CARTA AO PRESIDENTE

AO EXMO. SR.

PRESIDENTE DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

LUÍS INÁCIO LULA DA SILVA

Exmo Sr.

V. Excia conquistou o maior resultado eleitoral já obtido no país; reuniu em torno de si, antes e depois das eleições, a maior e melhor equipe de assessoria já vista no Brasil; tem o maior respaldo político e institucional que um governante já obteve na história deste país, a maior colaboração de quase todo o movimento sindical brasileiro, o maior apoio econômico dos organismos financeiros nacionais e internacionais, o melhor veredicto popular já verificado em pesquisas de opinião regularmente divulgadas.

No entanto, V. Excia e equipe não conseguem desatar o nó da crise que, se de um lado provoca estragos consideráveis na vida de nosso povo e de nosso país, de outro constitui a justificativa de V. Excia em optar pela administração capitalista da crise como um princípio da realidade.

É evidente, Senhor Presidente, que a natureza da crise atual escapa de V. Excia, de seus ministros e de todos (as) os seus auxiliares e apoiadores(as) na medida em que compreendem a produção do valor, a valorização do dinheiro - fundamento da produção capitalista - como um fato positivo e neutro. E pelas medidas, declarações e pronunciamentos de V. Excia e de seus auxiliares, aqui ou no exterior, afirmando que o pior já passou, fica cristalino que nem o diagnóstico da crise consegue dimensioná-la, nem as diretrizes governamentais poderão debelá-la porque estão adaptadas ao colapso do sistema. Sem uma análise circunstanciada desta questão, fica impossível compreender a natureza da crise. Sem este esclarecimento, não é possível enfrentá-la conseqüentemente. Sem equacioná-la, todo o sólido apoio se desmancha no ar. Os tempos de soluções fáceis passaram e o pior ainda está por vir.

Presidente Lula, V. Excia exerce a Presidência no momento em que as fronteiras históricas do modo de produção capitalista foram alcançadas e, conseqüentemente, o sistema já não pode manter mais seu nível civilizatório. Cada vez aceita menos os seres humanos e promove cortes cada vez mais duros nos recursos aplicados nas chamadas políticas sociais. Com isso, apesar dos esforços de V. Excia e de toda a sua equipe para superar a crise e conduzir nosso país ao crescimento econômico, seu governo está contido pelas barreiras da crise atual do sistema.

Senhor Presidente, a crise que está diante dos nossos olhos expõe, pela primeira vez na história do capitalismo, os limites da lógica do processo de acumulação capitalista, atinge os países centrais capitalistas, inclusive Estados Unidos, Japão, Alemanha e torna evidente, nos demais países, que a maior parte das suas populações já não consegue mais viver dentro das formas sociais capitalistas.

Essa crise, Senhor Presidente, pela sua natureza, representa o fracasso da sociedade do trabalho e o esgotamento dos seus fundamentos; gera diariamente obstáculos intransponíveis para a administração de quaisquer governantes, particularmente de V.Excia, em razão do tipo de desenvolvimento capitalista no Brasil; antecipa a derrota de V. Excia e da sua base de sustentação - partidos, sindicalistas, diretorias de entidades democráticas, acadêmicos(as), intelectuais, empresários, ruralistas, religiosos, cientistas e seus demais colaboradores(as) - no que se refere à mais importante tarefa de seu governo que seria a superação da crise; torna V.Excia e seus auxiliares impotentes diante do crescimento das idéias e práticas obscurantistas que, em face dos impasses governamentais, realimentam as forças da barbárie, do terror e da loucura, desejosas de que continuemos caminhando ao lado do capitalismo, rumo ao suicídio; explicita a falência da imaginação teórica da esquerda que, ao recusar a crítica radical do valor e do fetichismo da mercadoria, insiste no empreendimento atrasado de continuar eternamente modernizando a modernidade, no momento em que a crise demonstra o apagar das luzes da sociedade espetacular mercantil e, por isso mesmo, independentemente das intenções de seus modernizadores, só pode produzir um terrorismo estatal de modernização retardatária.

