autores, como por exemplo, Adorno, Foucault, Mao Tse-Tung, Lefor, Godelier,
Barthes, Lênin, Sartre, etc.
Esta
multiplicidade de pontos de vista acaba resultando positiva, pois estimula a
discussão, faz eclodir polêmicas necessárias e alavanca as elaborações. Novos
conceitos explicativos podem surgir neste ambiente permeado pela crítica e
isento de dogmatismos e fossilizações. Novas trilhas são tentadas, esquemas consagrados são problematizados,
inéditas equações são experimentadas. A Geografia Crítica, promessa inconclusa, tem muito o que fazer e o que
mostrar. O seu limite é o futuro.
A
Geografia Crítica é uma manifestação no campo da ciência dos conflitos
ideológicos que se degladiam na sociedade de nossa época. Os geógrafos críticos,
nas suas mais variadas posições, optaram por um caminho que vai em direção à
transformação da sociedade. Procuram
uma geografia nova que possa contribuir, no interesse da maioria, na construção
de um novo espaço geográfico.
2.1.17. UM PARÊNTESE: A GEOGRAFIA-ESPETÁCULO
Abordaremos,
a seguir, a questão da existência de uma “geografia-espetáculo”, a partir das
concepções de Lacoste, anteriormente citadas, pois o assunto revela íntima
conexão com o objetivo principal do nosso trabalho.
Acreditamos
que o conceito possa ser melhor compreendido se levarmos em conta, em primeiro
lugar, as transformações tecnológicas
ocorridas na sociedade contemporânea. Principalmente no que se refere às
conseqüências verificadas no campo da comunicação de massa. Não podemos
esquecer que estas mudanças ocasionaram uma alteração no papel ideológico
desempenhado pela escola em relação à
sociedade. Muitos estudiosos constataram que uma parcela considerável dos
objetivos e dos papéis tradicionais da instituição escolar foram transferidos principalmente para a TV, exacerbando
a crise do ensino e intensificando o debate de sua eficiência e função nas
sociedades de massa atuais. A partir do século XIX e até meados do século XX, a
escola foi a principal instituição encarregada de formar e transmitir os princípios éticos, atitudes e conhecimentos
fundamentais para a socialização das populações urbanas. Esta situação se
alterou com a crescente influência da mídia e particularmente da TV, que se
manifesta conectada a interesses ideológicos e econômicos dos grandes grupos
financeiros, associados a parcelas da elite política. (NAPOLITANO, 1999, 18).
Lacoste
considera que a partir do final do século XIX existiriam duas geografias: a
primeira, de origem antiga, a chamada geografia dos Estados-maiores, que seria
um conjunto de representações cartográficas e de conhecimentos diversificados
sobre o espaço. Este conhecimento heterogêneo é reconhecido como de importância
estratégica pelas minorias que estão no poder e o empregam com o propósito de
nele se manter. A segunda seria a denominada geografia dos professores, que
surgiu no século XIX e teria se tornado uma discurso ideológico no qual uma das
funções inconscientes seria a de ocultar a importância estratégica do
conhecimento sobre o espaço. A grande diferença entre as duas seria a de que
alunos e professores não teriam a mínima idéia da utilidade dos
conhecimentos fornecidos pela análise
geográfica, ao contrário daqueles que comandam, tais como generais e executivos de alto escalão, que saberiam
exatamente da sua utilidade. Mas, segundo Lacoste, a geografia dos professores
não seria o único “pára-vento” ideológico que permitiria escamotear que o saber
a respeito do espaço seria um poderoso instrumento de dominação:
“...a geografia também se tornou espetáculo: a representação das
paisagens é hoje uma inesgotável fonte de inspiração e não somente para os
pintores e sim para um grande número de pessoas. Ela invade os filmes, as
revistas, os cartazes, quer se trate de procuras estéticas ou de publicidade.
Nunca se comprou tantos cartões postais, nem se ‘tiraram’ tantas fotografias de
paisagens como durante essas férias em que ‘se fez’, com guias nas mãos, a
Bretanha, a Espanha ou...o Afganistão.” Grifo
nosso.(LACOSTE, 1985, 34).
O
turismo assumiria uma função ideológica e transformaria a geografia em uma
mercadoria de consumo de massa. Uma enorme quantidade de pessoas buscaria
avidamente a fruição estética de paisagens, dentro de um repertório mais ou
menos estereotipado. O mapa, representação do espaço, que apenas uma minoria
saberia ler e traduzir como instrumento de poder, seria substituído no
imaginário coletivo pela fotografia da paisagem.
O
problema não seria simplesmente a contemplação desta ou daquela paisagem, mas a
fotografia e o cinema, e poderíamos acrescentar a televião, reproduziriam sem
trégua certas imagens-estereótipos, que seriam como mensagens, como discursos
emudecidos, de difícil decodificação, como silogismos, que por serem
subrepticiamente transmitidos, não deixariam de ser menos autoritários. A
contaminação da atmosfera social pelas imagens-mensagens geográficas, disseminadas, veiculadas pelos meios de
comunicação de massa, seria um fato historicamente recente, que nos tornaria
passivos, em atitude de contemplação estética, e que afastaria para mais
distante a incômoda verdade de que alguns podem esquadrinhar o espaço de acordo
com certos métodos, e que a partir daí estariam em condições de estabelecer
estratégias para iludir o adversário, e assim, derrotá-lo.
Desta
maneira, a geografia-espetáculo e a geografia escolar, apesar de suas
peculiaridades, levariam aos mesmos resultados. Ou seja, esconderiam a noção de
que o conhecimento geográfico poderia ser um poder, que certas representações
do espaço poderiam tornar possíveis determinadas ações e viabilizar certos interesses políticos;
difundiriam a noção de que a geografia prescindiria de qualquer raciocínio,
sobretudo de um raciocínio estratégico articulado tendo em vista as regras de
um jogo político.
Debord,
por sua vez, trabalharia com um conceito muito mais amplo, mas inteiramente correlato ao conceito de
Lacoste. A geografia-espetáculo seria apenas um aspecto de um fenômeno muito
mais abrangente: a total especularização da sociedade. Tudo se
transformaria na sociedade contemporânea em espetáculo. Todo o fundamento das
sociedades nas quais imperam as modernas condições de produção apresentar-se-ia
como um monumental acúmulo de espetáculos. Tudo que estivesse vivo teria se
transformado em representação.
O
espetáculo seria simultâneamente a própria sociedade, uma parcela da sociedade
e um instrumento de unificação.
Enquanto parcela da sociedade ele seria o núcleo que concentraria todo o olhar e toda a consciência. Em
decorrência de ser este núcleo separado, ele seria o ponto de fuga de uma
perspectiva ilusória e da falsa consciência. A unificação empreendida por ele
seria na verdade o discurso oficial da separação generalizada. Ele não seria
tão somente um repertório de imagens, mas uma relação social entre pessoas,
conectada por imagens. Tendo em vista sua constituição total, o espetáculo
seria ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. O
espetáculo corresponderia a uma construção objetiva da alienação e a expansão
econômica seria, principalmente, a expansão desta produção industrial
específica. O que ganharia vulto com a economia que move por si mesma só
poderia ser a alienação recôndida em seu núcleo de origem:
“O homem separado de seu produto produz, cada vez mais e com mais força,
todos os detalhes de seu mundo. Assim, vê-se cada vez mais separado de seu
mundo. Quanto mais sua vida se torna seu produto, tanto mais ele se separa da
vida. O espetáculo é o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem.” Grifo nosso. (DEBORD, 1997,25).
Em
Debord a simples geografia-espetáculo se agiganta e se generaliza a tal ponto
que se transmuta em sociedade-espetáculo. O mais conceituado geógrafo
brasileiro, por sua vez, citando Debray , afirma que este, ao propor uma nova disciplina, a
“midiologia”, teria dito que se tivesse
que estabelecer uma relação com outra disciplina esta seria exatamente a
geografia. A alegação sustentar-se-ia no fato de “que a mídia, antes
de ser comunicação é espaço. A percepção do espaço está ligada à velocidade das
pessoas, das coisas e das mensagens.” (SANTOS, 1994, 178 ). Ou seja, Debray
apresenta simultâneamente a preocupação com a mídia e com o espaço, e com o
trabalho dos midiólogos e dos geográfos:
“O espaço é mídia nos dois sentidos. Ele é linguagem e também é o meio
onde a vida é tornada possível. A percepção pela sociedade e pelo indivíduo do
que é esse espaço, depende da forma de sua historicização e esta resulta em
grande parte dos progressos nos transportes e nas comunicações, na construção
do tempo social.” Grifo nosso. (SANTOS,1994, 41).
Aparentemente
as noções de geografia-espetáculo e sociedade-espetáculo estariam convergindo
para o conceito elaborado por Santos de meio técnico-científico Informacional.
O meio de sobrevivência da humanidade, o seu entorno, não seria mais o que, num
passado recente, algumas ciências sociais denominaram de meio técnico. Segundo
Santos, o meio técnico-científico-informacional seria um meio geográfico onde o
território incluiria necessariamente ciência, tecnologia e informação. Deve ser
ressaltado, como vimos, o elemento
informação na constituição deste novo meio técnico:
“A ciência, a tecnologia e a informação estão na base mesma de todas as
formas de utilização e funcionamento do espaço, da mesma forma que participam
da criação de novos processos vitais e da produção de novas espécies (animais e
vegetais). É a cientificização e a tecnicização da paisagem. É, também a
informatização, ou, antes, a informacionalização do espaço. A informação tanto
está presente nas coisas como é necessária à ação realizada sobre essas coisas.” Grifo nosso.
(SANTOS, 1994, 51).
Os
conceitos em pauta, principalmente o de espetáculo, elaborado por Debord, mereceriam um estudo mais aprofundado.
Mas o que já temos, tendo em vista o objetivo desta parte do trabalho, nos
parece suficiente. Sob o nosso ponto de vista atual, tais conceitos seriam
correlatos, apresentariam um caráter de
complementaridade e poderiam contribuir para o desvendamento do nosso
contemporâneo espaço geográfico, este grandioso espaço geográfico espetáculo,
este espetacular espaço geográfico globalizado.
2.1.18. CONCLUSÃO
Finalizaremos
esta parte do nosso trabalho ressaltando alguns tópicos, que para nós se
tornaram mais claros, após o estudo da evolução do conhecimento geográfico.
Trata-se das relações entre a produção científica e a ideologia.
Considerando
a evolução dos conhecimentos geográficos relacionada ao estudo do
desenvolvimento do capitalismo, podemos concluir que não existiria a ciência pura de um lado, e a ideologia de
outro. Verificamos que haveria diversificadas perspectivas científicas e que
estas estariam imbricadas, de um modo geral, a diferentes perspectivas
ideológicas de classe. No entanto, cumpre ressaltar, também, a existência da
autonomia relativa da esfera científica, a especificidade desta atividade, a
determinada continuidade intrínseca entre as obras de determinados
autores, em um contínuo processo não
linear de superação crítica, portanto, repleto de rupturas e cortes.
Tendo
em vista o que foi exposto, constatamos
que não foi possível referendar duas concepções opostas que seriam, na verdade,
segundo nosso atual ponto de vista, dois equívocos metodológicos.
A
primeira poderíamos chamar de “reducionismo sociológico”, o qual se empenharia
na redução unilateral da ciência à classe social, ao ponto de vista de classe.
Para nós não foi suficiente definir apenas o caráter de classe de um autor para
determinar o conteúdo científico de sua produção. Verificamos que há uma
especificidade do conhecimento científico que não pode ser restringida ao
embate das posições de classes diferentes. Existiria um valor científico
intrínseco que faz com que diversos autores aprendessem com a produção
científica de outros e construiriam suas teorias a partir das descobertas
anteriores em um processo não linear de superação crítica.
A
segunda concepção, diametralmente contrária à anterior, e que também não foi
possível constatar no nosso estudo, e
que estaria relacionada principalmente à concepção positivista, seria a de acreditar que a producão
científica não teria nenhuma relação com a ideologia, ou com a luta de classes.
Nesta perspectiva equivocada, a
história da ciência passaria a ser completamente independente, isolada da
história da luta de classes (LÖWY,1985,104).
Ao
contrário, verificamos que as profundas alterações que se realizam na evolução
do pensamento corresponderiam aos movimentos ideológicos consoantes aos
processos de transição de determinados modos de produção em direção a outros, e
também às mudanças significativas no interior de um mesmo modo de
produção, que no âmbito filosófico e
científico, seriam expressões das transformações realizadas ao nível econômico
e político. O desenvolvimento das estruturas econômicos-sociais impulsionaria modificações na chamada superestrutura
cultural e na maneira de traduzir o processo de relações entre a sociedade e a
natureza (PEREIRA, 1993, 61).
Foi
possível, assim, após o estudo, a nossa concordância com os teóricos da Escola
de Frankfurt, por exemplo, que ao
abordarem o estatuto das ciências sociais,
teriam enfatizado sempre que os cientistas sociais seriam parte do
objeto sob investigação e que, por isso, a percepção da realidade social seria
contaminada pelas categorias sociais. Teriam colocado em pauta, desta maneira, a questão da ideologia dos cientistas, e
teriam procurado demonstrar que o pesquisador seria influenciado por seus
próprios valores na análise dos fenômenos sociais (CAPEL, 1983, 413).
Portanto,
sob o nosso ponto de vista, o conhecimento científico, e, conseqüentemente, o conhecimento
geográfico estariam inapelavelmente imbricados com as chamadas estruturas
sociais que funcionariam como “infra-estruturas” às formações sociais. As manifestações
culturais, nas diversas áreas do conhecimento, não seriam imóveis, nem
estreitas e limitadas. Estariam, na verdade,
em constante movimento, e mostrar-se-iam comprometidas com a ação
concreta e as modalidades de pensamento originárias das estruturas que
dominariam a sociedade.
Concluimos,
deste modo, que apesar da inequívoca particularidade do seu desenvolvimento, a
geografia como ciência e como práxis estaria profundamente relacionada e
dependente das relações sociais, e, simultâneamente, verificamos que o
pensamento geográfico não seria isolado, mas estaria em conexão com o
pensamento das demais ciências, tanto sociais, como naturais.
