Sobre o lugar da "Ideologia Alemã" na obra de Marx
Ruy Fausto
O presente texto é parte de uma das seções de "Marx:
Lógica e Política - Investigações para uma Reconstituição
do Sentido da Dialética", vol. 3, que será publicado em
breve. A seção se chama "A Apresentação Marxista da
História - Modelos", foi escrita em 1987-88 e inserida na
minha tese de livre-docência, defendida na USP em 1989. O
presente fragmento foi apresentado em conferência no quadro do
colóquio sobre "A Ideologia Alemã", realizado na USP
em 1997. O texto original visa a distinguir três linhas
teóricas no interior do corpus marxiano, representadas
respectivamente: 1) pelo "Manifesto Comunista" e por
"A Ideologia Alemã"; 2) pelo "Capital" e os
"Grundrisse"; e 3) pelos "Manuscritos de
1844". Cada um desses modelos revela um estilo teórico
relativamente original e coerente. Tento reconstituir cada um
deles no que se refere à idéia de história, de teoria, de
ideologia, à relação ao tempo, à idéia do comunismo etc.,
tanto no plano do discurso explícito como no discurso em ato. O
fragmento se refere à primeira parte, mas fui obrigado a me
limitar essencialmente à "Ideologia Alemã". W abrevia
Marx, "Werke" (Obras), Berlim, Dietz. (A) indica que os
grifos são do autor do texto citado; (F), que os grifos são
meus. MLP abrevia "Marx -Lógica e Política".
O primado da prática No primeiro modelo, o do
"Manifesto Comunista" e da "Ideologia
Alemã", o tempo domina o conceito. Não é o conceito que
põe o tempo, mas o tempo que põe o conceito. Há por isso mesmo
um primado da prática, que vai até o ponto de diluir as
significações teóricas. Logicamente, isso aparece como um
imperialismo do discurso posto, que reduz a muito pouco, e no
limite aniquila, o discurso pressuposto. (O discurso pressuposto
é o que estabelece a continuidade do movimento da história, o
discurso posto é o da sucessão em princípio descontínua dos
modos de produção.)
Assim como no "Manifesto", na "Ideologia
Alemã" só se tem, a rigor, o discurso posto, e de uma
maneira ainda mais clara do que no "Manifesto", porque
a rejeição é absolutamente explícita, não há processo de
constituição das pressuposições: "Os indivíduos que
não estão mais subsumidos sob a divisão do trabalho, os
filósofos os representaram enquanto ideal (Ideal) com o nome
"o homem" e compreenderam a totalidade do processo que
desenvolvemos como processo de desenvolvimento "do
homem", de tal modo que sob os indivíduos (que existiram)
até aqui em cada nível (Stufe) histórico foi interposto
"o homem", (o qual) foi representado como a força
impulsionadora da história. O processo total foi assim
compreendido como processo de auto-alienação "do
homem", e isso provém essencialmente do (fato de) que se
interpõe sempre o indivíduo médio do nível posterior ao (do
nível) anterior, e a consciência posterior aos indivíduos
anteriores. Por meio dessa inversão, que desde o início faz
abstração das condições efetivas, foi possível transformar
toda a história em processo de desenvolvimento da
consciência" (W 3, pág. 69, (F)).
Essa crítica a todo discurso pressuposto de constituição é
solidária de uma crítica da filosofia, crítica que não deve
ser confundida nem com a que está presente de forma mais ou
menos implícita em "O Capital" ou nos
"Grundrisse", nem com a que se encontra nos
"Manuscritos de 1844". Na "Ideologia Alemã",
o questionamento da filosofia não está longe da crítica
positivista: "Lá onde cessa a especulação, na vida real,
começa assim a ciência real, positiva, a apresentação da
atividade (Betätigung) prática, do processo prático do
desenvolvimento dos homens. Cessam as frases sobre a
consciência, o saber real deve tomar o lugar delas. Com a
apresentação da realidade efetiva, a filosofia autônoma perde
o seu meio de existência. No lugar dela pode entrar no máximo
um resumo dos resultados gerais que se pode abstrair da
consideração do desenvolvimento dos homens. Separadas da
história efetiva, essas abstrações não têm por si nenhum
valor. Elas só podem servir para facilitar a ordenação do
material histórico, para indicar a série das suas
estratificações (Schichten) individuais. Mas elas não dão de
forma nenhuma, como a filosofia, uma receita ou esquema, segundo
o qual as épocas históricas podem ser acomodadas
(zurückstützen)" (W 3, pág. 27 (F)). A filosofia é
concebida assim só como sistema dogmático, no sentido mais
grosseiro. Vê-se por outro lado que não se recusa toda a
pressuposição, mas sim todo o processo de constituição e toda
a pretensão à universalidade. Em lugar da universalidade -mesmo
pressuposta ou negativa- entra a mera generalidade,
"resumo" propedêutico.