Senhor Presidente, ter como premissa esta leitura é indispensável para que possamos perceber que a terceira revolução tecnológica, baseada na microeletrônica, economiza mais trabalho (em termos absolutos) do que o necessário para a expansão do mercado dos novos produtos; ou seja, agora a capacidade de racionalização é maior do que a capacidade de expansão. Resultado: três quartos da humanidade estão afundando em estado de calamidade e miséria, jogados no aterro sanitário social porque o sistema social baseado no trabalho não precisa mais do seu trabalho.

Diante disso, V. Excia, ao que parece, não tinha a dimensão do significado da promessa feita na campanha - e seus eleitores (as) menos ainda - acerca da possibilidade da criação de 10 milhões de novos empregos. Ao contrário, o desemprego, agora, se espalha por todo o planeta como conseqüência do esgotamento da lógica de acumulação capitalista. No entanto, a troca de trabalho vivo pelo trabalho objetivado (o trabalho morto contido nas máquinas) se apresenta como o último desenvolvimento atual da relação do valor, da produção baseada no valor, que põe em cheque o fundamento da produção capitalista. Eis o ponto nodal da crise que aponta para a sua superação ou para a destruição da humanidade e do planeta.

A crise atual, portanto, se apresenta como a crise da própria forma - valor, uma crise no coração da produção capitalista e não só nos seus aspectos secundários. Fazem parte dela: a crise ecológica; a crise do sujeito constituído pelo valor, particularmente visível na crise da relação entre os sexos; o crescente colapso de economias nacionais e de regiões mundiais inteiras; a existência de pequenas ilhas de produtividade e rentabilidade imersas num oceano de desorganização e miséria; a fuga do capital monetário para a superestrutura financeira; a corrida para a redução de custos e para o fechamento de empresas; o surgimento de cadeias transnacionais de criação de riqueza, de um lado, e a morte de parte crescente da reprodução social, do outro; a impossibilidade, na época da globalização, que não é outra coisa senão uma racionalização planetária, da política e dos Estados nacionais continuarem como instâncias reguladoras das economias nacionais; o novo papel dos Estados Unidos que atuam não somente em nome de uma expansão territorial nacional, mas como uma espécie de potência protetora do imperativo da valorização e polícia mundial como demonstra o embushte da guerra; a manutenção da velha distância entre as metrópoles e a periferia, não só do ponto de vista do grau de desenvolvimento capitalista, mas também do grau de decomposição social; a condensação da riqueza nos espaços da "tríade" (EUA/América do Norte, União Européia, Japão/Sudeste Asiático) e o seu desaparecimento no resto do mundo; a falência das instituições, conceitos e ideologias políticas associadas ao valor; o desaparecimento dos serviços públicos essenciais; o surgimento de terrorismos étnicos e religiosos; a decadência moral e cultural de um número crescente de jovens; o aparecimento de seres desumanizados com traços perversos, monstruosos e repugnantes que regridem a um estágio pré-animalesco; a tendência ao apartheid social e ao asselvajamento das relações sociais que se evidenciam ao se encarar o aposentado como adversário do contribuinte, o doente como inimigo dos segurados e o imigrante como alvo de ódio de todos os nativos enfurecidos; a crescente ameaça do fim da conjuntura das bolhas financeiras que fermenta a mais profunda crise sobre o centro capitalista, em especial sobre a própria economia dos Estados Unidos e que com o seu rastro de devastação provocará a mais grave depressão mundial. Enfim, numa palavra, a crise evidencia o colapso do sistema capitalista atual. Um colapso que torna obsoletas as polarizações insistentemente veiculadas pela mídia entre juros altos x juros baixos, mercado x Estado, Mercosul x Alca, dependência x soberania, inflação x deflação, desenvolvimento x estagnação, distribuição de renda x ajuste fiscal, capital x trabalho, inclusão x exclusão, emprego x desemprego, polarizações que terminam por confundir as pessoas, dificultando a sua percepção sobre a verdadeira natureza da crise.