Ressaltamos
deste modo, para finalizar, o caráter
ideológico que desde o início teria se
manifestado na geografia institucionalizada, que teria se materializado muito mais enquanto “uma
ideologia do que um filosofia e isso não se deu apenas na Alemanha mas um pouco
pelo mundo todo” (SANTOS, 1996,13).
GEOGRAFIA E ESPAÇO GEOGRÁFICO GLOBALIZADO
2.2.1. INTRODUÇÃO
No desenvolvimento histórico das ciências sociais, a sociedade, objeto
de estudo sobre o qual elas se voltam, sempre passou por significativas
transformações. Estas transformações, por sua vez, acabaram por influenciar as
definições e delimitações do próprio conceito de sociedade enquanto objeto de
estudo.
O fenômeno da globalização apresenta-se como um extraordinário desafio
tanto às ciências sociais quanto às ideologias e utopias. No alvorecer do
século XXI, as ciências sociais encontram-se diante de questões inéditas,
inesperadas, sobre as quais ainda não refletiram, ou não se interessaram de
forma suficiente. Sob determinados ângulos, os problemas contemporâneos
abordados pelas ciências sociais aparentam transbordar o poder de explicação
dos conceitos estabelecidos:
“O objeto das ciências sociais já não é apenas a sociedade nacional,
ou o indivíduo situado nesta sociedade. Nem são apenas os atores sociais,
relações, processos e estruturas inerentes aos modos de ser, organizar-se e
modificar-se da sociedade nacional. No século XX, e em escala cada vez mais
acentuada no largo de seu curso, o objeto das ciências sociais modificou-se
substancialmente, em termos qualitativos, além de quantitativos. O que é
nacional é também elo ou expressão de articulações globais: moeda, capital,
trabalho, tecnologia, divisão do trabalho, empresa, corporação, conglomerado,
mercado, complementaridade, multilateralidade, economias de escala, trocas
desiguais, protecionismo, isolacionismo, estatismo, dependência,
interdependência, imperialismo. O indivíduo, ator, identidade, grupo social,
classe social, etnia, minoria, movimento social, partido político, corrente de
opinião pública, poder estatal, todas essas dimensões da realidade não mais se
esgotam no âmbito da sociedade nacional.”(IANNI,1999, 169).
Constata-se, além disso, que as ciências sociais estão sendo estimuladas
a pensar e a repensar os novos tempos e a interpretar e a reinterpretar as
realidades que já haviam sido objeto de interpretação e explicação. A
historiografia, a geografia, a demografia, a sociologia, a economia política, a
ciência política, a antropologia, a lingüística e outras ciências sociais
deparam-se com realidades que se universalizaram em escala crescente e em ritmo
vertiginoso. Ou seja, transformou-se de forma notável o objeto de estudo das
ciências sociais. O indivíduo e a sociedade, que foram ponto de partida destas,
inicialmente submersos no espaço da nação, atualmente podem ser localizados em
algum lugar da sociedade global, teleguiados também pelos mecanismos dessa
sociedade. Desta maneira, a ciência fundamentada na reflexão sobre a sociedade
nacional aparenta não ser capaz de compreender as características e os
desdobramentos da nova sociedade global.
A geografia, conforme já visto, particularmente no final do século XIX e
no decorrer do século XX, também sofreu o impacto dos principais aspectos da
chamada globalização sobre os seus fundamentos teóricos e metodológicos.
Verifica-se, na atualidade, que a importância do espaço ganha relevo. A
globalização da sociedade e das atividades econômicas produz a mundialização do
espaço geográfico, trazendo no seu bojo novos significados. Cresce, hoje, de
forma decisiva, a importância do espaço, considerando que a Natureza se
transmuta, em seu conjunto numa forma produtiva. No momento em que todos os
lugares sofrem a ação, direta ou indireta, dos interesses do processo
produtivo, criam-se, simultaneamente, projetos específicos, e estruturas
hierárquicas no que se refere à apropriação do espaço pelos agentes que
concorrem entre si, de forma ativa ou passiva. Daí a emergência de uma nova
organização das funções entre as diferentes subdivisões de território. Cada
ponto no mapa assume importância de forma efetiva ou potencial. Esta
importância será condicionada pelas especificidades anteriores ou incorporadas
de acordo com intervenções determinadas. Tendo em vista que a produção se torna
mundial, as possibilidades de cada lugar se destacam e se diferenciam em âmbito
mundial. A crescente mundialização capitalista e o fortalecimento das empresas
transnacionais, leva a uma tendência de se fixar na esfera mundial, e não mais
na esfera nacional, os custos de produção e a um nivelamento das taxas de
lucros em decorrência da mobilidade internacional do capital (Mandel apud
Santos, 1994,28), por outro lado, a busca pelos lugares mais lucrativos seria
um procedimento constante.
Estas são algumas das razões que fazem com que as diferenciações
geográficas assumam importância estratégica fundamental, segundo Lacoste
(LACOSTE, 1997, 73). Atualmente, o local adequado para a construção de um
estabelecimento pode ser decidido à distância, e, desta maneira, as realidades
locais encontram-se submetidas a pressões de ordem mundial. Como este
acontecimento é generalizado, pode-se afirmar que no atual período histórico
verifica-se a afirmação do “caráter geográfico da sociedade”. A humanidade
alcança um saber analítico e de síntese de toda a Natureza e desenvolve um
poder de uso universal e global das coisas que a circundam:
“A partir do momento em que a natureza se define de nova maneira e
suas relações com o homem se renovam, torna-se necessária uma renovação das
disciplinas que a estudam. Para a geografia, trata-se de novas perspectivas e
de uma capacidade nova de trabalhar com leis universais”. (SANTOS, 1994, 29).
O processo de internacionalização das atividades econômicas possibilitou
a entrada em cena das cidades mundiais, autênticos nós estratégicos nas redes
múltiplas que fornecem sustentação às realidades sociais do nosso planeta. De
fato, é o espaço como um todo que se tornou mundial, e não existem mais lugares
que se pretendam completamente isolados:
“Para os geógrafos, profissionalmente preocupados com o espaço do
homem, a nova situação é apaixonante. De um lado, seu campo de interesse se
amplia, pois o espaço dito geográfico se torna, mais do que nunca, elemento
fundamental da aventura humana. De outro, a mundialização do espaço cria as
condições – até aqui insuficientes – para estabelecer um corpo conceitual, um
sistema de referências e uma epistemologia, recurso de trabalho que sempre
faltou a essa disciplina e por isso estreitou seu campo de estudo ao longo
deste século.
A garantia de universalidade é um trunfo, visto assegurar a
possibilidade de melhor compreender cada fração do espaço mundial em função do
espaço global e permitir, assim, o reconhecimento e a interpretação das
intervenções sobrevindas, enquanto se realiza uma ciência crítica. Isso não era
possível antes de o Planeta tornar-se realmente mundializado, vale dizer, antes
de ele ser o objeto, em cada um, de seus pontos, da ação de variáveis cuja
dimensão é planetária ”. (SANTOS, 1994, 36)
Segundo Ianni, tendo em vista o conceito de globalismo, principalmente
as teorias sistêmica, weberiana e marxiana permitiriam apreender esta realidade
global em níveis micro, macro e meta. Estas formulações teriam o status de
metateorias. Auxiliariam a pensar o que é local, nacional, regional e mundial,
seja desmembrando cada um desses aspectos, seja coesionando-os em universos
cada vez maiores. Agregariam informações e constatações, ou interações,
processos e estruturas, em suas repercussões sociais, econômicas, políticas e
culturais. Seriam metateorias, na acepção de serem amplas, interdisciplinares e
permitirem captar os fenômenos sociais em toda sua complexidade, apesar de não
precisarem ser vistas como explicações totais e acabadas do fenômeno da
globalização. As teorias sistêmica, weberiana e marxiana
“Podem ser vistas como códigos por meio dos quais se torna possível
delimitar e apreender uma realidade que parece nova e ainda pouco conhecida.
Simultaneamente, na medida em que se desenvolvem as interpretações,
compreendendo aspectos muito particulares ou mais abrangentes, elas colaboram
na constituição do globalismo como objeto de reflexão e ação, ou da teoria e
prática. A partir da categoria ‘globalismo’, torna-se possível elaborar e
mobilizar recursos intelectuais, de maneira a delimitar e aprender as
configurações e os movimentos da realidade, em níveis local, nacional, regional
e mundial, buscando compreender e explicar como essa realidade se forma e
transforma, cada vez mais subsumida histórica e logicamente pelo globalismo”.
(IANNI, 2001,210).
Nosso ponto de partida metodológico, tanto para definir a ciência
geográfica quanto para analisar o fenômeno da globalização caminha na direção
do estabelecimento de uma interlocução privilegiada com a teoria marxiana.
Evidentemente esta teoria não é unitária e coesa, e são muitos os
perpetuadores mais fecundos do pensamento de Marx. Estes contribuem para a
leitura das diferentes características da transnacionalização, mundialização ou
globalização do capitalismo, enquanto modo de produção e “processo
civilizatório”. Suas obras sobre colonialismo, imperialismo, capitalismo
tardio, internacionalização do capital, revoluções nacionais, revoluções
sociais e guerras regionais e mundiais pavimentam a estrada que podem conduzir
a apreensão do fenômeno da globalização em toda sua riqueza.
No processo de interlocução com a teoria marxiana evitaremos qualquer
postura meramente doutrinária. Este método não pode ser considerado como
definitivamente pronto e acabado, não devendo ser uma prisão que nos impeça de
examinar a realidade sob outros ângulos. O compromisso do professor e
pesquisador deve ser prioritariamente com o real. Se a realidade estudada não
corresponde aos nossos pressupostos teórico-metodológicos, estes devem passar
por reformulação. Sob este prisma, a atitude cientificamente recomendável é a
da permanente revisão dos postulados. Ou seja, o método deve estabelecer
relação entre a epistemologia de uma ciência específica e a produção
historicamente acumulada, mostrando a natureza social da atividade científica.
(MORAES & COSTA, 1987, 30).
2.2.2. A GEOGRAFIA EM
INTERLOCUÇÃO COM A TEORIA MARXIANA: UMA OPÇÃO DE MÉTODO.
Na busca do autêntico espaço geográfico, encontra-se a pesquisa sobre o
cerne da geografia. No âmbito da teoria marxiana há diversas formulações sobre este tema crucial. A principal
preocupação dos geógrafos circunscritos a esta abordagem é a de superar o que é
meramente visível, o que é simples aparência em direção à construção do
estatuto científico da geografia. Isto quer dizer que tem havido um grande
esforço na definição do seu objeto de estudo, considerando que não há ciência sem
objeto, sendo que muitos consideram o espaço social, o espaço produzido como
sendo o objeto da geografia. E, além disso, este espaço qualificado como social
ou como espaço produzido é, na maioria das vezes, pensado como movimento,
processo.
Dentre as formulações que seguem este caminho julgamos particularmente
instigantes as da professora Lenira Rique da Silva (SILVA, 1991). Assim, sob
uma ótica natural, o espaço é antes de tudo um lugar, uma parcela do globo
conhecida por um nome com especificidades próprias, congregando diversos
atributos indispensáveis para a vida dos homens. Partindo desta base temos
diversos fatores, como o povoamento, as formas de vida da população, suas
práticas produtivas, sua sociabilidade, dentre outros. Nesta visão nos restringimos
meramente aos fenômenos, às formas. Mas isto é superficial, e é necessário
ultrapassar a descrição simplória.
A determinação da natureza necessita ser compreendida em suas relações
com a determinação histórica. Esta
última considerada como a responsável pelas mudanças da sociedade e da sua
ligação contraditória com a natureza. O homem é simultaneamente um ser natural
e histórico e a natureza é também demarcada pela sociedade. Ou seja, o espaço
geográfico não é elemento abstrato, mas é um espaço relacionado à história
feita pelos homens, portanto, um espaço histórico e socialmente produzido,
estreitamente vinculado às transformações da sociedade sob determinados “modos
de produção”. Tendo em vista a categoria “modos de produção”, compreende-se a
história da humanidade imbricada com as relações sociais, relações de produção
contraditórias, porque não são realizadas pelos indivíduos,
“ (...) mas pelo homem genérico, pela sociedade de classes, que se negam
e, ao mesmo tempo, confrontam-se no decorrer de sua existência, na busca da
superação das suas contradições, até atingi-las momentaneamente. A partir de
então, novas contradições passam a ser produzidas em novas sociedades, dentro
de um processo que é infinito, inacabado e em cuja essência está a luta. Esse é
o devir dialético da existência humana, onde, seja qual for o momento da
história, está presente a luta”. (SILVA, 1991, 16).
Desta forma, o espaço do
capital na geografia é materializado pelas relações dialéticas entre os atores
diretos e indiretos do processo de produção e o meio natural. No interior da
natureza reside o próprio homem, enquanto ser cuja essência é subtraída no
processo de produção capitalista do espaço, reduzido a uma mercadoria, isto é,
a força de trabalho.
No processo de produção reside
umas das contradições básicas da relação de produção capitalista. Aquele que
produz é o homem enquanto ser genérico, que realiza trabalho. No entanto, neste
processo ele se anula, tendo em vista que o trabalhador não mantém o produto do
seu trabalho, não se identifica com que é produzido e o fruto da sua própria
produção mostra-se estranho. O ator indireto assume-se como o ator real, e o
ator direto é subjugado.
A esssência do espaço
geográfico está contida no processo de produção, tanto no espaço urbano quanto
no rural, seja capitalista ou não-capitalista (este não deixa de estar,
evidentemente, submerso em um entorno capitalista). A produção capitalista do
espaço geográfico materializa-se no trabalho reificado, corporificado em tudo
que é produzido para o consumo produtivo ou para o consumo direto.
Sob esta ótica, a geografia
que se pretende crítica deve analisar o espaço enquanto a unidade contraditória da geografia que, não
obstante, carrega no seu interior uma
síntese; síntese que corresponde “às múltiplas determinações do real”. Apesar
de ser fundamental o conceito de lugar, deve-se ressaltar que o mesmo não pode ser explicado por si mesmo.
Este é configurado por inúmeras conexões, por vários elementos, os principais
sendo, inclusive, invisíveis. Ou seja:
“o espaço é produzido pelas relações sociais subordinadas ao
modo de produção que sustenta a sociedade – sua infra-estrutura econômica, a
partir da qual se erguem as superestruturas ideológicas, políticas, jurídicas,
culturais, etc”. (SILVA, 1991,19).