Que representam desse ponto de vista as pressuposições? (1) As
pressuposições são idéias, e as idéias são em primeiro
lugar produtos: "A classe que tem à sua disposição os
meios para a produção material dispõe também (...) dos meios
da produção espiritual" (W 3, pág. 46) (que entram na
circulação espiritual). Elas são forças, potências
espirituais, mesmo se (...) enquanto forças, não são
diferentes da das classes a que correspondem (ver W 3, pág.
46-47).
Mas que representam elas em termos de significação? Sabemos que
as idéias exprimem as relações materiais dominantes. Entre
elas e essas relações existe uma distância que é fruto de uma
transfiguração. Esta é ao mesmo tempo uma idealização e uma
universalização. Por exemplo, a partilha temporária do poder,
"entre o rei, os príncipes e a burguesia, se transfigura em
doutrina da divisão dos poderes" (ver ib.). O conteúdo das
forças em luta e a oposição delas são assim idealizados. Por
sua vez, a particularidade se torna universalidade ilusória. O
interesse de classe se transfigura em interesse de todos os
membros da sociedade (o que, em princípio, no início do
processo não é ilusório, quando a classe revolucionária
representa efetivamente o interesse de todas as classes -ver W 3,
pág. 48).
Há assim na ideologia uma espécie de "deslizamento"
da significação, que é ao mesmo tempo um excesso de
significação. Mas o que representa essa sobre-significação de
que é preciso se desfazer? Ela é uma significação ou antes
uma intenção de significação que não é preenchida mesmo
negativamente. Tudo se passa como se, a exemplo do
"Manifesto", no universo da "Ideologia
Alemã" a frase "a liberdade é... a liberdade
burguesa" tivesse a rigor não um sujeito pressuposto, que
é negado pelo predicado, mas ainda menos do que isso. O sujeito
não é ilusório no sentido de que o seu preenchimento só pode
ser negativo. Ele não é absolutamente preenchido.
Trata-se de uma significação que permanece vazia e que se
resolve em coisa, produto ou potência prática, ou se dilui em
imagem (Phantasie, Hirngespint, Imaginação) (ver W 3, pág.
13), nonsense ou em nome. A teoria da ideologia que se encontra
na "Ideologia Alemã" está assim marcada pelo
materialismo reducionista, pelo psicologismo e pelo nominalismo.
A ideologia é a "sombra da realidade efetiva" (ver
pág. 23, a propósito da ideologia alemã).
A definição da "propriedade" que dá Destutt de Tracy
é a ocasião de uma crítica das definições ideais-universais
que oferece a ideologia. O tema tem um interesse particular,
veremos por quê. Destutt relaciona propriedade com próprio e
reduz a crítica da propriedade à crítica de tudo o que nos é
"próprio". "Depois de identificar assim
propriedade privada e personalidade, como em Stirner por meio do
jogo de palavras com "mein" e "Meinung"
("meu" e "opinião') (...), em Destutt de Tracy
com "proprieté" e "propre", se tira a
seguinte conclusão (Marx cita agora Destutt): "É
absolutamente inútil perguntar se não seria melhor que nada
fosse próprio -em todo o caso isso significa perguntar se não
seria melhor que fôssemos totalmente outros e mesmo (...), se
não seria melhor que não fôssemos nada'" (W 3 pág. 210).
Marx comenta o que lhe parece ser um jogo de palavras
etimológico: "O burguês pode tanto mais facilmente provar
a partir da sua língua a identidade entre relações mercantis e
individuais ou também universais humanas, porque essa língua é
ela mesma um produto da burguesia e por isso, assim como na
realidade efetiva, também na linguagem as relações do tráfico
se tornaram a base de todas as outras. Por exemplo, proprieté,
Eigentum (propriedade) e Eigenschaft (o que é próprio),
property, Eigentum e Eigentümlichkeit (propriedade
característica) (...) valeur, value, Wert - commerce, Verkehr
(intercâmbio) (...) que são empregados (nas línguas modernas)
tanto para as relações (Verhältnisse) comerciais, quanto para
as qualidades e relações (Beziehungen) dos indivíduos enquanto
tais". (W 3, pág. 212-213).