Senhor Presidente, diante deste colapso fica impossível viver nessa sociedade. O Brasil poderá vir a ser o país do futuro se urgentemente pensar e construir a sua transformação tendo por base a transformação emancipatória da humanidade. Para isto, Presidente Lula, teremos que caminhar para além das categorias capitalistas que sinalizam para o término da história das relações fetichistas. Se predominar a base estrutural da mercadoria, fica afastada a hipótese da busca de uma sociedade consciente. A ditadura da economia nos colocou diante de um falso dilema: economia do terror ou terror da economia. Conseqüentemente, nenhuma mudança no interior da esfera da economia será mais vitoriosa frente à natureza da crise atual. O sistema produtor de mercadorias tem na mercadoria uma tal dinâmica interna que não pode levar a outro lugar que não seja a crise final do capitalismo. Esta é a crise que se apresenta diante dos nossos olhos. Por causa disso só conseguiremos desatar o nó da crise quando a própria economia for submetida ao controle consciente, auto-organizado e auto-determinado das pessoas humanas. Daqui virá o sujeito da emancipação e a superação de todas as formas de consciência e relações sociais estruturadas pelo valor.

Para atingirmos esta causa emancipatória, Sr. Presidente, devemos aproveitar esta única e admirável conjunção histórica que passou a existir recentemente na trajetória da humanidade. Trata-se de uma conjunção em que a crise atual apresenta os limites do sistema num momento em que a humanidade começa a perceber a possibilidade exitosa de uma transformação social profunda. Afinal, a cega utilização dos meios materiais existentes levou a sociedade a um funcionamento absurdo. Trata-se, agora, de utilizar estes meios materiais para uma organização superior do mundo. Com ela, deixaremos de viver sob o império do fetichismo, racismo, patriarcalismo, opressão, discriminação, dissociação, exploração, barbárie, horror.

Portanto, está na contra-mão da história quem persegue integrantes de seus próprios partidos por discordarem das suas diretrizes oficiais; quem barra CPI, mesmo considerando-se suas sérias limitações, para evitar a apuração de grampos ilegais e rombo de 30 bilhões (BANESTADO); quem concede aumento de 55% para mordomias a parlamentares e 1% de reajuste para servidores; quem até dezembro último era crítico da reforma da Previdência e agora se alia com tradicionais corruptos, banqueiros e sonegadores,prefeitos e governadores, num toma lá dá cá vergonhoso, tudo para garantir votos favoráveis à retirada de direitos de trabalhadores ativos e aposentados e à privatização da Previdência Pública, jogando na lata do lixo conquistas históricas dos trabalhadores, e também, para aumentar os lucros de bancos e seguradoras que já detém 8% do Produto Interno Bruto do país; quem humilha,desrespeita e alimenta preconceitos contra os nordestinos; quem, com o programa Fome Zero, esquece o alerta do poeta: "seu dotô uma esmola/ para o homem que é são/ ou lhe mata de vergonha/ ou vicia o cidadão"; quem se submete ao FMI, chegando ao cúmulo de, além de agradecer, ser elogiado como "conduta exemplar" pela vice-diretora gerente desta famigerada organização, símbolo da ditadura do capital financeiro; quem chantageia e quer manietar, desfibrar, domesticar e pulverizar mais ainda o movimento dos(as) trabalhadores(as), afirmando que o movimento sindical não deve mais fazer greve, condenando as ocupações de terra feitas por trabalhadores rurais e ofendendo camponeses que reagem combativamente à destruição de suas lavouras; quem chega ao governo e nega a própria luta como "bravata" de oposição; quem faz todo tipo de acordo para tirar direitos dos trabalhadores e taxar aposentados, mas recua com relação à propaganda de cigarros e à produção de transgênicos; quem antes criticava governantes que chamavam servidores de marajás e vagabundos e agora usa e abusa da mídia para tentar jogar a população contra os servidores, taxando-os de privilegiados; quem quer cobrar taxas nas universidades públicas, mais imposto de renda da classe média mas anistia sonegadores e pretende parcelar débitos de ruralistas e não combate a agiotagem da Caixa Econômica Federal; quem continua permitindo despejos de moradores de conjuntos habitacionais.