Apreender o espaço geográfico
nesta perspectiva marxiana, é tentar capturá-lo na sua essência, enquanto
totalidade, com sua riqueza de conflitos, contradições e mediações; tudo isso
interconectado numa dinâmica sem fim. O espaço geográfico como objeto de
pesquisa, nesta perpectiva dialética, deve ser entendido como totalidade, não
devendo existir a ênfase do que é abordado no início ou no final. Isto é:
“O raciocínio dialético é a antítese do raciocínio formal; a
lógica formal corresponde a só um momento da lógica dialética. Enquanto na
lógica formal se raciocina em linha reta, como se o raciocínio pudesse se
representado geometricamente por um segmento retilínio, na dialética se caminha
em todas as direções, como se a realidade tivesse a forma geométrica de
círculos que se justapõem em espiral. Assim sendo, só formalmente se toma um
fato, um dado, para iniciar um trabalho científico, o qual pode estar em
qualquer ponto dessa espiral imaginária. Esse fato ao mesmo tempo que está
determinando o outro, pode ser determinado por ele. É o movimento dialético da
natureza orgânica e inorgânica do homem com a natureza física e socializada”. (SILVA, 1991, 20).
O começo e o fim são ubíquos;
um pode ser o outro, e simultaneamente a sua negação. No fim de uma pesquisa
encontra-se também o embrião de um novo estudo científico. Não deve existir
conclusões categóricas, mas sobretudo, levantamento de novas questões, novas
interrogações que alavanquem a produção científica, que, na verdade, é
interminável.
Desta maneira deve ser
entendida a pesquisa sobre o espaço geográfico. Qualquer estudo refere-se a um
minúsculo instante desse incomensurável espaço. O espaço na geografia,
repetimos, necessita ser pensado
enquando totalidade. Esta é configurada de momentos, de abrangências mais
amplas, que se conectam com a totalidade global. Os momentos da totalidade
mostram a dinâmica dialética da natureza e da sociedade e suas determinações
temporais e espaciais. Estes instantes são portadores de especificidades segundo
a história e o lugar e se corporificam na paisagem de forma diversa de acordo
com as determinações de ordem geral e particular da sociedade.
Conclui-se, então, que não
existe um espaço único na ciência geográfica. Não obstante, o elo comum entre
os espaços é o fato de que todos estão subjugados ao mesmo modo de produção. A
exploração econômica, o monopólio privado da terra, as relações sociais de
produção marcadas pela divisão social do trabalho, tudo isso é universal;
Necessita-se enfatizar as características
culturais dos povos de cada lugar, suas histórias, as particularidades da
evolução dos seus modos de produção, e consoante tudo isso, apreender as
formações sociais com suas especificidades materializadas em determinado
momento do espaço nas suas paisagens.
Os espaço geográfico,
enfim, seria uma síntese portadora de
diversidade, condicionada ao fator lugar, repleta de todas as contradições
vinculadas às relações reificadas entre os homens, às relações entre os homens e
a natureza e às relações depredadoras entre as classes hegemônicas e o meio
natural.
A geografia sob
esta perspectiva marxiana, junto com outras ciências sociais, na nossa opinião,
estaria preparada para abordar, sem
pretender esgotá-lo, este complexo fenômeno chamado de globalização. Deste
modo, a geografia estaria preparada para - transcendendo as óbvias aparências
da globalização - tentar atingir o cerne do seu significado.
2.2.3. A GLOBALIZAÇÃO SOB UMA
PERSPECTIVA CRÍTICA E RADICAL
Tendo em vista o que foi dito, tentaremos compreender o fenômeno da
globalização por meio das contribuições de diversos estudiosos, destacando-se,
dentre eles, alguns geógrafos, sociólogos, historiadores e economistas que
podem ser considerados de filiação marxiana.
Acompanhando a reflexão crítica e radical, sobre a globalização,
elaborada por Giovanni Alves, que não pretende ser simplesmente uma apologia e
tampouco mera contestação do fenômeno, reafirmaremos a legitimidade analítica
deste. Assim, o reconheceremos enquanto fenômeno histórico-social e ideológico
pertinente a atual fase do processo de evolução do capitalismo mundial.
Enquanto “totalidade concreta”, fruto da evolução da civilização
ocidental, não pode ser abordado exclusivamente apenas como uma expansão do
mercado mundial, ou restringido simplesmente ao “imperialismo”. A globalização
é muito mais complexa, configurando-se em novas realidades sociais, culturais, políticas, éticas e tecnológicas
específicas, comandadas, essencialmente,
pelo intrincado “processo civilizatório” do capital. Ou seja, a
globalização não pode ser delimitada apenas pelas esferas econômica, política
ou tecnológica, sendo necessário apreendê-la, numa perspectiva
dialético-materialista, em todas as suas dimensões. Deste modo, segundo Alves,
deve ser salientado três aspectos inseparáveis que constituem esta “totalidade
concreta sócio-histórica, completa e integral”. Isto é, a globalização
considerada como ideologia, como mundialização do capital e, por fim, como
“processo civilizatório”. Cumpre dar
relevância ao caráter contraditório do fenômeno:
“As
dimensões da globalização são contraditórias entre si, tendo em vista que, como
iremos salientar, a ideologia (e a política) da globalização tende a ‘ocultar’
– e legitimar - a lógica desigual e excludente da mundialização do capital e a
mundialização do capital tende a impulsionar, em si, o processo civilizatório
humano-genérico, isto é, desenvolvimento das forças produtivas humanas, que são
limitadas – ou obstaculizadas - pelo próprio conteúdo da mundialização (ser a
mundialização do capital).Qualquer leitura (ou análise) da globalização
que não procure apreender o sentido dialético – e portanto, contraditório, do
processo de mundialização do capital, tende a ser unilateral, não sendo capaz
de ver a globalização tanto como algo progressivo, quanto regressivo, tanto
como processo civilizatório, quanto como avanço da barbárie; tanto como a
constituição de um ‘globo’ na mesma medida em que tende a contribuir para a
sedimentação de particularismos locais e regionais.” (ALVES, 2000,
par.11-2).
2.2.4. A IDEOLOGIA DA
GLOBALIZAÇÃO
Sob a perspectiva abrangente acima exposta, abordaremos, seguindo os
passos de Giovanni Alves e Carlos M. Vilas, a faceta ideológica do fenômeno da
globalização. Em primeiro lugar ressaltamos que o conceito de ideologia não
deve ser compreendido exclusivamente como “falsa consciência”. A ideologia da
globalização só ganha credibilidade pelo fato de ser correspondente ao novo
patamar da ordem capitalista mundial, por se sustentar em transformações da
estrutura econômica do sistema capitalista global, operadas pelas grandes
empresas e governos. A globalização, para além das ideologias, enquanto
mundialização do capital, apresenta existência e características próprias.
Desta maneira, a idéia de globalização há muito
pertence ao cotidiano da maioria
das pessoas. Apesar de se referir a um
fenômeno de grande complexidade cujo
entendimento está ainda nos seus primórdios, parece prevalecer a perspectiva de
que a globalização é um acontencimento irreversível, que submete os Estados e
povos e os deixa sem nenhuma margem de
manobra.
A globalização tem sido vista como um afastamento do
imobilismo referente ao passado e
simultaneamente como uma significativa diminuição das opções públicas. Algumas
medidas são criticáveis ou aconselháveis, outras são inevitáveis e tanto umas
quanto outras são interpretadas e ditadas pelas necessidades da globalização.
Este pensamento, até então repleto de convicções
deterministas, fundamenta-se em um pequeno leque de enunciados simplórios de autoproclamada evidência, expressos
por Vilas apud Giovanni Alves, sendo
que os mesmos vêm a seguir:
“1) A globalização é
um fenômeno novo; 2) Trata-se de
um processo homogêneo; 3) É, do mesmo modo, um processo homogeneizador: graças
à globalização, todos seremos, antes ou depois, iguais e, em particular, os
latino-americanos serão iguais em desenvolvimento, cultura e bem-estar aos
nossos vizinhos do Norte e da Europa; 4) A globalização conduz ao progresso e
ao bem-estar universal; 5) A globalização da economia conduz à globalização da
democracia; 6) A globalização conduz à desaparição progressiva do Estado,
ou ao menos uma perda de importância do mesmo”. (VILAS apud ALVES, 2000,
par.4).
Grosso modo, estes
enunciados configuram o cerne do que pode-se denominar de ideologia da
globalização. Examinemos, de forma sucinta, cada um destes enunciados.
I) A globalização é algo
novo. A
perspectiva de que a globalização seja algo novo atesta ignorância sobre a
história econômica, particularmente a história econômica do
capitalismo. Ao contrário do que se pensa, a globalização desdobra-se num desenvolvimento de vários séculos que
teve origem no continente europeu a
partir dos séculos XV e XVI, como manifestação especificamente dinâmica do capitalismo
e como resultado de seu caráter eminentemene expansionista. O fato de que
algumas economias e mercados pré-capitalistas terem revelado expressivas
evidências de dinamismo na atividades comerciais possibilitou que se levantasse
a hipótese de um início muito anterior, do que é normalmente aceito, dos
processos de globalização.
Não há dúvida, contudo, que os aperfeiçoamentos
tecnológicos em algumas localidades da Europa (técnicas de navegação e de
orientação, dentre outros) e suas conseqüências no comércio, possibilitaram à
globalização do capital um salto de amplitude até então inédita, que permitiria
sua abrangência por todos os quadrantes do globo. Como vimos, a descoberta do
continente americano e sua anexação à Europa, alargando as fronteira econômicas
em direção ao Atlântico, significou um marco histórico de grande importância.
Trata-se, assim, de um fenômeno que se desenvolve, no mínimo, há quinhentos
anos.
A globalização é um fenômeno relacionado de forma
estreita ao percurso do capitalismo enquanto modo de produção necessariamente
expansionista, no que se refere a territórios, povos, recursos naturais, modos
de vida e culturas.
A trajetória expansiva do capitalismo na Europa, no
século XVI, em consonância à nova mentalidade da época, forçou a abertura de
fronteiras inéditas no intuito de ampliar a acumulação de capital nas
metrópoles.
O fortalecimento da atividade científica e sua
contribuição decisiva ao processo de produção impulsionou a busca de novas
fontes de matérias-primas e de artigos de luxo, bem como o domínio político em
terras cujos povos foram anexados nesta primeira etapa da globalização por meio
do jugo colonial e da repressão às suas culturas. Numa característica relação
assimétrica, suas riquezas e existências tornaram-se bens econômicos, políticos
e culturais eurocêntricos. Sendo que a Europa, cada vez mais, torna-se
dependente dos recursos das regiões coloniais. A Primeira Revolução Industrial,
no final do século XVIII, trouxe um novo dinamisno a este processo; a extração
em grande escala de minérios, a exploração crescente de florestas e a ampliação
da produção de alimentos tornaram-se o núcleo do capitalismo na
Europa.
No final do século XIX, a Segunda Revolução
Industrial (que traz no seu bojo o aperfeiçoamento dos meios de transporte
terrestre e marítimo, o uso da energia elétrica, o desenvolvimento industrial
acelerado, a disseminação das técnicas de conservação dos alimentos, dentre
outros) provoca a imigração em massa da
população européia rumo à América e à Oceania. Os movimentos do capital
e das atividades comerciais foram acompanhados pelas correntes migratórias.
Deve-se ressaltar que a chamada globalização do
consumo atual teve sua origem no século XVI, com a chegada nas terras européias
de uma grande variedade de produtos oriundos das colônias: café, cacau,
batatas, tomates, bananas, arroz, cana-de-açúcar,etc.
A globalização deve ser analizada considerando a
notável mobilidade do capital e seu caráter expansionista. Sendo que este
abarca as características locais numa perspectiva mundial. Os tempos de refluxo
das inversões internacionais não deixam de ser também tempos de expansão do
capital sobre os espaços nacionais, que acabam preparando novos impulsos de
natureza global. O período que vai de 1930 a 1970, caracterizada como uma época
de “nacionalização” do capitalismo caracterizou-se igualmente como uma era de
grande desenvolvimento das forças produtivas e da transformação de grande
variedade de recursos naturais, segmentos da população e espaços geográficos em
simplesmente mercadorias.
II) A globalização é um
processo homogêneo ? Sob o ponto de vista de um longo período histórico, a
globalização manifesta-se de forma claramente desigual. Os períodos de aumento vertiginoso da expansão
capitalista, quanto aos fluxos internacionais de comércio e finanças,
sucedem-se etapas de relativa calmaria e significativa concentração nos
âmbiltos nacionais, que por sua vez, são ultrapassados por novos tempos de
aceleração.
Atualmente
percebe-se um período de aceleração da globalização antecedido por uma etapa
que perdurou por mais de cinqüenta anos de relativa estabilização “nacional”.
Esta, por sua vez, precedida por um período (1870 – 1914/20) de aceleração
inédita.
Em resumo,
a aceleração dos dias atuais da globalização ocorre pelo excesso de liquidez da
economia internacional a partir da crise do petróleo da década de1970 e pela
aplicação às atividades econômico-financeiras dos aperfeiçoamentos
técno-informáticos provenientes da Guerra do Vietnã. Desta maneira, a
globalização é portadora de desdobramentos desiguais em seus diversos níveis ou
dimensões. Em sua performance atual, manifesta-se com um maior desenvolvimento
no aspecto financeiro do que nos aspectos produtivo e comercial. Estima-se que
montante anual de todas as movimentações financeiras no globo é entre 12 e 15
vezes superior que o valor da produção anual de bens e serviços não
financeiros, e por volta de 60 ou 70 vezes superior que o valor de todas as
exportações do mundo. (ALVES, 2000, par.7).
A
hipertrofia do setor financeiro da economia mundial estabelece uma distinção
significativa em relação às características precedentes do capitalismo. As
movimentações financeiras abandonam o papel de coadjuvantes para se
transformarem na força motriz do sistema. Ou seja, após a globalização comercial e da globalização produtiva
estamos vivendo os tempos da globalização financeira, o terceiro nível do
fenômeno.
A globalização das finanças acrescenta à economia
grande volatilidade, intensificada pelo perfil de curto prazo predominante nas
ondas de inversão financeira. Assim, nota-se uma nítida diferença entre os
investimentos financeiros atuais e aqueles do período 1870-1920. Vale lembrar
que o predomínio das finanças é capitaneado por um leque de novos investidores.
