Sobre o livro de Roman Rosdolsky
Anselm Jappe
Especial para o jornal "O POVO" Fortaleza
Ensaísta escreve sobre Gênese e Estrutura de O capital de Karl Marx de Roman Rosdolsky, livro cuja versão em português será lançada em Fortaleza. Trata-se de um guia para a obra de Marx.
É raro nestas épocas, que
uma obra marxista seja traduzida, vendida, lida e discutida 34
anos depois da sua primeira publicação. Mas, é exatamente isto
que acontece, atualmente no Brasil, com o livro Gênese e
estrutura de O capital de Karl Marx, de Roman Rosdolsky.
E apesar de se tratar de um livro muito erudito, ele não
interessa somente como documento histórico, mas também como um
guia atualíssimo para compreender a obra de Marx.
As raras informações biográficas disponíveis sobre o autor
nos fazem pensar que a sua vida não foi particularmente feliz:
era sempre um homem errado, no lugar errado. Nascido no ano de
1898 em Galizia (uma parte histórica da Polônia) aderiu ao
socialismo durante a primeira Guerra Mundial. Colaborava na
edição das obras completas de Marx e Engels em Moscou, quando
Stalin decide, em 1931 acabar com este empreendimento. Estava na
Polônia quando da invasão dos nazistas, que o levaram preso
para um campo de concentração, e depois, finalmente emigrou
para os EUA, onde naquela época a vida não era muito fácil
para um estudioso marxista. De fato, ele mesmo recorda a
dificuldade para encontrar textos para estudar.
Em vida permaneceu desconhecido e morreu em 1967, justamente
antes do renascer mundial de um marxismo intelectual heterodoxo
que provavelmente lhe agradaria. O seu livro, ao qual dedicou
evidentemente muito tempo (20 anos) de solitária meditação,
foi publicado na Alemanha em 1968 e depois traduzido em muitas
línguas. Influenciou fortemente a parte teoricamente mais
avançada da nova esquerda.
O mérito pessoal de Rosdolsky parece ainda maior pelo fato de
ele não ter podido apoiar-se em quase nenhuma obra marxista da
época, mas chegou às suas conclusões baseado somente na
leitura dos textos de Marx.
Na verdade, o seu livro não é nem mesmo uma interpretação,
mas um comentário muito aderente ao texto. Rosdolsky desaparece
quase totalmente atrás do seu objeto de estudo; poucos marxistas
estiveram assim tão vizinhos a Marx mesmo na sua combinação de
análises minuciosas e de grande alcance de uma crítica da
economia política e de aspiração filosófica e política.
O livro de Rosdolsky examina um grande manuscrito
de Marx, escrito em 1857/58, os Grundrisse. Publicados pela
primeira vez em 1939, tiveram inicialmente uma repercussão
limitada; eram considerados um simples rascunho ou esboço de O
Capital e, portanto, enquanto tal, inferior a este
último. O livro de Rosdolsky é o primeiro comentário orgânico
dos Grundrisse; o seu grande mérito é de mostrar o quanto eles
devem à dialética hegeliana de forma e conteúdo, sobretudo ao
se tratar do valor. É por esta colocação em relevo que
Rosdolsky pode ser considerado - mesmo permanecendo seguramente,
por muitos aspectos, no marxismo tradicional - um precursor
daqueles que hoje colocam em discussão a mercadoria, o trabalho,
o valor e o dinheiro, o Estado, mercado e a política, etc.
Destacamos algumas das suas melhores análises. Ele retoma uma
categoria ignorada na época como aquela do trabalho abstrato e
sublinha que o trabalho abstrato não é idêntico ao trabalho
necessário porque ele diz respeito apenas ao lado quantitativo
do problema e não ao lado qualitativo. Rosdolsky não foi
somente um dos primeiros a evidenciar a importância do valor na
elaboração em Marx, mas ele também resumiu muito bem o seu
papel nos diversos níveis da análise de Marx.
A sua aguda consciência da dialética entre forma e conteúdo o
levava a compreender plenamente a ''contradição entre o impulso
ilimitado à valorização do capital e o poder limitado de
consumo da sociedade capitalista'' (Rosdolsky, ed. alemã,
p.393). Distanciando-se aqui explicitamente do marxismo
tradicional, ele admite, portanto, a impossibilidade de fazer
coincidir o uso concreto e o valor abstrato.
Diferentemente do marxismo tradicional, Rosdolsky
não vê nas contradições aparentes da realidade capitalista
simples mistificações, mas a expressão das contradições
reais. Isto é muito importante para compreender que o fetichismo
da mercadoria não é um fenômeno que pertence somente à esfera
da consciência, mas um fenômeno real.
Opondo-se explicitamente aos ''manuais de economia marxista''
Rosdolsky afirma a coincidência entre o fetichismo da mercadoria
e a formação do dinheiro enquanto são ''os dois aspectos
diferentes de uma única e mesma realidade: na produção
comercial (mercantil), a capacidade da mercadoria a ser trocada
existe ao lado dela, como um objeto [...], como alguma coisa
distinta dela, [não imediatamente (não fazendo parte dela, não
inserida nela] idêntica a ela; o valor deve então se tornar
autônomo face às mercadorias'' (Rosdolsky, ed.fr.). Em outras
palavras, Rosdolsky redescobre o fato que para Marx, a
duplicação da realidade social constitui o fundamento da
lógica do valor.
Incrível para a época, antes de 68, era também o fato de
recordar que Marx não escreveu uma ''economia política'' porque
ela é também uma categoria fetichista. A diferença entre o
desenvolvimento histórico e o desenvolvimento lógico do capital
depois apresentada nos anos setenta por outros como a última
descoberta, já tinha sido posta em relevância por Rosdolsky.
Além disso destaca que a acumulação primitiva é um elemento
que constitui a relação capitalista e, conseqüentemente, ela
está ''contida no conceito do capital''; o capítulo do Capital
sobre a acumulação primitiva não é então somente uma
digressão histórica, como acreditava a própria Rosa
Luxemburgo. (Rosdolsky,tr.fr.,p.358).
Rosdolsky não se aventura quase nunca sobre o
terreno das conseqüências práticas da teoria marxista. Mas ele
descobriu aqueles aspectos de Marx que inspiram hoje as
tentativas para romper a lógica do valor. Talvez em nenhum lugar
Rosdolsky é assim tão atual como quando coloca em relevância -
provavelmente foi o primeiro a fazê-lo - a importância daquelas
páginas dos Grundrisse que anunciam que o próprio
desenvolvimento capitalista destruirá o valor - e então o
trabalho - como base da sociedade capitalista. Hoje, muitos são
os que buscam aquelas páginas. Ele as chama, com paixão
justificada, de ''reflexões que, ainda que Marx as tenha escrito
há mais de cem anos não se pode lê-las hoje senão com
emoção, porque contêm uma das visões mais ousadas do
espírito humano''. (Rosdolsky, ed. alemã, p.500).
Fortaleza, 10 de Fevereiro 2002
Anselm Jappe é ensaísta, integrante do grupo de
autores da revista Krisis (Alemanha) e autor do livro Guy Debord
(Vozes)
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