FINAL DO DIREITO
Hipóteses sobre a
extinção de um princípio formal do Ocidente
Por FRANZ SCHANDL
- O Capitalismo exige hoje um ritmo que
os seus princípios formais já não conseguem
acompanhar. Não foram feitos para esta velocidade. O
desenvolvimento das forças produtivas e as formações
sociais colidem, ou entram mesmo em colapso, haja em
vista as economias em colapso por todo o mundo, seja em
África, na América Latina ou no Leste da Europa. O que
se perfila não é a universalização da Democracia e do
Direito, mas a sua limitação. O sistema triunfante
perde cada vez mais terreno e revela-se cada vez mais
como decadente. O populismo da Direita que também grassa
no centro do Capitalismo Democrático, a redução das
forças democráticas tradicionais a nada (hoje a
Itália, amanhã a França, depois de amanhã onde se
verá), mostra claramente o fenómeno de esfacelamento
das Democracias Ocidentais e dos seus princípios
burgueses formais.
- O Direito (sob a forma de legislação
e de aplicação da lei) não consegue aguentar este
ritmo de desenvolvimento social. Ele não é apenas
incapaz (sempre foi) de conformar a realidade, mas
também crescentemente incapaz de a administrar. Se até
ao presente ele permaneceu ao abrigo, agora é sujeito a
outras exigências e regularmente submetido. Bem podem os
seus defensores na Política, na Burocracia e na Ciência
esforçar-se, o Direito já não encontra nenhuma
possível integração. Leis utilizáveis ou seja,
leis que consagram um consenso social relativamente não
problemático e que podem regular a sociedade e com base
nas quais os indivíduos podem agir são já muito
difíceis de elaborar e de executar. Cada vez mais, as
leis, no próprio momento da sua entrada em vigor, estão
já antiquadas, imprestáveis e carecidas de alteração.
Os grandes projectos estão condenados ao fracasso, mas
os pequenos passos também.
- O Capitalismo precisa, como notava Max
Weber, "de um Direito que se possa calcular como uma
máquina". E isto cada vez menos se pode garantir. O
fracasso da lei já está, muitas vezes, programado de
antemão, é simplesmente inevitável. Argumentos de
Advogado impregnam hoje toda a discussão jurídica. Um
público assombrado encontra-se perante uma matéria que
já não pode ser observada na sua complexidade pelos
tradutores-intérpretes do Direito. O resultado não é a
segurança jurídica, mas a arbitrariedade. As leis têm
cada vez mais dificuldade em ser levadas à prática. O
que é válido não o é incondicionalmente. O Direito
perde o seu carácter de garantia e, com isso, perde-se a
si próprio. Afirmações como "com a dupla
codificação do sistema jurídico será conseguida a
segurança de que quando se está no âmbito do Direito
se está no domínio do direito e não do torto"
têm de ser hoje vistas como ignorância crassa.
- O princípio "maxima caritas
lex" (1) tornou-se obsoleto. O credo comum da
burguesia e do movimento operário (apesar de todas as
diferenças) já não é sustentado por ninguém. Mais
Direito não cria mais direitos. Mas menos Direito
também não. Não estão à vista soluções deste
dilema. Esta crise do Direito não diz respeito apenas à
disciplina jurídica, como crise interna; ela é um
fenómeno social. Também não pode ser resolvida pelo
intrumentário jurídico. O Estado de Direito não é
quebrado por quaisquer inimigos externos, mas pela sua
própria lógica. Já não nos podemos abandonar ao
Direito; somos abandonados pelo Direito.
- O Direito não está apenas
classistamente distorcido, ele encontra-se
substancialmente em processo de decomposição. O slogan
"direitos iguais para todos" não está apenas
socialmente condicionado; é cada vez mais
estruturalmente impossível. Não se trata de uma
arbitrariedade intencional quem hoje clama contra
a "justiça de classe" ou a
"burocracia" atinge apenas fenómenos de
segunda grandeza mas de já não se conseguir
margem de manobra. O Direito encontra-se globalmente à
deriva.
- O Direito não pode também tornar-se
mais próximo das pessoas, mas é cada vez mais assunto
de Advogados, transformada na ciência oculta de
académicos esotéricos, de operadores, de procuradores e
de trapaceiros jurídicos. As propostas de reforma,
venham elas dos media, da burocracia, da ciência ou da
política, têm escasso valor. De guia normativo, o
Direito transformou-se em labirinto ou mesmo selva de
simulações e pretensões contraditórias que encontram
a sua expressão atrabiliária nas mais diversas leis e
regulamentos. A anomia do Direito é simplesmente
inevitável.
- O próprio crescimento exponencial da
produção normativa permite concluir por um amargo fim
do Direito. Embora aumente, falha. Num cego crescendo,
todas as realidades são reguladas e desreguladas e a
estafada polémica sobre mais Estado ou mais mercado é
de novo instalada e decidida de acordo com cada
conjuntura. O jogo entre regulação e desregulação é
cada vez mais irritante. Mas isso nada muda no sentido do
desenvolvimento social. De tal não foram capazes nem o
Direito nem a Política, mesmo nos seus melhores tempos.
Regular, como o próprio nome indica, não deve
confundir-se com planeamento social.
- "O Direito, na sua imediatidade,
é a propriedade" escreveu Hegel. Precisamente, a
propriedade extingue-se com o desenvolvimento do
Capitalismo. E de diversos modos: seja como
socialização negativa das consequências sociais da
produção, seja pela socialização dos indivíduos
através do dinheiro e da troca, seja pela crescente
monopolização, seja pela curta longevidade das
mercadorias, seja pela não continuidade do valor de
troca no campo da micro-electrónica, etc. A propriedade
caracteriza-se, simultâneamente, pela disponibilidade da
coisa e pela exclusão de outros. Ambas são cada vez
mais impossíveis e sem sentido. O que vivemos é uma
socialização sem socialismo. Nenhuma lei poderia
reintroduzir o antigo Direito.
