Chega de sonhar com o amanhã...

Euler Conrado

Às vezes tenho a sensação de não poder fazer mais nada diante do mundo subsumido pelo capital. Parece tudo perdido. Já nascemos derrotados, e o pouco de rebeldia que despertara nas primeiras impertinências juvenis vai sendo lentamente tragado pelo cotidiano minado pelo terror do capital.

Talvez porque estejamos vivendo um momento de pouca ebulição, crítica e prática, por mais que as aparências nos coloquem em contato virtual com milhares de manifestações e lutas que ocorrem por toda parte. Da primeira revolução industrial até a década de 70, os motins pareciam ter a força de mudar o mundo. A historiografia estava ainda demasiadamente presa às grandes figuras, capazes de, sozinhas, mover o mundo, como se os demais não tivessem rosto, voz, capacidade de fazer e acontecer. Mas, no fundo, a leitura de mundo, seja por parte de historiadores, poetas ou comentaristas de botecos, estava ainda prisioneira de mudanças que não alcançavam o cerne das relações capitalistas.

A esquerda que hoje restou é uma espécie de museu, anacronismo de idéias que não tem força para entender e lidar com a realidade atual. A esquerda se perdeu por acreditar em demasia no monstro que ela própria criticara e ajudara a criar. E o pior é que não soube acompanhar a própria metamorfose que este monstro sofrera, ao longo dos tempos. E, paradoxalmente, a metamorfose real-abstrata, do capital, não sendo percebida, acabou se transformando numa metamorfose da própria esquerda, que, de libertária nos primeiros tempos, acabou se tornando colaboradora consciente da manutenção da ordem capitalista.

Sem o saber, a humanidade fez uma profunda revolução nas relações capitalistas, aproximando-se dos limites destas relações. Mas, presa ainda à inconsciência que a acompanhou na realização de tais mudanças, não consegue desvencilhar-se dessa trama. O mundo está prenhe de outras relações, que joguem a última pá de cal neste defunto ambulante chamado capitalismo. Contudo, as mesmas forças que se debatiam contra essa forma de relação são aquelas que não conseguem se desgarrar deste pesado fardo. A crítica radical de conceitos que antes pareciam eternos – tal como um receituário bíblico –, não alcança a prática e a vida cotidiana. E a prática cotidiana, sem uma crítica de si mesma, vai reproduzindo o inferno da nossa sujeição coletiva a esta ordem estúpida. Os jargões, as palavras de ordem, as mobilizações, continuam presas ao passado que já fora enterrado e se arrasta feito uma procissão de fantasmas nos dias atuais.

Somos capazes de nos mobilizar contra uma guerra externa, em outra região, talvez porque não consigamos identificar a guerra que existe a cada instante, na realidade que nos cerca. Não se trata de um problema espacial – "outra região" -, mas de perceber o quanto enxergamos as coisas na sua forma externa, superficial, alienada. A guerra que se pratica lá, em Bagdá ou no Afeganistão, não guarda uma diferença substancial da guerra pela sobrevivência cotidiana, baseada na disputa de mercado, nessa lógica de vida invertida, onde os que produzem não se apropriam coletivamente daquilo que fazem. Neste imbróglio, ficamos a contemplar as lamúrias e as profecias das forças políticas que procuram desesperadamente chamar a atenção sobre si mesmas. Num espetáculo de rara pobreza, que reúne figuras que vão de Bin Laden a Bush, de Blair a Lula, de Saddam aos herdeiros de Stálin.

As duas variantes que se chocam, uma ligada ao discurso modernizador, neoliberal, etc., e a outra ligada ao neokeynesianismo, ao papel do Estado como motor de possíveis mudanças, constituem duas faces dessa mesma e vil moeda. São duas expressões das relações mediadas pelo dinheiro, pelo mercado, pelo estado, com o agravante de que, para as duas partes, o palco de ação já não mais existe - ou existe cada vez menos. Uma caricatura de disputa – ou uma disputa de caricaturas, sem expressão, ocas, no conteúdo e na forma. As contradições inerentes às relações capitalistas são tão ironicamente estranhas aos seus autores e atores que se chegou a um momento em que elas já nem mais fornecem o palco para estes artistas. Uma relação transformada em monstro, em coisa estranha, alienada, pela e para as próprias pessoas que a engendram, parece ter ganhado vida, sorrindo com sarcasmo para os seus criadores.