Tais como fundos mútuos, companhias seguradoras, fundos de pensão, “fundos
contigente”, investidores individuais, que arregimentam novos produtos
financeiros: swaps, derivativos,etc.
A conseqüência da volatilidade é o caráter
especulativo da economia mundial, considerada por muitos uma autêntica
“economia de cassino”. O colapso das divisas européias em setembro de 1992; o
craque do México de dezembro de 1994 e seus desdobramentos (“efeito tequila”)
por alguns países Latino-americanos; a quebra da firma britânica Baring em
1995; a crise das moedas asiáticas no verão de 1997, demonstram a instabilidade
das atividades econômicas diante das movimentações financeiras globais.
Entretanto, o valor do comércio no mundo representa
somente um terço do valor da produção mundial total. O que significa que dois
terços do produto se restringem aos mercados nacionais e não a um propagandeado
mercado globalizado, apesar do empenho e da apologia ao crescimento das
exportações. Cumpre destacar que a famosa abertura externa das economias é menor
nas economias capitalistas centrais do que nas periféricas.
Pode-se afirmar que é completamente errônea a
concepção de que os mercados nacionais não tenham importância para o
desenvolvimento e o que realmente conta é o mercado globalizado.
Vale lembrar que um terço e dois quintos do comércio
global representam relações tipo matriz/filial ou subsidiária, ou
filial/subdisiária de corporação transnacional. Ou seja, referem-se a
transações internas e se caracterizam por preços de transferências referentes às
ações dos atores do mercado.
A globalização funciona de maneira diversa para os
diversos sujeitos envolvidos. Trata-se da globalização do capital e não da
globalização da força de trabalho. Vide as legislações protecionistas, de
caráter racista, xenófabo, dos mercados de trabalho dos países capitalistas
centrais.
O capital financeiro é de fato internacional, mas a
classe trabalhadora não possui uma idêntica liberdade de deslocamento para
buscar melhores condições de remuneração. A ilegalidade da situação de muitos
trabalhadores representa uma fonte de renda para os negócios, tendo em vista
que isto possibilita que esta mão-de-obra seja contratada em condições
desfavoráveis.Talvez, assim, se explique a onda de xenofobia no mundo
desenvolvido.
Sob o aspecto geo-econômico, os Estados Unidos, a
União Européia e o Japão, com todo o universo de tensões, pressões e acordos
mútuos, comandam o processo de globalização. As conferências do “Grupo dos
Sete” significam o fórum evidente que coordena e direciona os movimentos do
mercado mundial. O fato de que os fluxos econômicos no mundo concentram-se nas
áreas citadas, fortalece a hipótese de uma divisão regional baseadas em três
blocos: Estados Unidos no hemisfério Ocidental, Alemanha e a UE no velho
continente, e Japão (e talvez a China) na Ásia/Pacífico.
As movimentações comerciais e financeiras no interior
de cada um desses pólos são muito maiores do que entre eles. Ou seja, isto é o
que caracteriza uma área econômica ou bloco. Portanto, mais que uma
propagandeada globalização enquanto transação universal equitativa em valor e
intensidade, nota-se a configuração de grandes espaços econômicos regionais,
com a hegemonia de um de seus membros. A dicotomia regional/global seria uma
mediação entre a economia nacional específica e a economia mundial.
III) A globalização
conduz à homogeneização da economia mundial, superando com o tempo as
diferenças entre desenvolvimento e subdesenvolvimento, e entre países e regiões
ricas e pobres ?
A globalização possibilita
aos países pobres a entrada de forma inexorável no chamado "primeiro
mundo" ? Esta é uma crença
falaciosa propagandeada de maneira a mais
entusiástica possível quanto mais empobrecido e “atrasado” é uma
região.
A leitura da globalização como um fenômeno que
homogeniza as esferas econômicas, sociais e políticas, e a fé no poder da
globalização de resolver as deficiências de natureza econômica e técnica
globais não tem embasamento na realidade, mesmo numa visão de longo prazo. Esta
advertência, segundo Alves, já foi feita por diversos economistas, desde a
década de 1940, e foi retomada, reformulada e adaptada, por outro grande número
de estudiosos, aos desdobramentos futuros da economia mundial.
Grosso modo, e apesar das inúmeras diferenças de
abordagem, nestes trabalhos há concordância
em reconhecer como conseqüência da expansão do capitalismo mundial o
surgimento de diferenciações cada vez maiores entre as regiões do planeta com
os respectivos patamares desiguais de desenvolvimento.
As disparidades entre os níveis de educação,
técnicos, de qualidade de vida, dentre outros, explicam as graves e crescentes
diferenças, e atestam as características da globalização como processo de
intensificação das desigualdades entre países.
O mais preocupante é que os mais exaltados ideólogos
da globalização são obrigados a reconhecer que a assimetria na distribuição de
recursos, valores, transações e benefícios deverá se perpetuar ainda no futuro
próximo.
Após verificar que os países capitalistas centrais
obtêem da progressiva integração do comércio dividendos superiores aos dos
países periféricos, o Banco Mundial estima um aumento mínimo da participação
dos países pobres nas transações globais.
Em contradição com as idéiais neomalthusianas que
atribuem o retardo dos países pobres às taxas absurdamente elevadas de
crescimento populacional, constata-se que as diferenças destas taxas e as de
desenvolvimento, entre países ricos e pobres,
são acentuadamente menores do que as taxas de crescimento do produto.
O PIB per capita, em 1980, nas regiões de alto
patamar de desenvolvimento era aproximadamente 33 vezes superior às regiões de
baixo nível de desenvolvimento. Em 1994 passou a ser 62 vezes superior,
portanto, com um crescimento da desigualdade de 91%.
As regiões mais desenvolvidas continuaram, com menos
intensidade, a se diferenciarem das de nível intermediário de desenvolvimento.
Simultaneamente, há quase quarenta anos, verifica-se uma diferenciação no
âmbito dos países pobres, entre os mais pobres (“de ingresso baixo”), e os de
desenvolvimento intermediário. Processo alavancado pelo desenvolvimento de
certas economias do sudeste da Ásia.
No último período vieram somar a estas economias
intermediárias alguns países da América Latina, tais como Brasil, México,
Argentina e Chile, e outros do Leste Europeu.
Vale lembrar que persite ainda um verdadeiro e
crescente abismo entre estes países pobres e os países capitalistas centrais,
não havendo um horizonte de diminuição das desigualdades como um todo.
No decorrer do últimos anos a distância entre os
países desenvolvidos e o restante do mundo aumentou 85%. A continuidade e
recrudescimento deste desnível é conseqüência da exploração internacional de
caráter imperialista ou neocolonial. Ou seja, exploração predatória dos
recursos naturais e degradação ambiental; protecionismo nos países
desenvolvidos, diante das exportaçõe de produtos primários dos países pobres;
estabelecimento de termos assimétricos de intercâmbio comercial; guerras
localizadas contra Estados considerados insurbodinados.
Constata-se, assim, que globalização não diminui as
desigualdades, nem mesmo as contradições constituintes de parcela significativa
da existência social nacional e global.
Inversamente, fornece-lhes um novo impulso, elevando-as em outros
patamares, com outros significados, não representando, portanto, nunca um
processo histórico social de homogeneização.
Do ponto de vista político, a arena mundial também é
contraditória com a concepção de uma globalização homogeneizadora. A ONU, por
exemplo, encontra-se em crise, subjugada pelo interesses geopolícos,
principalmente dos Estados Unidos. Sem dúvida esta crise pode ser atribuída às
transformações ocorridas nas relações de poder de âmbito mundial, pós-Guerra
Fria. Entretanto o governo americano teve poder de impor, principalmente ao
Conselho de Segurança, as suas demandas que buscam cacifar este país enquanto
força hegemônica global, em situação semelhante a experimentada pelo Império
Britânico desde as Guerras de Napoleão até a Primeira Guerra Mundial.
De um modo geral, a crença numa presumida
homogeneização resultado da globalização remete-se aos aspectos simbólicos do
fenômeno. Em outras palavras, a globalização como “hibridização”, como o
surgimento de formas inéditas de interação global entre culturas. Vale
ressaltar mais uma vez a assimetria dos fatos. Alguns sujeitos se posicionam
como produtores e o restante como simples platéias, de acordo com as suas
respectivas classes e diferenciações no interior de cada país. Para os cidadãos da atualidade a
característica de um possível inserção na chamada cultura global varia segundo
as suas particulares condiçõs sócio-econômica e de sexo e a situação econômica
global do país de origem. Constata-se que a esperança no potencial
homogeneizador da globalização não tem justificativa no desenrolar real do processo. Ou seja, a intensificação das
desigualdades entre regiões e países é característica intrínseca do processo,
na falta de agentes que intervenham em sentido contrário.
IV) A globalização é a chave do progresso e do
bem-estar, promovendo o acesso dos grupos menos favorecidos a crescentes níveis
de bem-estar e qualidade de vida?
Mais uma vez o que se verifica é a continuidade e
agravamento dos desníveis sócio-econômicos e educacionais nos países
periféricos. Tais como ampliação do contigente daqueles que vivem abaixo da
chamada linha da pobreza, índices altíssimos de desemprego e subemprego,
precarização crescente das moradias, etc. Grosso modo, constata-se o
aprofundamento das diferenças de toda a espécie entre as diversas camadas da
população inseridas nos setores dinâmicos da economia e aqueles setores que
permanecem excluídos de tudo.
O aumento dos níveis de pobreza na região, ou ainda
os empecilhos para diminuí-la são condicionados por causas referentes às características principais do processo de
globalização. Pode-se destacar as seguintes:
— Modificações na relação emprego/produto. Anteriormente a performance destes dois
fatores mantinha natureza positiva. Em caso de crescimento do produto, o
emprego também crescia, em caso contrário o emprego acompanhava a queda do
produto. Sendo que o reaquecimento da produção impulsionava o emprego.
Atualmente a situação mudou. Nos períodos recessivos o emprego cai mais
drasticamente que o produto; e quanto este se reanima, o emprego não sofre
alteração, e se há alguma é de forma precária.
— Políticas
governamentais que estimulam a flexibilização do trabalho. Ou seja, a perda das
garantias institucionais dos direitos trabalhistas, fruto de lutas políticas e
sindicais históricas. Ocorre uma paulatina substituição do direito ao trabalho
pelo direito civil ou comercial, ocasionando o desamparo legal dos
trabalhadores. A injustiça social é institucionalizada pelo tratamento
formalmente igual dispensado a indivíduos que ocupam lugares sócio-econômicos
absurdamente desiguais. Constata-se uma declarada resistência estatal contra as
entidades sindicais dos trabalhadores, e inversamente, uma benevolência que
inclui subsídios, reduções de tarifas obrigatórias e correlatos às organizações
patronais.
— Perda do poder de compra dos salários reais. O
trabalho torna-se incapaz de prover uma existência digna e ascender em direção
a uma qualidade de vida superior. Como instrumento renovado a serviço da
racionalidade do capital, no que tange ao rebaixamento dos custos da
mão-de-obra, comprova-se a eficácia dos métodos de flexibilização globais dos
mercados de trabalho.
— Agravamento da
exclusão social, na proporção em que a população submetida à pobreza cresce
mais rapidamente que a população total. A atrofia do setor informal intensifica
a precariedade do já empobrecidos, considerados supérfluos para o funcionamento
do sistema capitalista atual. Se no passado havia a possibilidade destes
contingentes serem considerados como um exército industrial de reserva,
atualmente limitam-se a ser considerados prescindíveis, pois não se verifica
mais a simbiose existente no passado entre o setor informal e o formal, ou
entre o setor “arcaico” e o “moderno”.
— As
privatizações e as políticas de desregulamentação que deterioram os níveis de
emprego e das condições de trabalho. As privatizações provocam a suspensão ou
cobrança de serviços sociais anteriormente gratuitos. Relacionado ao que foi
dito, a diminuição das verbas orçamentárias destinadas à educação, saúde, previdência
social, dentre outras.
— A vertiginosa depredação dos recursos
naturais em benefício das grandes empresas nacionais e transnacionais. Esta
deterioração ambiental, sob as vistas grossas dos Estados e estimulada por
eles, provoca diretamente a pauperização de significativos contingentes
populacionais do campo, com o enfraquecimento dos solos, o envenenamento ou o
definhamento dos lençóis freáticos, a destruição de florestas, etc.
V) A globalização econômica
alavanca a globalização democrática? Este é um equívoco baseado na crença de que o
período atual vivido pelos países do Leste Europeu constitui-se como uma
“transição à democracia”. Provavelmente o processo realmente deve estar
acontecendo em alguns países, e eleições devem estar se institucionalizando em
muitos.
Mas o fato de existir
processo eleitoral não significa que haja de fato democracia. A participação
democrática plena pressupõe inclusão, ao contrário da pobreza que implica
exclusão. A cidadania exige sujeitos autônomos, em situação de igualdade, com
elevada auto-estima e senso de responsabilidade. A exclusão social é marcada
por baixa alta-estima, insegurança frente ao desemprego ou subemprego, temor
aos desmandos policiais ou ainda impotência diante das catástrofes que assolam
as áreas precarizadas: inundações, violência, crime organizado, etc. O
comprometimento do indivíduo limita-se ao círculo familiar e vizinhos, e o
direito à informação inexiste, limitando a liberdade de escolher alternativas.
A cidadania transforma-se em clientelismo. A fragilidade das condições de vida
faz com que a segurança seja erguida como valor máximo e as intervenções
messiânicas de um deus ex máquina são esperadas na resolução dos
próprios problemas. A “ruptura do pacto social” direciona os excluídos para o
estabelecimento de relações diretas com os que detêm o poder, na esperança de
resolução dos seus problemas básicos. O resultado é o florecimento do
caudilhismo, a troca do voto por favores imediatos, enfim, a perda da
importância do direito de votar. E isto não está circunscrito aos setores mais
pobres da população. Verifica-se ainda nos mais elevados extratos de riqueza,
prestígio e poder. A troca de apoio político pela obtenção de ganhos
econômicos; o uso da influência corporativa para forçar a tomada de determinadas
decisões; a ameaça de fuga de capitais, etc.
VI) A globalização provoca a gradativa saída de
cena do Estado nacional ou, pelo menos, uma diminuição da relevância deste?