O parentesco entre as duas significações tem assim uma base na
ordem das coisas, mas, apesar disso, ou por isso mesmo, constitui
essencialmente uma "ambiguidade". Na realidade, há uma
oposição entre um significado e outro: "A propriedade
privada efetiva é precisamente a mais universal de todas, o que
não tem nada a ver com a minha individualidade, (e) mesmo a
anula (umstösst). Na medida em que valho como proprietário
particular, não valho como indivíduo -uma proposição que os
casamentos por dinheiro confirmam todos os dias" (W 3, pág.
211 (F)) (2). Além disso, a frase de Destutt permitia imputar ao
comunismo uma contradição: "Todo esse absurdo (Unsinn)
teórico (cf. pág. 83, "sem sentido" (sinnlos),
"sem conteúdo" (Inhaltlos)) que busca refúgio na
etimologia seria impossível se a propriedade privada que os
comunistas querem suprimir não fosse transformada no conceito
abstrato "a propriedade". Com isso (...) pode-se chegar
facilmente a descobrir uma contradição no comunismo, no fato de
que depois da supressão da propriedade (efetiva), (...) é
possível descobrir muita coisa que se deixa subsumir sob "a
propriedade'" (W 3, pág. 211, último grifo (A)).
O interesse desse desenvolvimento é evidente. É que em outros
textos -dos "Grundrisse"- Marx se serve do sentido
antropológico do termo "propriedade" para designar uma
relação que está presente tanto no comunismo -então sob forma
"perfeita"- quanto no pré-capitalismo. Esse sentido é
sem dúvida oposto e contraditório -de modo diferente, de resto,
conforme se considere o pré-capitalismo ou o comunismo- ao
sentido que tem a propriedade no capitalismo.
Aparentemente, para o caso do comunismo pelo menos, não haveria
nenhuma diferença entre esses textos e o que se lê na
"Ideologia Alemã". Mas, precisamente, nos
"Grundrisse" não se corta o fio semântico que une
contraditoriamente um sentido ao outro. Isto é, põe-se a
contradição entre os dois sentidos, e por isso mesmo se
estabelece um contínuo pressuposto que une -isto é, separa- os
dois sentidos. A diferença parece sutil, e ela de fato o é. Mas
são sutilezas como essa que separam a razão dialética do
entendimento. Basta pôr a contradição denunciada pelo texto
citado da "Ideologia Alemã" para que o discurso de
entendimento da obra de 1845 se transforme num discurso
dialético. Basta assumir em interioridade a contradição que a
"Ideologia Alemã" denuncia em exterioridade para que a
pura dispersão histórica e o seu complemento, a teoria
nominalista-historicista da ideologia, seja posta em xeque. Mas
isso a "Ideologia Alemã" não faz -e não o faz de
propósito. De fato há uma certa finura ou astúcia na
ingenuidade anti-hegeliana da "Ideologia Alemã",
porque Marx já se ocupara da dialética hegeliana, embora não
tivesse chegado ainda a investi-la de maneira satisfatória na
crítica da economia política.
Antes de analisar as consequências dessa redução das
pressuposições para a idéia da revolução e do comunismo em
particular, detenhamo-nos na idéia geral de história e de
progresso da "Ideologia Alemã". Se de fato não há
processo de constituição das pressuposições, há entretanto
(como de resto também no "Manifesto") noções como as
de natureza e civilização, que permitem escandir, mas sem
negação, o conjunto do processo histórico. Por outro lado, no
plano do discurso posto, assim como a propriedade ou as formas de
propriedade caracterizavam o "Manifesto", a noção
fundamental é aqui a de divisão do trabalho.
Se no "Manifesto" fala-se antes em opressão e em
subordinação de uma classe a outra, na "Ideologia
Alemã" tem-se mais a subordinação dos indivíduos -de
todos os indivíduos- à divisão do trabalho. "A supressão
da autonominação (Verselbständigung) das relações em face
dos indivíduos sob a contingência, da subsunção de suas
relações pessoais sob relações universais de classe etc.
está condicionada pela abolição da divisão do trabalho"
(W 3, pág. 424, (F)). "Subsumido "a ela" o
indivíduo é "unilateralizado", estropiado,
determinado" (W 3, pág. 422). Assim o dado fundamental é
menos a subordinação de certos indivíduos a outros indivíduos
do que a de todos a uma potência autonomizada. E "a
divisão do trabalho" só se efetiva com "a divisão
entre trabalho material e espiritual" (W 3, pág. 31).