O que haveria de se fazer era uma reflexão coletiva, crítica, capaz de perceber a total irracionalidade racional que constitui as relações mediadas pelo dinheiro-mercadoria. Um mundo invertido, que escraviza a todos e particularmente aos que são obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviverem. No entanto, quem produz tudo, tal como uma tragédia que nos causa arrepios e lágrimas, estão por demais envolvidos na sua (nossa) própria escravidão cotidiana. De forma direta, como parte do que restou do proletariado ainda na ativa; ou indireta, como massa de proletarizados sem salários, que vive da promessa de cestas básicas e futuros irradiantes, com seus planos de fome zero e a ajuda de um deus-estado salvador. Na prática, cada passo em direção a alguma chamada "conquista", vai assumindo uma aparência libertária, enquanto, na vida real-abstrata, representa um maior envolvimento com a reprodução das relações sociais que nos mantêm enjaulados.

Estamos escravizados por nós mesmos, camaradas, e já nem precisamos de capatazes para nos caçar e domesticar. Embora os burgueses e seu estado mantenham azeitadas suas máquinas de terror, de perseguição, de repressão e de destruição, nossos maiores inimigos somos nós mesmos: a nossa difícil capacidade de nos enxergar enquanto escravos assalariados, ou sem salário. E mais difícil ainda capacidade de nos organizar e lutar coletivamente pela nossa auto-emancipação. Nossa luta vai sendo sempre cooptada e tragada pelos moinhos diabólicos da reprodução do dinheiro, do mercado e do estado. Tornamo-nos mestres em justificar nossa auto-escravidão com o pretexto de estar fazendo uma "estratégia" para, lá na frente, dar o pulo do gato. Como se as relações que nos oprimem e nos exploram fosse algo assim que pudesse passar por essas etapas de uma guerra de posição: aqui eu ganho, ali eu perco, agora é a vez do outro dar o próximo passo, etc. A opressão que combatemos é sustentada por nós mesmos, a cada instante, na escola, nas fábricas, nas ruas, no sindicato, em casa, por todo canto. Nessa teia do auto-envolvimento, da nossa autodomesticação, que formamos coletivamente, o único lugar onde alcançamos é o da nossa impotência perante o mundo que nós mesmos construímos.

É preciso ter a coragem de sonhar, de ter a ousadia de refletir sobre os conceitos dominantes, os valores, etc., ligados a uma relação histórica que já tarda em acabar. Não há propostas prontas, receitas, manuais que nos digam o que fazer. Há, ou não há, uma capacidade de entender o mundo, nossas relações, e, a partir dessa compreensão, ir construindo caminhos diferentes. Claro que há esforços de toda ordem: vejo com simpatia cada rebeldia que explode. Do levante zapatista, das mobilizações de Seattle, das manifestações de rua na Argentina, com as ocupações que as acompanharam, da Intifada, até ao pequeno-grande gesto cotidiano de rebeldia, de qualquer indivíduo premido pela ordem, podemos ser sempre surpreendidos com a capacidade humana de renascer para a luta contra a exploração e a opressão. Mas, não nos deixemos iludir: todos estas práticas de resistência, com toda carga de bravura, ainda carregam um forte verniz modernizador e talvez por isso mesmo não tenham conseguido, ainda, se transformar num movimento mundial, capaz de empolgar os oprimidos do mundo numa luta comum contra o capital.

Vira e mexe nos tornamos presas do passado presente em nossas relações. Milhões de pessoas são capazes de sair às ruas para criticar o que chamam de guerra do imperialismo norte-americano contra o que denominam de país mais fraco. Sem querer desmerecer qualquer movimento contestatório em repúdio às práticas que desencadeiam o genocídio humano – como tem sido esta e todas as demais guerras geradas pela disputa de mercado –, é preciso nos perguntar se não deveríamos ocupar as ruas em todos os momentos da nossa vida. Porque a lógica da reprodução do dinheiro causa milhões de mortos e feridos a cada instante, por toda parte. Aliás, deveríamos ocupar as ruas e as praças e por lá permanecer, dias, noites, meses a fio, parando o trânsito, quebrando a rotina, denunciando o holocausto permanente que constitui o viver sob o capital.