- Normalidade e legalidade esboroam-se
cada vez mais, cada vez é mais difícil produzir
igualdades perante a lei. A realidade diverge não apenas
como o ser do dever-ser, mas tende para se totalizar para
além deles. Ser e dever-ser coexistiam no Estado de
Direito burguês como diferença de facto, mas
reconduzidos também a uma identidade idealista
fictícia. Estavam inextricavelmente coimplicados. Mesmo
que não pudessem coincidir nas suas expressões
exteriores, eram regularmente reconduzidos pelo Direito
a categoria que os ligava à congruência.
Até esta clássica capacidade de aplicação do Direito
se tornou hoje frágil.
- O Ser é repelido pelo Dever-Ser, sem
que a necessária atracção do Direito possa já ser
exercida. O Direito tem cada vez menos força para
conseguir desencadear esta força de atracção que o
constitui. A outrora forte aliança entre Ser e Dever-Ser
rompe-se: o Ser, ou, melhor, a realidade quer outro
Dever-Ser e por isso o Direito queixa-se permanentemente
da actual produção de identidades, precisamente porque
elas se tornam cada vez mais voláteis.
- Questione-se apenas quem ou o quê vem
render o Direito. Com o declarado esvaziamento do
princípio formal do Ocidente não se consegue ganhar
nada; pelo contrário, sem alternativas positivas, a sua
superação não é mais do que a sua pura eliminação,
ou seja, a falta de Direito. Nesta perspectiva, uma
conquista civilizacional não se transformaria em algo de
novo, mas reduzir-se-ia ao seu fulcro. E a forma mais
elementar do Direito é a força. Para o uso da força
encontram-se hoje à disposição sejam eles
sicilianos, colombianos ou russos instrumentos de
barbárie como nunca antes. O que passa então a valer
como Direito é determinado por formas mafiosas da
organização social.
- O Direito foi uma das muitas muletas
que o Homem utilizou no processo da Hominização. Assim
considerado, o Direito é, por um lado, expressão de um
elevado desenvolvimento histórico, mas por outro lado
também a súmula de uma carência civilizacional. Em
ordens para além da coacção nenhum Direito seria
possível. Os direitos subjectivos só são necessários
onde eles não aparecem como evidências objectivas. Os
"direitos" à vida, à alimentação, à
habitação, etc. são, em si mesmos, absurdos; eles só
fazem sentido num sistema de relações sociais que, por
sua própria tendência, não pressupõe como evidentes
estes elementos básicos da vida humana, mas, pelo
contrário, os põe objectivamente em causa.
- Nós dirigimo-nos para a sociedade sem
Direito. As nossas capacidades impelem-nos para aí. Os
governantes fazem as suas leis a partir daí. O Direito
pressente, pela primeira vez, o seu carácter histórico
limitado, sente o seu fim crepuscular. O que vem a
seguir, e quais possam ser os princípios normativos
pós-jurídicos, está, de momento, para além do nosso
horizonte de conhecimento. Mas, de qualquer modo, não
poderá ser apreendido com os conceitos de Estado e de
Democracia, Lei e Direito. Não temos neste momento
termos positivos, nem sequer conceitos auxiliares, para o
descrever e o concretizar. Eles só se deixarão revelar
a partir dos movimentos sociais. O que se pede não é
outra legalidade e outro Direito, mas alternativas ao
Direito e à Lei. Elas não serão não Direito, mas
pós-Direito.
- O grotesco da História pode assim
formular-se: quem quiser salvar o nível civilizacional,
as conquistas do Ocidente e aqui há, no melhor
sentido da palavra, muita coisa a guardar tem de
colocar-se no plano da ultrapassagem do princípio formal
do Ocidente. Nada pode ser já como antes. Este é
precisamente o ponto que tem de se atingir, se não se
quiser deixar a "superação" da crise à
Direita moderna de Berlusconi ou de Haider. Esta
compreendeu instintivamente a crise da Democracia e do
Parlamentarismo e do Estado Social de Direito, e quer
utilizá-la cada vez mais abertamente para conceitos
ditatoriais. A renúncia de Haider à Democracia
Representativa e a sua defesa do Estado de Direito
burguês apontam nesta direcção. Tolos são aqueles que
se lhe opõem, com modéstia republicana, só
defensivamente, ao mais uma vez mostrarem elevada
consideração, ou mesmo se rejubilarem, pelos
princípios da Democracia burguesa. 1918 é
irreversível, não pode repetir-se uma segunda vez. A
sociedade exige o novo, e se não quiser entretanto ser
conquistada pelo antigo não pode entrincheirar-se atrás
dos valores democrático-burgueses. De qualquer forma,
estes vão por água abaixo.
- P.S. Cada época da história
entende-se como a última. Anders chamou com pertinência
a este desejo tão indispensável de eternidade o
"Platonismo dos idiotas". Sobre a metafísica
dos juristas corporativos, escreve: "Em última
análise, eles estão profundamente afectados pelo facto
de existirem mudanças que estão a alterar o mundo. São
os inimigos figadais da História; demitidos do tempo,
exigem que o mundo continue a ser aquilo que era, que se
mantenha como é: estagnado para que a validade rígida
das normas jurídicas e a validade por elas assegurada
dos "pacta servanda" se correspondam."
- Maxima caritas lex. A melhor
caridade é a lei. N.T.
Original "Finale des
Rechts. Hypothesen über das Absterben eines abendländischen
Formprinzips" in www.krisis.org.
Tradução de José Paulo Vaz.
12/2001
http://planeta.clix.pt/obeco/