Esta crença demonstra a semelhança entre a ideologia da globalização e o neoliberalismo.
Grosso modo, esta idéia pode ser resumida nos
seguinte termos: o desenvolvimento mundial dos mercados ocorre simultaneamente
ao encolhimento dos Estados-Nações; as atividades econômicas, culturais e de
consumo se desterritorializam, e por causa disso, acabam minando a autoridade
estatal. Mas a concepção do progressivo desaparecimento do Estado não é nova. O
anarquismo e o socialismo a abordaram,
evidentemente sob prismas diversos. O neoliberalismo e a ideologia do
globalismo a retomam apesar das óbvias constestações à mesma, as quais veremos
a seguir, segundo Vilas apud
Alves.
— Os diversos territórios dos
Estados e a demarcação dos limites e frontreiras continua importante no mundo
globalizado. Persiste a distinção nacional/territorial no que se refere à força
de trabalho, às condições de salário e emprego, bem como aos benefícios às
corporações globais, prosseguindo a intervenção política dos Estados em todos
estes casos.
Continua destacada a diferenciação territorial dos
Estados e a permanência das fronteiras estatais para a delimitação no âmbito
nacional de preços específicos
relativos às mercadorias de circulação transnacional diminuta: tarifas
nacionais, preços na indústria de construção, dentre outros. Além disso, os
recursos políticos e militares dos
Estados permanecem enquanto meios estratégicos para a consolidação e extensão
dos mercados econômicos e comerciais.
— O componente estatal dos mercados globais
contemporâneos é o maior de todos os tempos. A fragmentação da ex-União
Soviética e o desmembramento na região balcânica multiplicou aceleradamente, a
partir de 1990, a quantidade de Estados-nações, e também a descentralização do
poderio militar nuclear. No decurso dos anos 1990 o número de instituições
internacionais, tais como a ONU, o Banco Mundial e o Fundo Monetário
Internacional se avolumou numa velocidade comparável aos dos anos 1960, durante
a independência dos países africanos e asiáticos.
É fora de dúvida que o grupo de instituições
“supra-estatais” cresceu significativamente na última metade do século XX;
junta-se a ele uma variedade cada vez maior de entidades não governamentais de
alcance global que contribuem para aumentar a complexidade do cenário político
do mundo.
Fala-se, além disso, do advento de uma “classe
capitalista transnacional” composta pelos executivos das empresas
transnacionais, as burocracias estatais globais, os políticos e a
intelectualidade vinculada ao capitalismo global, e os setores consumistas
privilegiados.
— Ocorrem transformações importantes no relacionamento
e nos atritos entre Estado e Mercado. A relação entre Estado e Mercado sempre
apresentou uma grande diversidade, e a natureza, sentido, abrangência,
limites, instrumentos e metas desta relação são determinados pelas forças que
alavancam a uns e outros.
A partir das Grandes Navegações o globo viu desfilar
sucessivamente o estatismo mercantilista, o liberalismo dos “burgueses
consquistadores”, o intervencionismo imperialista do final do século XIX, o
livre-cambismo dos anos 1920, o intervencionismo keynesiano e social-democrata,
e, finalmente, o retorno às virtudes do mercado através do neoliberalismo. Nos
dias atuais o que acontece não é a extinção do Estado, mas uma nova articulação
deste com o mercado e suas forças, e um reconfiguração de suas tarefas
relativas ao capital.
O cerne do problema não é o desaparecimento do Estado
nacional, submerso no âmbito mercantil global, mas sim, que espécie de
relacionamento está se desenhando entre o Estado e as instituições
supra-estatais e o mercados globalizados.
— Continuam públicos e notórios os favores e serviços
que o Estado presta ao capital. Isto é, conferir segurança à propriedade
capitalista, produzir economias externas para a acumulação privada, referendar
a sociedade estruturada pela hegemonia do capital, por meio da educação, meios
de informação e similares.
O Estado na atualidade transforma as formas,
abrangências e tipos de relacionamento com o Mercado para fortalecer o
redesenho das economias regionais, a sua crescente abertura externa, no sentido de integrá-las aos movimentos
globais do capital. Ou seja, o Estado atua no interesse dos setores mais
vinculados aos movimentos da globalização para consolidar o lugar destes no
mercado e impulsionar seus respectivos projetos, visões e metas.
— A globalização das forças, dos interesses e dos
capitais é fruto dos mercados e também conseqüência da atuação do Estado. O
período contemporâneo da mundialização financeira exige uma reconfiguração no
propósito da atuação estatal. Esta reconfiguração ocorre em relação a
determinados personagens e objetivos. Modifica-e a referência social e política
da atuação do Estado, permitindo-se alterações nos tipos de intervenção
estatal. A crise da dívida externa, no princípio dos anos 1980, na América
Latina e Caribe, e a forma em que foi
negociada, estão na base desta reconfiguração: o Estado assumiu a
responsabilidade pela dívida externa privada das empresas e a transformou em
dívida pública. As subseqüêntes contrações de empréstimos externos aumentou a
subserviência dos Estados nacionais diante dos mercados financeiros, credores
desta dívida.
Neste novo quadro, fortaleceu-se o poder decisório e
a importância política das instituições estatais mais próximas destes mercados.
Ou seja, Bancos Centrais, ministérios ou secretarias de finanças, etc. por sua
vez, diminui-se o status dos ministérios ou secretarias do trabalho e da
indústria e entidades estatais ligadas ao bem-estar e à previdência social,
dentre outros.
— Pode-se,
então, falar na diminuição da iniciativa do Estado nas atividades econômicas?
Com certeza, constata-se um decréscimo da participação do Estado na economia.
Entretanto, cumpre analisar mais detidamente o fenômemo. Esta diminuição é mais
acentuada nas economias periféricas, nas quais o Estado possui grande
capacidade de intervençao direta e indireta, até mesmo a “propriedade de
ativos”. A chamada diminuição do Estado
não resulta em retrocesso no seu papel legitimador da hegemonia de atores
específicos.
No desenvolvimento do sistema capitalista repete-se
um fato de tempos em tempos: cada vez que as atividades econômicas entram
crise, por conta da especulação anárquica dos mercados, é a intervenção dos Estados-nações que
possibilita os meios para encontrar a solução. Isto é o que aconteceu nos anos
de 1929, 1987 e 1994, para ficar em datas mais ou menos recentes. Grosso modo,
sempre que a economia se encontra num momento de transição, tendo em vista as
modalidades de acumulação dominantes, a virada para a modalidade seguinte
torna-se factível pela atuação estatal, direcionada pelos interesses das novas
forças econômicas, para que estas quebrem com o auxílio dos recursos do Estado
a ordem anterior e assumam a hegemonia no mercado.
— A Argentina
como paradigma da nova modalidade de intervenção do Estado na economia. A nação
platina é na atualidade um dos exemplos mais dramáticos da nova modalidade de
intervenção estatal nas atividades econômicas e da política de integração à
globalização financeira.
Por meio das privatizações, o Estado,
atabalhoadamente, desvinculou-se das empresas de bens e serviços que havia
construído, ou que por motivos vários tivesse sido proprietário. Formalmente o
Estado diminuiu e simultaneamente este realiza intervenções no mercado cambial,
fixando em lei a paridade do Peso em relação ao Dolar, o que determina quais
setores da economia sobreviverão às pressões da economia globalizada e quais
setores sucumbirão inexoravelmente. Por fim, o Estado sob a tutela das grandes
corporações, atua no mercado de trabalho destruindo as leis que protegiam a
classe trabalhadora.
— O principal
é que o cerne político do Estado, isto é,
a coação, encontra-se a serviço da lógica do capital globalizado, e não
se trata apenas da realização estatal de políticas específicas. Além disso, a
reconfiguração das funções do Estado possibilita a constituição de blocos
econômicos como a União Européia, o Nafta e o Mercosul, dentre outros. Tais
espaços de circulação transnacional do capital não existiriam sem a atuação do
Estado, que intervém no interesse das grandes corporações em detrimento dos
trabalhadores da cidade e do campo, das camadas médias, dos consumidores, etc.
Nesta época na qual o capitalismo alcança horizontes
de circulaçâo inéditos e no momento em que a especulação financeira
desestrutura mercados e países, é nesta época que se faz notar o “Grupo dos
Sete” com suas determinações e regulamentações para os mercados transnacionais
e as inversões globais do capital.
Ao contrário da ideologia da extinção paulatina do
Estado-nação, o G-7 não congrega empresários, executivos de transnacionais e
mega-investidores. O G-7 reúne chefes de Estado e de governo e a alta burocracia estatal dos países
capitalistas mais industrializados do planeta. Ou seja, Estados Unidos, Japão,
Alemanha, Grâ-Bretanha, França, Canadá e Itália. Nos fóruns do G-7 são
delineadas medidas, mudanças e projeções que influenciam a estratégia dos
especuladores financeiros, e que direcionam o movimento dos capitais.
Simplificando um pouco, pode-se afirmar que G-7 é “instância inter-estatal de governo
colegiado dos mercados globalizados”.
Conclui-se, assim, que os Estados e a política não
são desprezíveis nestes tempos de globalização, levando-se em conta o perpétuo
interesse e os capitais invertidos pelas elites globalizadas na contínua
apropriação política da máquina estatal.
Constata-se que ideologia da globalização é uma
ideologia retrógrada que obscurece os fatos para impossibilitar o desejo de
superá-los. Semelhante a todo pensamento conservador, seleciona
arbitrariamente a realidade conforme as necessidades do poder, subserviente a
sua manutenção e predomínio. Pretende ser exatamente como um inexorável
desdobramento do real, e como obra intrínseca do desenvolvimento tecnológico,
oculta o fato de que é efetivamente resultado de determinados projetos, com
metas e demandas específicas.
A ditadura do mercado e do lucro pecuniário são
privilegiados acima de qualquer outro valor, enaltecidos como a materialização
da razão e do progresso. Isto apresenta-se como modernidade, e inclusive
"pós-modernidade"; de fato, trata-se de um retorno às formas mais
perversas e degradantes dos primórdios do capitalismo. A proclamação desta
ideologia vem relacionada normalmente por referências metafóricas à iminência
da entrada no terceiro milênio. Esta alegoria cumpre o papel de semear a
confusão junto aos cidadãos incautos; a angústia de se deixar escapar a chance
de penetrar no portal histórico da globalização, ou seja, por outro reino de mil anos, é extremamente forte. inclusive por que não
haverá, neste futuro luminoso, dentre
os contemporâneos, nenhuma testemunha para comprovar a exatidão destas
professias. Mas não é preciso esperar tanto tempo. Os enunciados desta
ideologia conservadora não estão referendados pela história e tampouco pela
análise da atualidade; contrapostos aos fatos, em sua maioria, mostram-se
pálidos, quando não enfraquecidos,
perdendo qualquer relevância. Ou seja, limitam-se a equívocos.
2.2.5. A GLOBALIZAÇÃO COMO MUNDIALIZAÇÃO DO CAPITAL
A teoria marxiana, no que se refere à origem e ao desenvolvimento do
modo de produção capitalista, o considera também como um “processo
civilizatório” de natureza transnacional. Desde o seu princípio, as relações,
os processos e as estruturas que o configuram desdobram-se em escala mundial. A
chamada acumulação primitiva, que abrange as grandes navegações, os novos
descobrimentos, as guerras de conquista, o mercantilismo, a pirataria, o
comércio de escravos, as muitas formas de trabalho forçado, constitui-se num
fenômeno que se alastra em âmbito global, se bem que concentrado em algumas
metrópoles e colônias. Em decorrência do desenvolvimento do capitalismo,
intensificam-se e universalizam-se as forças produtivas e as relações de
produção, abarcando o capital, a tecnologia, a força de trabalho, a divisão do
trabalho social, o mercado, o planejamento, a violência, o direito, as
instituições jurídico-políticas, as ideologias e outras manifestações e
mediações da vida social. Estas forças produtivas e relações de produção
consolidam-se tanto nos processos de concentração do capital, ou seja,
reinversão permanente de ganhos, lucros ou mais-valias, quanto na centralização
do capital, ou seja, incorporação de outros capitais e iniciativas. A
concentração e a centralização constituem a base do colonialismo e do
imperialismo, o qual se materializa em monopólios, trustes, cartéis,
multinacionais e transnacionais, em um processo de desenvolvimento desigual e
combinado, que acaba por impor a todo o globo o sistema capitalista (IANNI,
2001, 207).
A partir do início do século XVI, e cada vez mais nos seguintes, e
ganhando muito mais velocidade no século XX por meio das tecnologias
eletrônicas, em seu percurso o capitalismo continuamente espalha-se pelo mundo
inteiro.
Muitos estudiosos ressaltaram a importância no âmbito
da teoria marxiana, no que se refere à compreensão do desenvolvimento
capitalista, das concepções presentes no célebre Manifesto Comunista.
Dentre eles, chamamos a atenção para: Octavio Ianni (IANNI, 2001,208), Giovanni
Alves (ALVES, 2000,) Paulo Balanco (BALANCO, 2000) e Aldo Romero (ROMERO,
2002).
Mesmo que se reconheça certa precariedade na obra
citada, enquanto documento analítico, pois os seus autores pretendiam, principalmente, dar publicidade a idéias
programáticas incentivadoras da organização
política operária, pode-se reconhecer neste documento um valor ímpar:
ele conseguiu vislumbrar o capitalismo como modo de produção que abarcaria toda
a humanidade em seu desenvolvimento:
“Pela exploração do mercado mundial, a burguesia tornou cosmopolita a
produção e o consumo de todos os países. Para grande pesar dos reacionários,
retirou da indústria sua base nacional. As antigas indústrias nacionais foram
aniquiladas e ainda continuam a ser nos dias de hoje. São suplantadas por novas
indústrias cuja introdução se torna uma questão de vida ou morte para todas as
nações civilizadas: essas indústrias não empregam mais matérias-primas locais,
mas matérias-primas provenientes das mais longínquas regiões, e seus produtos
acabados não são mais consumidos somente in loco, mas em todas as partes do
mundo, ao mesmo tempo. As antigas necessidades, antes satisfeitas pelos
produtos locais, dão lugar a novas necessidades que exigem, para sua
satisfação, produtos dos países e dos climas mais remotos. A auto-suficiência e
o isolamento regional e nacional de outrora deram lugar a um intercâmbio
generalizado, a uma interdependência geral entre as nações. Isso vale tanto
para as produções materiais quanto para as intelectuais. Os produtos
intelectuais de cada nação tornam-se um bem comum. O espírito nacional tacanho
e limitado torna-se cada dia mais inviável, e da soma das literaturas nacionais
e regionais cria-se uma literatura mundial.”(MARX & ENGELS, 2002,
29-30).