Mas, essa - e aí que mora o grande dilema - já não mais seria uma luta contra algo externo, o estado, a polícia, o imperialismo, etc., tão somente. Seria uma luta contra nós mesmos, aqueles que reproduzimos o cotidiano da dominação capitalista, que alimentamos os aparelhos alienados, externos, os parlamentos, os exércitos, os jornais, as empresas, as hierarquias, a rotina que nos mantém vivos para reproduzir a ordem que criticamos.

Ah, dirão alguns, mas isso é loucura! Como vamos sustentar uma ocupação permanente das ruas, praças, avenidas, empresas, terras, etc? Não temos organização, não temos comida! Logo aparecerão algumas vozes dizendo que, para fazer algo assim, é preciso uma direção, um estado-maior. Já pensam logo em reproduzir o inferno que queremos destruir. Quanto aos alimentos e roupas, não é demais lembrar que somos nós que os produzimos. Infelizmente, ficamos presos a lutas por "melhores conquistas" na disputa interna capitalista – a mesma que joga na rua a cada instante uma nova safra de "inúteis", segundo as lentes do mercado. A grande bandeira da ridícula esquerda do capital, no Brasil atual, é garantir a manutenção das "conquistas históricas" dos trabalhadores, enquanto se esforçam para administrar a máquina de reprodução do capital. As mesmas "conquistas" que beneficiam, de forma diferenciada, a menos de um terço da população. E o que dizer das relações entre "nações", neste jogo de cartas marcadas, criado para beneficiar os capitalistas das diversas fronteiras "nacionais", enquanto as variantes ideológicas, esquerda e direita, fazem o culto do "nacionalismo"?

Não, camaradas, é preciso ir direto aos pontos que nos interessam. Nossos problemas são comuns - pelo menos a maior parte deles – e para lidar com isso é preciso buscar solução que atinja a raiz da questão. Traduzindo: enquanto houver mediação do dinheiro, do mercado, do estado, continuaremos escravos, reproduzindo a concorrência egoísta pela sobrevivência, onde poucos se dão bem e a maioria, ou é jogada na sarjeta, ou se inscreve nas fileiras do bando de gangsteres da esquina, seja ele oficial ou marginal. Enquanto aceitarmos como coisa dada, "natural", a relação mediada pelo dinheiro, a propriedade privada das fontes de vida, a transformação do nosso tempo em "tempo útil" na forma de mercadoria, trabalho, continuaremos escravos de nós mesmos e das relações que ajudamos a manter. Ou nos apropriamos diretamente da nossa existência, ou então, nos iludiremos com promessas das muitas seitas religiosas que surgem por aí. A mais recente delas, a do F$M, que promete um "outro mundo possível" nos marcos do capital. Tal como o calvinismo no séc. XVI, descobriu que o lucro não é pecado. Desde que seja um "lucro justo", de preferência arrancado com o suor do rosto dos proletários-escravizados, e não por meio da especulação. A crítica moral ao capital atinge, assim, sua plenitude na legitimação da exploração capitalista.

Quem quiser que se iluda com isso. De nossa parte, continuamos em busca do sonho de um presente revolucionário (que esse papo do "amanhã" já estamos todos fartos...); que sejamos capazes de nos associar para derrotar nossa escravidão e conquistar nossa auto-emancipação deste terror cotidiano. Estamos diante da barbárie crescente e uma remota possibilidade da nossa auto-emancipação. Enquanto isso, a esquerda falante, cada vez mais midiática, só consegue pensar em defender a "soberania nacional", ou salvar os "direitos trabalhistas" da década de 30, ou eleger algum salvador que encontrará algum dia a porta do céu. Que triste sina a promessa do amanhã nos reservou, não?

Abril de 2003

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