Então se estabelece uma subordinação material e espiritual dos
indivíduos à divisão do trabalho (3).
A "Ideologia Alemã" apresenta uma sucessão de formas,
cada uma das quais passa por um curso cíclico de
desenvolvimento, maturidade e decadência. O problema de saber o
que se conserva ao passarmos de uma forma a outra se coloca em
termos diferentes, conforme se considera o pré-capitalismo ou o
capitalismo. Até a época capitalista, o progresso da riqueza
material é aleatório. As invenções se perdem ao sabor dos
acidentes históricos, de tal modo que tudo deve começar de
novo. A história da satisfação também segue aparentemente o
processo cíclico do desenvolvimento das formas. Enquanto o
sistema não entra em crise, as classes dominantes estão
satisfeitas com a sua condição, e as classes dominadas,
acomodadas àquelas. O mesmo vale para a liberdade, mas, no que
se refere a ela, é preciso supor um movimento progressivo, para
além dos ciclos internos, um movimento progressivo na história
do conjunto das formas (na passagem de uma forma a outra),
movimento que vale sobretudo às classes dominantes, mas que
dentro de certos limites (e apesar do que se lê em certos
textos) valeria também às classes dominadas.
Com o capitalismo -em particular com o capitalismo da grande
indústria- a situação se modifica. O progresso da riqueza se
torna acumulativo. Ao mesmo tempo, o caráter contraditório do
progresso se manifesta. Em primeiro lugar, ao passar da época
pré-capitalista à época capitalista, a liberdade se reduz, e
também para as classes dominantes. Além disso, a satisfação
ou manifestação de si, para utilizar a linguagem da
"Ideologia Alemã", está ausente desde o início da
nova forma, embora só potencialmente para a classe dominante.
(Esse "potencialmente" se refere ao destino dos
indivíduos, não ao destino da classe.) Assim, com o
capitalismo, há ruptura de uma história que era essencialmente
cíclica. A situação se modifica dentro da forma e nas suas
relações com as formas anteriores. Na relação entre a forma
capitalista e as formas anteriores aparece acumulação e
progresso, embora progresso contraditório. Antes do capitalismo,
havia ausência de progresso, ou um progresso limitado entre as
diferentes formas, e um ritmo de caráter cíclico e
não-contraditório no interior de cada forma. Entre o
capitalismo e as formas anteriores há progresso-regressão e, no
interior da forma capitalista, um ciclo que é desde o início
contraditório.
Assim, de uma situação em que havia ciclo não-contraditório
no interior de cada forma e progresso limitado ou ausência de
progresso na relação de cada forma com o passado, passamos a
uma situação em que há ciclo contraditório interno e
progresso contraditório (progresso e regressão) na relação
para com o passado. Os dois pólos fundamentais desse novo quadro
são o progresso da riqueza objetiva e a regressão da liberdade.
"(...) Na representação, os indivíduos, sob a dominação
burguesa, são mais livres do que eram antes, porque para eles as
suas condições de vida são contingentes; na realidade efetiva
eles são naturalmente menos livres, porque mais submetidos a
potências objetivas" (W 3, pág. 76, (F)). Essa regressão
na liberdade significa que os indivíduos não estão mais
ligados à comunidade (que por isso não é mais uma comunidade)
senão por uma relação contingente. Há uma necessidade nessa
contingência, e é essa necessidade da contingência que aparece
como ausência de liberdade. Para o burguês, a relação
positiva para com a sociedade está dada, ela é contingente,
porque ele pode vir a perdê-la. Para o proletário, é antes a
relação negativa que está dada, a contingência não é mais
do que a possibilidade abstrata de que ele venha a obter uma
relação positiva.