A teoria marxiana baseia-se na evidência de que a sociedade é
fundamentalmente dinâmica, complexa e contraditória, envolvendo relações,
processos e estruturas de dominação política e apropriação econômica,
produzindo no seu bojo movimentos de integração e fragmentação. Sucede que a
mesma realidade social que fabrica identidades e diversidades fabrica
desigualdades e contradições. Deste modo a teoria marxiana apreende não apenas
o movimento, a transformação, a mudança, mas principalmente a ruptura e
revolução. Em âmbito local, nacional, regional ou mundial, os fenômenos sociais
estão sempre em movimento, permeados por contradições, abarcando indivíduos,
famílias, grupos, classes, setores de classes, etnias, religiões, línguas e
outras fatores determinantes da sociedade. Toda esta complexidade intrínseca à
globalização pode representar um incomensurável caleidoscópio de forças e lutas
sociais, surpreendente, pouco conhecido e clamando por interpretação; com
inúmeras facetas conhecidas ou supostamente conhecidas, mas que assumiram,
inesperadamente, outra significação (IANNI, 2001, 209).
O célebre Manifesto pode nos fornecer pistas para o entendimento dos
primórdios da expansão capitalista. A partir de agora nos apoiaremos no rico
diálogo estabelecido entre o sociólogo brasileiro Giovanni Alves e o pensamento
de Robert Brenner, István
Mészáros, David Harvey e, particularmente, François Chesnais, economista francês
de extração marxiana, para a apreensão dos desdobramentos caleidoscópicos deste
novo patamar do capitalismo mundial.
Verifica-se por meio de dados econômicos gerais dos anos de 1990 que as
atividades econômicas permanecem ainda numa longa depressão intercalada por
períodos de desaceleração, recessão e crescimento não-sustentado das economias
capitalistas. Tendo em vista esta situação é que Chesnais, segundo Alves,
estabelece a conclusão de que a economia do globo alcançou um novo regime de
acumulação do capital, que provocou significativas modificações no
funcionamento do capitalismo. Chesnais batiza esta nova fase de “regime de
acumulação predominantemente financeira”, que constitui a “mundialização do
capital”. Esta etapa, segundo Chesnais, representa muito mais do que um mero
período a mais no desenvolvimento de internacionalização do capital iniciado há
cem anos. (ALVES, 2001, 51).
Segundo Chesnais, apud Alves, as características mais acentuadas
do capitalismo na década de 1990, que configuram o “novo regime de acumulação
predominantemente financeira”, conhecido como mundialização do capital são:
taxas de crescimento do PIB insignificantes, mesmo em países capitalistas
desenvolvidos, como por exemplo, o Japão; deflação; instabilidade conjuntural,
caracterizada por contínuos abalos monetários e financeiros; elevados níveis de
desemprego estrutural; exclusão de vastas regiões no que se refere ao intercâmbio
comercial; concorrência crescente e conflituosa entre Estados Unidos, Europa
Ocidental e o Japão.
As atividades econômicas capitalistas em todo o mundo aparentam estar no
bojo de uma etapa depressiva de longa duração. E de acordo com Chesnais,
exclusivamente por meio de choques externos poderia se libertar desta situação.
Entende-se, por choques externos, por exemplo, a deflagração de guerras.
As medidas internas ao capitalismo, principalmente nos países centrais,
objetivam menos ao processo de acumulação representada por investimentos que
gerassem nova capacidade produtiva do que a “salvação/manutenção das posições
adquiridas” – cujo aspecto financeiro de caráter rentista as expressam de forma
cabal.
O que caracteriza o novo regime de acumulação capitalista, portanto, é o
seu caráter rentista e parasitário. Ou seja, encontra-se de forma crescente
subjugado às demandas específicas das novas modalidades de centralização do
capital na forma dinheiro, principalmente o chamados fundos mútuos de
investimento e os fundos de pensão. O poderio deste capital na forma dinheiro é
mantido por instituições como o Fundo Monetário Internacional e o Banco
Mundial, e também pelos Estados mais ricos do globo, seja qual for o custo.
Quanto à gênese política e estrutural da mundialização capitalista,
pode-se afirmar que é fundamental que se leve em conta simultaneamente os
aspectos políticos e econômicos para que se apreenda a essência deste fenômeno.
De fato, uma acumulação principalmente rentista, é proveniente de alterações
qualitativas nas relações de poder entre capital e trabalho, bem como entre o
capital e o Estado, em sua versão denominada de Estado de Bem-Estar Social.
O fato histórico que demarca a mundialização do capital é a recessão dos
anos de 1974 e 1975, o advento desta “longa crise rastejante”. Desde então, o
capital buscou, das mais diversas maneiras, quebrar as resistências sociais, as
leis e regulamentações no interior das quais se considerava factível
aprisioná-lo, na esperança de poder domesticá-lo. O capital obteve sucesso, se
bem que de forma diferenciada, de acordo com cada país.
Os elementos principais que contribuíram para a nova estratégia do
capital a partir da década de 1970 foram:
I)
A força própria do
capital acumulado devido ao longo período dos chamados “trinta anos gloriosos”.
II)
Os
aperfeiçoamentos tecnológicos que as grande empresas transnacionais aplicaram
no seus próprios interesses, com o objetivo de alterar as relações entre os
trabalhadores assalariados e os sindicatos, e também, com o intuito de vencer a
concorrência diante das empresas japonesas.
III)
Uma sustentação
básica promovida pelos próprios Estados capitalistas, por meio de políticas de
liberalização, desregulamentação e privatizações.
Donde se conclui que os
“trinta anos gloriosos” – a etapa fordista – contribuíram para a crença
social-democrata na possibilidade de domesticação do capital no nível das
formas de regulamentação nacionais. Os novos avanços do capital na produção e
na política, desde a crise capitalista da década de 1970, forneceram os
ingredientes que ajudaram a diluir a ilusão da social-democracia clássica.
Considerando o nível da
objetividade intrínseca ao desenvolvimento da acumulação capitalista os “trinta
anos gloriosos” fortaleceram o capital industrial e financeiro em decorrência
da extensa fase de crescimento, no interior da qual se desenvolveram as novas
tecnologias relacionadas à Terceira Revolução Tecnológica (não exclusivamente
isso, mas fundamentalmente o mercado financeiro).
Por meio da chamada “revolução
conservadora”, ou seja, por intermédio das políticas neoliberais, da
liberalização, desregulamentação e da privatização, com o enaltecimento do
“mercado”, é que o triunfo do capital mostrar-se-ia pleno. A ascensão de
Thatcher, no Reino Unido, e Reagan, nos Estados Unidos, proporcionaram uma
importância histórico-concreta ao declínio da ilusão social-democrata e ao
fortalecimento da posição do capital industrial e financeiro, conquistada na
“idade de ouro” do capitalismo global.
Desde então
acontecem transformações de qualidade nas relações de poder entre o capital e o
trabalho, bem como entre o capital e o Estado, em sua modalidade de “Estado de
Bem-Estar Social”. Surge uma inédita orientação ao movimento de
internacionalização do capital, com este readquirindo plena liberdade de
movimentos e, fundamentalmente, liberdade para atuar em todo o globo, liberdade
que não possuía desde 1914.
A partir deste
patamar é que a ideologia da globalização, implícita nas políticas neoliberais,
é colocada como norteadora da estratégia capitalista e como solução para a
crise dos anos de 1974 e 1975. Simultaneamente desenvolve-se o mito da técnica,
que enaltece a tecnologia utilizada pelas empresas transnacionais, por meio do
novo complexo de reestruturação da produção, no sentido de alterar suas
relações com a classe trabalhadora e os sindicatos.
Deste modo, o
“complexo de reestruturação produtiva”, e, fundamentalmente, as políticas
neoliberais, que se disseminam a partir da década de 1980, possuíam não só a
clara intenção de aniquilar as organizações sindicais, bem como as demais
instituições e relações sociais que dificultassem a lógica da valorização do
capital, implantadas a partir do primeiro governo de Roosevelt, nos EUA e da
vitória sobre Hitler, na Europa Ocidental.
Na transição da
década de 1970 para a década seguinte, no interior da ofensiva do capital no
setor produtivo (a “reestruturação produtiva”) e da ofensiva do capital na
esfera política (o neoliberalismo) é que acontece o ponto de partida para a
mundialização do capital.
Sob determinado
ponto de vista, as lideranças políticas e sindicais de esquerda da Europa
Ocidental e nos Estados Unidos (Sociais-democratas e comunistas) abriram espaço
para o fortalecimento dos neoconservadores, por terem limitado o "potencial verdadeiramente democrático, e,
por isso, anti-capitalista, dos grandes movimentos sociais – operários e
estudantis – que demarcaram a década de 1968-1978 na Europa, assim como nos
Estados Unidos." (Chesnais apud Alves,1999, par.29).
De fato, os
neoconservadores se aproveitaram do refluxo dos movimentos sociais na passagem
da década de 1970 para a seguinte. Cumpre destacar neste raciocínio a interação
entre o aspecto econômico e o político, para percebermos a formação do novo
patamar da acumulação capitalista chamado de “mundialização do capital”.
A vitória do
“mercado” não existiria sem as reiteradas medidas políticas de órgãos
governamentais dos Estados capitalistas centrais (principalmente aquelas vindas
dos membros do G7). Ou seja, a íntima articulação entre o político e o
econômico possibilitou o aparecimento dos mecanismos e formas dominantes desse
regime.
No que tange às
operações industriais e financeiras o que se
conhece como mundialização do capital fundamenta-se não na mundialização das
trocas – trocas de mercadorias e serviços – as quais nas décadas de 1980 e 1990
cresceram muito lentamente, menos do que o crescimento dos anos de 1960 e 1974,
mas, sobretudo, pela mundialização das operações do capital, nas modalidades
industrial e financeira. De fato, o que apresentaram crescimento nas décadas de
1980 e 1990 foram os investimentos diretos e os rendimentos de capital, não se
levando em consideração os investimentos de portfólio realizados no
mercado financeiro.
Assim, estas
operações mundializadas do capital (industrial e financeiro) é que constituem o
exato sentido da chamada “globalização”, ou seja, a mundialização do capital.
Estima-se que as
corporações transnacionais, tais como matrizes, filiais, ou empresas em regime
de subcontratação) englobam dois terços do comércio mundial de bens e serviços.
Em torno de 40% do intercâmbio internacional caracteriza-se como sendo
“intragrupo”.
A “globalização”
alterou as condições de interdependência econômica entre os países. Na década
de 1990, percebe-se a relevância dos “investimentos externos diretos” (IED),
mais do que as trocas. Inversamente a estas, o IED acaba moldando as estruturas
dominantes na produção e no comércio de bens e serviços. Assim, é o destaque
assumido pelo IED com suas características específicas que espalha no mundo
inteiro um padrão global de inovações produtivas (ou seja, o toyotismo), com
poder de configurar um padrão único à estrutura produtiva e de comércio
capitalistas nos quatro quadrantes do globo.
Além do mais, a
reprodução geográfica do IED é acompanhada pela globalização dos bancos e
outras instituições financeiras, o que facilita as fusões e aquisições
transnacionais. Desta maneira, o capital bancário e financeiro transnacionais
seguem e alavancam as atividades do capital industrial transnacional.
A partir da década
de 1990, a interdependência econômica entre os países, além da expansão dos
IED, ocorre, em primeiro lugar, em decorrência do constante crescimento dos
fluxos de trocas “intrafirmas”, também devido ao aumento de novos tipos de
acordos inter-empresas no que se refere à transferência mundial de tecnologias
(não se limitando à concessão de franquias e do comércio de patentes), o que
possibilita que firmas e certos países capitalistas tenham acesso a
conhecimentos tecnológicos de ponta, e, finalmente, por causa do aparecimento
de inéditos tipos de empresas multinacionais estruturadas em “rede”.
Desta maneira, a
“globalização” – ou a mundialização do capital – é acima de tudo a
“globalização do capital” e não somente a “globalização das trocas”. Em função
disso, não se pode limitar de forma simplista, o novo período de
internacionalização do capital a uma mera continuidade do processo de
ocidentalização do globo, que teve início no século XV.
No seu início a
internacionalização do capital aparece enquanto “globalização das trocas”, do
simples comércio de mercadorias, comandando do Ocidente para o Oriente. É a
configuração de um mercado mundial que alguns consideram como a “globalização”
propriamente dita. Mas, a “globalização” ou, a mundialização do capital, vai
constituir o novo período de internacionalização capitalista. Isto é, a
globalização dos investimentos e da produção. E ao se dizer “mundialização do capital”, entende-se não só o capital produtivo
aplicado na indústria e serviços, mas também o “capital concentrado que se
valoriza conservando a forma-dinheiro” (ALVES, 1999, par.38).
Assim, a
mundialização capitalista demonstra que nos encontramos frente a uma
“globalização de uma massa de dinheiro que se valoriza”, tanto o dinheiro que
se valoriza por meio da produção de mercadorias, quanto o dinheiro que se
valoriza mantendo a forma dinheiro, ou seja, o dinheiro dos mercados
financeiros.
O processo da
transmutação do dinheiro em capital, isto é,
D-M-D’, ou D-D’, condiciona as estruturas produtivas e comerciais de
bens e serviços (o que resulta em globalização das relações sociais, políticas
e culturais). Sob o domínio da mundialização do capital materializa-se
completamente a idéia presente no Manifesto de 1848, segundo a qual no decorrer
de sua história o capital constrói um mundo à sua imagem e semelhança.
A seguir
relacionaremos as principais características da mundialização do capital.
I)
a mundialização
do capital é demarcada pelo poder ascendente do capital-dinheiro muitíssimo
concentrado, que ganha vulto principalmente entre os anos de 1985 e 1995.