Presidente Lula, pense e repense, analise e reanalise esta nova leitura. Se V. Excia não teme a verdade, passe-a sob o seu crivo crítico e de todos os seus auxiliares. Suspenda todos os seus projetos de reforma e busque a renovação necessária para medidas que possam realmente superar a crise. Convoque toda a sociedade brasileira para um debate de alto nível, não como na campanha, onde os eleitores se transformam em meros expectadores. Mas sim para um debate que nunca aconteceu na história deste país. Que esclareça, entre outras relevantes questões, porque o capitalismo, após ter criado um mundo à sua imagem e semelhança e ter destruído os sonhos que suas vítimas criavam para escapar de seu reinado, ficou sem perspectivas e alcançou suas fronteiras históricas. Um debate que abordará não apenas a superação capitalista como tal, mas, ao mesmo tempo, a superação da pré-história em geral, o que inclui as formações sociais até hoje, inclusive a nossa.

Presidente Lula confie no povo brasileiro, em especial, na sua gente simples e humilde, na qual residem suas origens. A grande maioria estava muito esperançosa de construir uma nova era para o nosso país e para a humanidade. Este foi o principal motivo por que apostaram em sua eleição. Não continue frustrando esta esperança. Pelas suas raízes e qualidades, V. Excia poderia, ao invés de alimentar a ilusão de que é possível administrar a crise do capitalismo, contribuir para fortalecer a caminhada iniciada por nossa gente de se insurgir contra a pré-história da humanidade, tornando-se sujeito, condição decisiva para construir a nova sociedade, agora sim, a sociedade da emancipação humana. Pois não é a troca sociológica de poder e de seus detentores que constitui a emancipação, e sim a superação da forma social, isto é, do moderno sistema produtor de mercadorias, comum às classes sociais. De nossa parte, continuamos apostando no movimento das pessoas humanas que imaginam e constroem uma forma de viver e produzir completamente diferente da atual e que, por isso, tem em suas mãos, corações e mentes o compromisso teórico e prático com a construção de uma sociedade humanamente diversa, socialmente igual, criativa, prazerosa no ócio produtivo e completamente livre. Um movimento que extraia toda sua poesia do futuro porque se forja enquanto oposição à barbárie e à guerra e que encara de frente a verdadeira situação do mundo, desenvolvendo uma crítica categorial da modernidade capitalista. Seria bastante arriscado achar que o estado do mundo atual agrada universalmente àqueles que são forçados a serem seus contemporâneos. Da mesma forma, é arriscado afirmar que este descontentamento tenha um objetivo traçado realmente. Mas há sinais esperançosos para além do neoliberalismo nas diversas manifestações ocorridas aqui e no mundo. V.Excia deve ter percebido isso em seus encontros no Brasil, Peru, França e, brevemente, perceberá em vários outros países.

Senhor Presidente, nem mercado, nem Estado salvam mais o capitalismo. É preciso deixar de ser salvaguarda de um sistema que está sem horizonte, sem perspectivas e que só pode produzir horror, oferecer o que é negativo e apresentar espetáculo de fim do mundo!

Presidente Lula, está mais do que na hora de rever suas posições messiânicas, espetaculares, populistas, demagógicas e de substituir a sua dedicação à servidão pelo amor à emancipação!

Presidente Lula, emancipatio quae sera tamen!

Essa carta será entregue ao Presidente Lula, após a coleta de assinaturas em todo o país, em data a ser marcada. É uma iniciativa da União das Mulheres Cearenses, Sindifort e Movimento Educa Emancipando em Fortaleza, Ceará. Conta com várias assinaturas e pretende contar também com a sua bem como de muitas outras pessoas e entidades representativas.

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