A "Ideologia Alemã" introduz ainda o conceito de
Betätigung, atividade (operação), e o de Selbstbetätigung,
que remete a uma história da satisfação. Trata-se de opor ao
ciclo em si mesmo contraditório, que corresponde ao caso do
capitalismo, um esquema cíclico não-contraditório que vale
para o pré-capitalismo (os indivíduos são aí
"auto-ativos", isto é, sua atividade corresponde à
sua individualidade no início e até a maturidade de cada forma,
se estabelecendo mais tarde uma ruptura): "Enquanto a
contradição (...) não ocorreu", as condições são, para
os indivíduos, condições que pertencem à sua individualidade,
(...) condições da sua automanifestação (Selbstbetätigung) e
são produzidas por esta automanifestação" (W 3, pág.
71-72 (F)). Na época burguesa, a história da satisfação não
segue mais um ritmo cíclico: "Surge uma diferença entre a
vida de cada indivíduo até onde ele é pessoa e (a sua vida)
até onde ele está subordinado a um ramo qualquer (da divisão)
do trabalho (...)" (pág. 75-6).
Essa ruptura vale a fortiori para o proletário. E nesse caso ela
é efetiva e não potencial; "a única conexão que eles (a
maioria dos indivíduos, os proletários) mantêm ainda com as
forças produtivas e com a sua própria existência é o
trabalho, que para eles perdeu toda a aparência de
auto-satisfação (...)" (W 3, pág. 77 (F)). O caráter
contraditório do progresso na época da burguesia aparece assim
na "Ideologia Alemã" como contradição entre o
progresso da riqueza (enquanto riqueza objetiva) e a regressão
da liberdade e da satisfação. Esse tema
"antiaufklärer", que sob diversas formas está
presente em todos os modelos da apresentação marxista da
história, se encontra também no "Manifesto",
sobretudo sob a forma da regressão nas condições de vida do
proletário. O lado regressivo do progresso, no
"Manifesto", é resumido pela idéia de que há um
excesso de civilização -"hybris" da civilização- e
que esse excesso equivale à barbárie: "Nas crises irrompe
uma epidemia social que apareceria para todas as épocas
anteriores como um absurdo -a epidemia da superprodução. A
sociedade se encontra bruscamente remetida a uma condição de
barbárie momentânea; uma miséria, uma guerra geral de
aniquilamento parecem ter-lhe cortado todos os meios de vida; a
indústria, o comércio parecem aniquilados, e por quê? Porque
eles possuem civilização demais, meios de vida demais,
indústria demais, comércio demais" (W 4, pág. 468 (F)).
E, neste ponto, "Manifesto" e "Ideologia
Alemã" convergem na afirmação de que a forma burguesa de
propriedade, ao contrário das formas anteriores, leva à
destruição das classes oprimidas: "Toda a sociedade (que
existiu) até aqui repousou (...) sobre a oposição entre
classes opressoras e classes oprimidas. Mas, para poder oprimir
uma classe, devem-se assegurar a ela condições no interior das
quais ela possa pelo menos garantir (fristen) sua existência
servil" (W 4, pág. 473). A "Ideologia Alemã"
fala de maneira mais radical na transformação -uma
interversão- das forças produtivas em forças destrutivas, um
tema que tem interesse, evidentemente, para além da crítica do
capitalismo da grande indústria, e também para além do
capitalismo em geral: "No desenvolvimento das forças
produtivas surge um nível no qual são suscitadas forças
produtivas e meio de produção que, nas condições existentes,
só causam desgraças, que não são mais forças produtivas, mas
forças de destruição (...)" (W 3, pág. 69 (F)). Mas não
haveria saída sem a abolição da propriedade privada: "Já
mostramos que os indivíduos atuais devem suprimir a propriedade
privada, porque as forças produtivas e as forças de
intercâmbio se desenvolveram tanto que, sob o domínio da
propriedade privada, se tornaram forças destrutivas (...)"
(W3, pág. 424, Marx sublinha "devem").
Embora nem o "Manifesto" nem a "Ideologia
Alemã" se refiram a um fim da pré-história, está
presente a idéia de que a história da exploração se esgota,
porque as condições de produção da vida se transformaram em
condições de produção da destruição. Esse tema dá um
conteúdo, embora discutível, à idéia de que se trata da
última forma. Observe-se que aqui não se compara uma situação
interna ao capitalismo com uma situação interna relativa a uma
outra forma, mas a produção capitalista em geral com todas as
outras formas de produção. E não se fala em contradição
entre forças produtivas e relações de produção, mas na
transformação de forças produtivas em forças de destruição.