Segundo Chesnais, apud Alves, o termo capital-dinheiro, enfatiza o
capital industrial, mas sobretudo o capital financeiro, isto é, aquele capital
que obtêm valorização mantendo a forma-dinheiro. Na atualidade o mercado
financeiro é globalizado e apresenta diversidade de características e de
instrumentos. O fundamental resume-se no enfoque que se pretende utilizar na
análise deste fenômeno.
II)
Constata-se a
predominância do investimento e da produção em relação à troca.
III)
Intensifica-se a
centralização financeira e a concentração industrial do capital nas órbitas
nacional e internacional (tais como os bancos e os grupos que possuem fundos
mútuos e fundos de pensão).
IV)
Verifica-se um crescente
entrelaçamento entre os capitais nacionais e nota-se a constituição por meio
das inversões internacionais cruzadas e das fusões e aquisições
interfronteiras, dos oligopólios transnacionais numa variedade de ramos
industriais e de serviços.
Em relação às
mudanças de qualidade no ciclo único do capital existem três modos de
existência deste que foram explicitados por Marx, segundo Alves. Ou seja, o
capital que produz valor e mais-valia (capital invertido na indústria em
sentido lato); o capital-mercadoria, isto é, o capital comercial (atualmente, a
grande distribuição concentrada); o capital-dinheiro que se valoriza por meio
de empréstimos e aplicações.
Esses três modos
de existência do capital podem ser apreendidos não como momentos de um ciclo
único, condicionados à lógica de valorização do capital produtivo, mas
sobretudo, segundo Marx, enquanto
elementos de uma totalidade, ou seja, enquanto diferenciações dentro de
uma unidade.
Segundo Alves, a
diferença de enfoque entre Chesnais e Michalet a respeito do capital como
unidade diferenciada auxilia a compreensão do conceito de “mundialização do
capital” (Charles Albert Michalet, com sua obra “O Capitalismo Mundial”, de
1976, foi um dos economista marxistas franceses que mais influenciou Chesnais).
Chesnais afirma
que Michalet acreditava que os três ciclos orbitavam ao redor do ciclo do
capital produtivo, que constituiria o núcleo central da mundialização do
capital. Segundo Michalet, a internacionalização do ciclo do capital, percebido
enquanto ciclo único, comporia os ciclos do capital mercantil e capital
monetário “como momentos subordinados da ascenção do capital produtivo”. O
mérito de Michalet, segundo Chesnais, teria sido o de conceber a
internacionalização do capital nos seus três aspectos mais significativos: “o
intercâmbio comercial, os investimentos produtivos no exterior e os fluxos de
capital monetário, ou capital financeiro”. Sendo que a transformação da
economia internacional em economia mundial sucede quando o capital produtivo
apresenta-se como elemento integrante da mundialização do capital.
Partindo da
dinâmica do capital produtivo é que se deve analisar as relações mútuas
estabelecidas entre os três tipos fundamentais de internacionalização. A
dinâmica do capital produtivo comanda a criação de valor e riqueza. A produção
e circulação (ou produção e comercialização) manifestam-se imbricadas e, assim,
em decorrência, a produção e o comércio exterior. A análise torna-se mais clara
quando se diferencia a esfera da produção da esfera da circulação, e quando é
ressaltado entre elas uma “hierarquia epistemológica isenta de ambigüidades.”
Sob outro
ângulo, ao estudar o poderio cada vez mais forte do capital financeiro,
Chesnais defende a concepção de um declínio de um ciclo unificado de valorização
sob a hegemonia do capital industrial. Chesnais abraça uma outra abordagem
contida no pensamento de Michalet. Isto é, além do modelo da
internacionalização do ciclo do capital, concebido como único, fazendo parte
dos ciclos de capital mercantil e capital monetário como momentos subordinados
no seio da preponderância do capital produtivo, existiria um outro modelo: a
internacionalização de cada um dos três ciclos, analisados isoladamente, e cada
um deles apresentando características próprias. Chesnais enfatiza a
independência do capital mercantil e do capital monetário, que se fortalecem de
forma autônoma diante do capital industrial. Restando a este nenhuma
alternativa: ou intensifica a interconexão com o capital monetário, ou curva-se
à lógica deste.
Deste modo, a
hegemonia do capital industrial no bojo do ciclo unificado de valorização, de
acordo com Chesnais, é contestada pelo capital comercial, bem como, e
principalmente, pelo capital financeiro (segundo Alves, Chesnais, em seu livro
de 1994, “a mundialização do capital”, a preponderância do capital financeiro
ainda não está claramente exposta, considerando o modo de exposição daquela
obra).
Ou seja, o
capital comercial, em suas modalidades de maior concentração, incorporou um
grande poder de se posicionar como rival direto do capital industrial, tanto
pela apropriação de tarefas que eram de responsabilidade deste último, quanto
pela aquisição de parcelas da mais-valia, por meio do controle eficaz a jusante
da cadeia de valorização, ou seja, o acesso ao mercado. No que se refere ao
capital dinheiro, é mais evidente o fato. Ocorre o advento de uma situação na
qual é a dinâmica específica desta fração do capital que demarca a totalidade
das operações capitalistas atuais. Desta maneira, acontece o fortalecimento da
autonomia do capital-dinheiro diante o capital industrial, sendo que as
fronteiras entre ambos são determinadas exclusivamente pela viabilidade e pelos
prazos próprios de “um regime de acumulação rentista”.
Alem disso, o
regime de acumulação mundializado não se caracteriza apenas pelo lugar ocupado
pelas grandes indústrias, mas sobretudo pela posição das gigantescas
instituições financeiras bancárias, e também não-bancárias. As empresas
capitalistas de ponta tornam a ser, semelhante ao período entre as duas
guerras, aquelas que manifestam uma opção preferencial pela liquidez na
valorização de seus capitais. Isto é, que promovem a valorização dos seus
capitais mantendo a sua forma de capital-dinheiro.
Chesnais emprega
o termo “capital financeiro” com acepção diversa daquela utilizada por
Hilferding, na sua obra “capital financeiro”, de 1910 (Rudolf Hilferding,
economista social-democrata do início do século XX, tornou-se célebre ao
pesquisar a interconexão entre os bancos e a indústria. Chesnais se apropria e
amplifica com novas significações o conceito de “capital financeiro” (segundo
Alves, a única forma de capital que não foi objeto de estudo de Marx, apesar da
suas importantes observações sobre o “capital-dinheiro” e o
“capital-monetário”).
A modalidade de
capital financeiro predominante sob a mundialização do capital não se resume na
integração entre o capital de financiamento, de posse dos bancos, com o capital
industrial, das empresas transnacionais. Sendo que as instituições financeiras
que centralizam volumes significativos de capital-dinheiro, e que expandiram
quantitativa e qualitativamente, desde a década de 1980 são relacionadas a
seguir: grandes fundos de pensão por capitalização e fundos de aposentadoria
de origem anglo-saxõnica e japonesa; os grandes fundos de aplicação
coletiva privados e de gestão de carteiras de títulos (os Fundos Mútuos de
Investimento); os grupos de seguros, principalmente os invertidos na
"indústria" de pensões privadas e de aposentadorias complementares;
os gigantescos bancos multinacionais, mesmo que tenham perdido status no
ranking mundial do capital.
O que
caracteriza particularmente a mundialização do capital é a hegemonia do capital
financeiro como elemento autônomo frente ao capital industrial. As instituições
financeiras não-bancárias citadas anteriormente controlam quantidades
extraordinárias de capital-dinheiro, que em comparação com a performance dos
grandes bancos, parecem pequenas. Estes novos agentes financeiros com
características novas (inexistentes na época de Hilferding), são os que mais se
beneficiam com a mundialização financeira. Estas instituições financeiras não
perderam o interesse na indústria. Uma parcela considerável de seus imensos
ativos financeiros realiza-se em pacotes de ações. Estes são relativamente
importantes para comandar a política econômica e as opções de investimentos dos
grupos industriais relacionados.
É a chamada
“corporate governance”, ou seja, o também denominado “governo dos acionistas”.
Estas instituições financeiras não-bancárias são as que na maioria das vezes
direcionam as decisões de investimento e as características da exploração da
massa assalariada. Os grandes agentes financeiros das instituições financeiras
não-bancárias (Fundos Mútuos de Investimento e Fundos de Pensões, por exemplo)
são proprietários, representando uma parcela não desprezível no bojo de seus
ativos financeiros, de pacotes de ações de indústrias. Deste modo determinam as
estratégias de investimentos e as modalidades de exploração salarial. A chamada
re-engenharia industrial, cujo instrumento de trabalho é a “corporate
governance”, assume, por exemplo, uma importância decisiva na modificação
qualitativa da relação salarial.
Constata-se que
a modificação de qualidade das relações entre as partes diferenciadas da
“totalidade sistêmica”, que é o capital, provoca transformações na própria
constituição destas partes. O capital financeiro aparece como parcela do
capital que acaba por influenciar sobremaneira o capital industrial e
comercial, ou seja, o universo das operações do capitalismo atual.
Quanto a
natureza do capital financeiro, primeiramente é bom destacar que este sobrevive
das operações realizadas na esfera financeira, caracterizada por Marx como
sendo a qual “temos D-D’, dinheiro produzindo dinheiro, um valor se
valorizando, sem nenhum processo (de produção) que sirva de mediação aos dois
extremos" (Marx apud Alves, 2002). Nota-se, assim, uma abreviação
do ciclo capital-dinheiro ou do capital fictício. Partindo da dinâmica e
expansão do capital financeiro aparece e se desenvolve uma fração da burguesia
com características fundamentalmente rentistas, na acepção econômica do termo,
segundo a qual os ganhos desfrutados são provenientes de transferências
oriundos da esfera da produção e troca. Os ganhos rentistas podem ser
considerados como ganhos “secundários”, isto é, acontecem como “punção” ou como
dedução das categorias centrais de rendimentos (lucro, salário e os rendimentos
das camadas “independentes” criadoras de valor, tais como pequenos agricultores
e artesãos).
Os mecanismos
que possibilitam esta “punção” do capital financeiro sobre o montante da
riqueza gerada, ou seja, os mecanismos que viabilizam esta transferência de
riqueza do setor produtivo para o mercado financeiro, comandado por frações
burguesas rentistas e parasitárias são os seguintes: os títulos da dívida
pública; o capital-dinheiro de empréstimo; e as ações.
Os títulos da
dívida pública são o alicerce dos mercados financeiros da atualidade. Chesnais
citando Marx, afirma que "a acumulação do capital da dívida pública não
significa outra coisa, a não ser o desenvolvimento de uma classe de credores do
Estado, que são autorizados a recolher para eles certas somas do montante dos
impostos”. (Chesnais apud Alves, 1999, par.64).
O capital-dinheiro de empréstimo é aquele que se encontra ao
dispor de empresas o qual ocorre como dedução do lucro. Apesar do juro ser
apenas uma parte do lucro, ou seja, da mais-valia que o capitalista subtrai ao
operário, o juro manifesta-se no momento em que o tamanho dos mercados onde se
realizam as obrigações privadas e créditos bancários vão além de certo patamar,
acontecendo uma inversão de qualidade, como obra específica do capital,
enquanto a coisa primeira; nesta situação, o lucro, inversamente, que assume a
forma de lucro da empresa, surge como mero apêndice e complemento que se agrega no decorrer do processo
de reprodução. A forma fetichista e a representação fetichista do capital
alcançam seu esplendor. A expansão da esfera financeira, com a explosão financeira
durante a década de 1980, e as oscilações da década de 1990, propicia um
extraordinário crescimento do fetichismo, intrínseco às relações mercantis, mas
que ganha relevo alimentado pela importância que os mercados financeiros
assumiram na atualidade.
As ações são
títulos de propriedade que garantem direitos sobre uma parcela da mais-valia,
possibilitando ao seu detentor uma apropriação na forma de dividendos. A
ocorrência de múltiplos mercados de títulos industriais (as Bolsas de Valores),
possibilitam a compra e venda de títulos a qualquer hora dependendo apenas da
sua rentabilidade.
Em relação às
origens da financeirização, pode-se dizer que sucedeu uma recomposição
crescente de um volume de capitais que buscou valorização na forma financeira
tanto como capital-dinheiro de empréstimo, quanto capital para investimento em
ações nas Bolsas de Valores devido a alguns fatores.
Em termos
estruturais pode-se enfatizar o baixo rendimento dos investimos na indústria,
devido aos dilemas do regime de acumulação fordista que direcionou cada vez
mais uma grande quantidade de capitais a buscar valorizar-se na forma
financeira. Na metade da década de 1960, anteriormente aos choques do petróleo
e da recessão dos anos de 1974 e 1975, o mercado de eurodólares ganhava
expressão, estimulados pelos lucros não-repatriados, além daqueles não
investidos na produção, depositados pelas empresas transnacionais americanas.
Acrescente-se às
determinações estruturais provenientes da crise de superprodução capitalista,
da perda de lucratividade industrial a partir da metade dos anos de 1960, um
elemento político que de maneira crescente, provocou a ascensão do capital
financeiro. As transferências que ocorreram a partir do serviço da dívida
externa dos países subdesenvolvidos durante a metade da década de 1970
possibilitaram ao FMI e ao Banco Mundial, por exemplo, pressionarem em favor de
uma política monetária em benefício dos credores e direcionada para uma
liberalização e uma desregulamentação financeiras progressivas. O seu marco
sócio-histórico deu-se na “Revolução Conservadora” de Thatcher, no Reino Unido,
e Reagan, nos EUA, que contribuiu de maneira decisiva para alavancar a
mundialização da capital enquanto um novo regime de acumulação global com
hegemonia do capital financeiro.
Entretanto,
antes mesmo da chegada ao poder dos governos conservadores nos EUA e
Grã-Bretanha, a guinada monetarista, ocorrida no FED, sob a direção de Paul
Volcker prenunciaram, de certa maneira, a “Revolução Conservadora”: Chesnais apud
Alves, afirma que “desse período data a instauração de taxas de juros
positivas, acompanhadas transitoriamente por uma taxa de câmbio do dólar muito
forte, indispensável à instalação da "mercadorização" ou da
"titularização" dos títulos da dívida pública do governo federal, mas
também dos estados da Federação e dos municípios”. (ALVES, 1999, par.70).
De qualquer modo, na hora da virada monetarista do FED, os
fundos de pensão privados, segundo Chesnais,
que constituem os agentes mais expressivos do regime de finanças do
mercado mundializado, iriam além de um patamar no crescimento do volume da
poupança que centralizavam, procurando inéditas situações de aplicação
financeira que tornassem possíveis a valorização do dinheiro concentrado.
A “titularização” da dívida pública dos governos
capitalistas, que procuravam alternativas para financiar seus déficits públicos
sem grandes problemas políticos, produziram novos e rentáveis momentos de
aplicação dos fundos de pensão privados. Sendo que a explosão da dívida pública
dos países da OCDE não teria ocorrido
sem a “mercantilização” ou a “titularização” dos bônus do Tesouro e sua posse
pelos investidores, tanto nacionais quanto estrangeiros, como parcela de sua
carteira de ativos.
Na metade do anos de 1980 verifica-se uma expansão das
instituições financeiras ancorada na transferência para elas de uma parcela
importante da renda nacional da quase
totalidade dos países da OCDE (cerca de 20 a 25% dos gastos do
orçamentos e cerca de 3 a 5% do PIB segundo cada país).
Numa perspectiva metodológica, o novo período do capitalismo
global, a mundialização do capital, deve ser analisada tendo em vista a nova
posição do capital financeiro. Mas a preeminência metodológica do capital
financeiro no estudo da mundialização do capital não prescinde de considerar a
importância fundadora e essencial do capital industrial no desenvolvimento da
acumulação capitalista. Em primeiro lugar, devido ao volume de capital-dinheiro
que obtêm valorização no âmbito do setor financeiro ter ocorrido em decorrência
dos lucros não-reinvestidos oriundos dos êxitos da acumulação da indústria sob
o fordismo. E também em conseqüência da acumulação de riqueza no setor
industrial que a saturação dos mercados ganha relevância, considerando as
características da distribuição de renda no âmbito nacional e internacional,
engendrando assim, um estado permanente de superprodução. Desta forma, o volume
de capital-dinheiro valorizando-se no interior do setor financeiro advém dos
êxitos e fracassos do capital produtivo.
A interconexão das indústrias (o chamado “corporate
governance”) com o capital financeiro, nas suas mudanças de organização e
operação de valorização do capital, modificou a atuação do capital industrial
sob a mundialização do capital.
Deste modo, a grande indústria buscou a valorização do
capital no setor das finanças, seja para se contrapor aos procedimentos dos
grandes operadores, ou para obter lucros fáceis provenientes das finanças.
Posteriormente, no plano organizacional, as corporações capitalistas que atuam no
âmbito transnacional, mesmo que sejam chamadas de “empresas” ou “firmas”, na
verdade, são “grupos financeiros com características predominantemente
industriais”, que se diferenciam progressivamente pelas características
seguintes: tamanho; atuação global; formas de organização; poderio financeiro,
isto é, pela conquista privilegiada do acesso pleno aos mercados financeiros,
seja para nele impor suas determinações sem intermediação, ou para
desempenharem o papel de investidores financeiros. O cérebro dos grupos
industriais é a chamada sociedade holding. Ou seja, estas
“multinacionais de novo estilo”
referem-se a um universo mais amplo de atividades conexas, mas
gerenciadas com menor formalidade, cujo objetivo principal seria a de
possibilitar o desenvolvimento das
estratégias de concorrência globais e das posições do “núcleo” (core
organization) no interior da corporação. Esta não atinge suas metas somente
por meio do gerenciamento de sua produção interna e de suas transações de forma
mais eficaz, ou mesmo pelas suas estratégias tecnológicas de produção e
comercialização, mas, sobretudo “pelas naturezas e pela forma das relações
estabelecidas com as demais empresas”. Essa mutação na organização das
corporações constata a interdependência entre as finanças concentradas e a
grande indústria e comprova a evolução de qualidade do grau de financeirização
dos grupos que assumem tal forma. A holding possibilita o ingresso dos
grandes grupos nas finanças globalizadas. Comprova-se, assim, a relevância no
interior do capital produtivo, do poderio do capital rentista. Os grupos
industriais tornaram-se de forma crescente grupos financeiros, com
características industriais, mas com inserções diversas nos serviços
financeiros, destacando-se como operadores nos mercados de trocas. Surgem as
“empresas-rede” onde impera a confusão dos limites entre o “lucro” e a “renda”
na criação do lucro de exploração dos grupos. A nova modalidade de organização,
ou seja, as “empresas-rede”, é apropriado tanto para a proliferação das participações
minoritárias quanto para a expansão dos acordos de subcontratação e de
cooperação inter-empresas com parcerias de poder industrial diferenciado. Tendo
isto em vista, é que Chesnais apud Alves, enfatiza o crescimento das
características rentistas dos grupos industriais. Para se apreender o ingresso
da lógica da financeirização no setor de capital industrial cumpre sublinhar e
esclarecer a diferenciação entre o que pertence à esfera da criação da riqueza
e formação de excedente no interior de uma empresa e o que é próprio da esfera
da apropriação de valores já criados, de uma “punção” na atividade
produtiva e no excedente de uma outra empresa e à intromissão da cadeia de
valor desta. A partir da subcontratação industrial, que um determinado tipo de
empresa, em decorrência de seu tamanho e de seu poderio de mercado, pode “apropriar-se do excedente criado coletivamente no
seio de um conjunto de empresas trabalhando em rede”. Assim, chegamos
ao fim da exposição do que seria a mundialização do capital, entendida como um
novo regime de acumulação com a predominância da esfera financeira.
2.2.6. A GLOBALIZAÇÃO COMO PROCESSO CIVILIZATÓRIO
Nesta abordagem crítica e radical da globalização, elaborada por
Giovanni Alves, este fenômeno contraditório e complexo apresenta-se como uma
ideologia que expressa a mundialização do capital, e, simultaneamente
constitui-se como um processo civilizatório. Isto é, um produto da história
humana, na qual a humanidade, muitas vezes de forma alienada, inventa as
possibilidades reais de criação de um novo homem com poder de realizar o ser
genérico da espécie.
A globalização possibilita tanto o crescimento da alienação universal,
da desigualdade e da exclusão sociais, inerentes à lógica sócio-histórica do
capital, quanto o vislumbre de possibilidades reais, para além do capital, rumo
a realização dos sonhos de emancipação de todos os homens.
Na medida em que o capital é contraditório o seu desdobrar
sócio-histórico manifesta-se igualmente constituído pela contradição. Isto é, a
globalização não pode ser restringida a uma ideologia, ou mesmo a mundialização
do capital em seus múltiplos aspectos, seja a mundialização produtiva,
comercial e financeira. A globalização revela-se também como “processo
civilizatório humano-genérico”, no qual a humanidade torna-se humana na mesma
proporção em que também se distancia de sua possibilidade “humano-genérica”, ou
seja, refere-se à alienação capitalista inerente ao processo de mundialização
do capital.
Na sua faceta ideológica, a globalização apresenta-se como um arcabouço
de concepções e práticas políticas tais como o globalismo, o globalitarismo e o
neoliberalismo, por exemplo, que mistificam e obscurecem o movimento do capital
enquanto “instauração/conservação/extensão/intensificação da desigualdade,
exploração e exclusão sócio-histórica”. (ALVES, 2000, par.5). Sendo que
esta ideologia materializou-se no interior da mundialização do capital, desde a
metade da década de 1979. A ideologia e a política correspondentes à
globalização constituem a globalização exatamente como ela é. Como “processo
civilizatório humano-genérico”, a globalização manifesta-se como possibilidade
para o desenvolvimento da “integração/desintegração,
objetivação/subjetivação do gênero humano ‘em-si’ e ‘para-si’”. Sob este ponto
de vista, a globalização apresenta-se enquanto civilização com características
de cotidiano, de existências, de padrões de consumo e de mentalidades
específicos.
Quando se fala em “processo civilizatório capitalista”, isto quer
dizer um movimento contraditório na medida em que “cria/recria o gênero
humano “em-si”, ameaça a própria sobrevivência do gênero humano através da
instauração de condições objetivas/subjetivas capazes de
desintegra-lo/fragmenta-lo em particularismo étnico-regionais, culturais e e individuais diversos, que
negam os próprios avanços do processo civilizatório”. (ALVES, 2000, par.9).
Neste sentido, o exacerbado individualismo contemporâneo constitui o
aviltamento da individualidade inaugurada pelo próprio processo civilizatório,
da qual a modernização é peça chave. O advento da noção de indivíduo é fruto do desenvolvimento do
processo civilizatório provocado pela modernização burguesa no século XVIII.
Entretanto, na mesma proporção que inventam o indivíduo social, as relações
sociais burguesas o rebaixam e dificultam o seu pleno florecimento humano-genérico. Trata-se do absurdo da
individualidade subjugada pelas leis do mercado, tema de debates de diversos
estudiosos e escritores dos tempos modernos. É o paradoxo do indivíduo desprovido
de individualidade e com o seu imaginário reprimido e obstaculizado pelo
civilização burguesa.
Vale lembrar o caso da Ciência e da Tecnologia, por exemplo, que ao
proporcionarem a supremacia do homem sobre as forças naturais, provocaram,
inversamente, a expansão das forças de destruição do meio ambiente natural e
humano, intensificando a crise ecológica e a espoliação/marginalização do
trabalho vivo, ou seja, o desemprego, o controle repressivo da força de
trabalho e o aumento da exploração econômica.
Outro exemplo da natureza contraditória do desenvolvimento do
capitalismo intensificado pela mundialização capital é a globalização
“partida”, que impõe ao planeta apenas uma alternativa: o avanço da
modernização sob as ordens do capital. A decantada globalização consolida um
abismo no mundo, numa das bordas os países capitalistas centrais, e nas outra,
todos os países, regiões e continentes marginalizados do circuito mundial do
capital. Trata-se de um retrocesso sócio-histórico dos resultados do processo
civilizatório. O mundo feito à imagem e semelhança da globalização do capital
mostra sua face excludente, seletiva e plena de desigualdade. Esta globalização
como “processo civilizatório humano-genérico” amplia os horizontes do indivíduo
humano-social, e simultaneamente intensifica o individualismo, e obscurece e degrada a
individualidade e o imaginário humano-genérico; provoca o afastamento das
fronteiras naturais, na proporção em que o espaço e o tempo são revolucionados
pelo desenvolvimento das forças produtivas, dos meios de comunicação e
transportes, e simultaneamente, destrói a biodiversidade a serviço do lucro,
acirra os particularismos, os
separatismos, se apropria do espaço público onde seria possível o florecer de
um pensamento humano-genérico das individualidades contemporâneas.
Para se construir uma
“outra globalização” é necessário novos instrumentos de luta que sejam globais
no plano político e cultural. No entanto, a luta global não pode prescindir das
formas organizativas e dos movimentos seja em escala local, regional e
nacional. Somente iniciativas “glocais” poderiam conectar a organização,
resistência e combate em duas arenas: a global e a local. Cumpre realizar o
projeto de uma frente política de associações e movimentos locais-regionais-nacionais
com projeção mundial. A realização da globalização como “processo civilizatório
humano-genérico” exige a consolidação destes ativismos e instituições “glocais”
que acabam por assumir tarefas que ultrapassam as fronteiras nacionais e
regionais. Urge dar um novo significado à política e ao espaço público
extendendo os seus limites do regional ao transnacional. No entanto, é preciso
também dar um salto de qualidade no conteúdo político deste enfrentamento. Ou
seja:
“Muitas de tais associações globais, criadas
no bojo da ‘globalização em-si’, com o avanço da consciência humano-genérica,
dos espectros dos indivíduos históricos-mundiais, tendem a não compreender a
‘necessidade radical de atingir a lógica destrutiva do sistema orgânico do
capital’, permanecendo, apesar de sua abrangência (e do discurso) global,
imersos no particularismo corporativista (pode-se, portanto, ser plenamente
‘corporativismo’, apesar de ser ‘global’)”.(ALVES, 2002, 125).
O fortalecimento da
associação e do pensamento no âmbito mundial instaura a discussão em prol de
uma cidadania global. Em decorrência, necessita-se que o próprio conceito seja
repensado, tendo em vista a mundialização do capital que alavancou os problemas
referentes à cidadania para uma escala transnacional.
Esta cidadania global deve
ser vista principalmente como uma articulação combativa por uma “rede de direitos”, e não apenas como “realidade sócio-histórica concreta no interior do sistema orgânico do
capital”, considerando
que nesta globalização capitalista é ilusória a materialização do sonho de uma
cidadania global.
Alves compreende a globalização “em-si” como a ideologia e mundialização do capital, onde a
humanidade limita-se a ser apêndice dos movimentos próprios deste, nas esferas
de produção e reprodução do valor abstrato, ou seja, o dinheiro. É a
globalização como algo externo que se sobrepuja a todos e se agiganta como
segunda natureza, onde se tornam imperceptíveis a política e a ideologia
originárias das lutas de classes. No entanto, mesmo sendo um processo “em-si”, anuncia a possibilidade real de ser um processo “para-si”, “um processo civilizatório humano-genérico”, estimulado inclusive pela estrutura material e
técnica desenvolvida pelo capital. O extraordinário desenvolvimento dos meios
de comunicação e transporte é o suporte sócio-histórico contraditório da
globalização “para-si”. Esta
sendo a tradução da solidariedade, das lutas, do pensamento e do nascimento de
uma nova individualidade histórico-mundial, apesar de apresentar-se em um figurino
corporativo-particularista. (ALVES, 2000, par.7).
[1] Douglas Santos, em sua interessante tese de doutorado, traça a evolução da concepção de espaço dos tempos modernos até os dias atuais.
[2] “Fronteras, dominio del estado,
expansión, proclamación del estado por encima de las clases sociales, estados
dotados y estados débiles, estabilidad de la instituición política... ¿Podrá
alguien poner em duda que eran éstas precisamente las ideas que preocupaban,
cuando Ratzel escribia, a la burguesia industrial alemana, em el momento en que
Alemania se ha reunificado, ha alcanzado unos límites en los que se enfrenta a
otros poderosos vecinos y en que se lanza a la expansión colonial extraeuropea,
reconocida por el Congreso de Berlín? ¿Quedará alguna duda de la relación entre
las ideas científicas y la organización social? ¿Se podrá negar que a veces los
científicos bajo um planteamiento que pretende se objetivo no hacen más que
contribuir a la justificación idelológica de los intereses de la clase
dominante planteando precisamente los problemas que a ésta interesan y de la
forma como le interesa?”