O destino do capitalismo aparece de um modo mais ou menos
apocalíptico. Entretanto, que a época burguesa traga consigo
algo assim como a destruição -considerada como única na
história- de uma parte da sociedade, constitui menos um discurso
pressuposto sobre a história do que um tema que o substitui. A
exploração não pode subsistir porque não há mais quem
explorar: ela se esgota. A notar que aqui se pensa a destruição
como provinda imediatamente da forma social, não da matéria (o
que significaria como provinda só mediatamente da forma), como
ocorre em geral na crítica pós-marxista do sistema.
A "Ideologia Alemã"
apresenta entretanto alguns traços que a diferenciam do
"Manifesto", no interior do modelo que ela partilha com
ele. Se não há pressuposições realmente universalizantes, há
entretanto a idéia de que a revolução comunista ataca a base
(algo assim como a base comum ou geral) da sociedade que existiu
"até aqui". Por outro lado, está presente como
existência uma espécie de auto-educação universalizante do
proletariado, a qual vai além da simples tomada de consciência
(e portanto do movimento de auto-emancipação, no seu sentido
imediato) tal como já se encontra no "Manifesto". De
fato, um texto da "Ideologia Alemã" -que havia
interessado a H. Arendt (ver "Da Violência", ap. 1)-
afirma a necessidade da revolução não só pelo fato de que as
classes dominantes resistirão às transformações, mas também
porque só por meio dela o proletariado poderia se desembaraçar
de todo o peso do passado "(...) tanto para a produção em
massa dessa consciência comunista como para a realização da
coisa é necessária uma mudança maciça dos homens, que só
pode ir adiante num movimento prático, numa revolução: a
revolução é assim necessária não só porque a classe
dominante não pode ser derrubada de nenhum outro jeito, mas
também porque a classe que derruba só numa revolução pode se
libertar de toda a antiga merda e se tornar capaz de uma nova
fundação da sociedade" (W 3, pág. 70, grifei o final).
Essa auto-educação não é simplesmente uma tomada de
consciência das necessidades do presente enquanto presente. Ela
é uma espécie de catarse em relação ao conjunto do passado.
Assim, mesmo se falta um discurso pressuposto, há na idéia de
revolução que propõe a "Ideologia Alemã" uma
segunda instância de totalização. A revolução só é
possível por meio de uma auto-educação que elimine todas as
marcas do passado. Só assim será possível uma "nova
fundação da sociedade".
Que é o comunismo para a "Ideologia Alemã"? Ele é
antes de mais nada o fim da divisão do trabalho. O texto é bem
conhecido: "(...) Fazer isso hoje, aquilo amanhã, caçar
depois do almoço, tocar bois de tarde, criticar depois do
jantar, conforme eu tenha vontade, sem jamais me tornar caçador,
pescador ou crítico" (W 3, pág. 33). E, se o comunismo
representa o fim da divisão do trabalho, o fim da divisão do
trabalho é ao mesmo tempo a supressão do trabalho. Esse
movimento é importante tanto no que se refere ao conteúdo
quanto no que se refere à forma.
Trata-se de abolir o trabalho e não de estabelecer o
"trabalho livre": "(...) Os servos em fuga só
queriam desenvolver livremente (...) sua condição de vida já
existente e por isso (...) só chegaram ao trabalho livre; os
proletários, para se fazerem valer pessoalmente, devem suprimir
a sua própria condição de existência (...), o trabalho"
(W 3, pág. 77(F)). Se o trabalho é suprimido com a supressão
da divisão do trabalho, é que só posto como divisão do
trabalho ele é trabalho, um pouco como, só posto como o valor,
o valor é valor (cf. MLP 1, 3). O trabalho não posto como a
força que representa a divisão do trabalho não é trabalho,
embora tenha a determinação do trabalho. Tem-se aqui uma
articulação que em grandes linhas é dialética, num texto que
não é essencialmente dialético. Como no "Manifesto",
a pressuposição privilegiada não é a satisfação nem mesmo a
riqueza (pelo menos comparativamente a outros textos), mas a
liberdade (ver W 3, pág. 74, (F)). A liberdade se contrapõe
aqui a uma situação em que os indivíduos são oprimidos menos
por indivíduos de outra classe, como no "Manifesto",
do que pela sua própria atividade parcelada. O comunismo como
reino da liberdade seria a negação de uma situação histórica
em que, de algum modo, todos são oprimidos.
A apresentação da história tal como se encontra no
"Manifesto" e na "Ideologia Alemã"
representa o que se pode considerar como o modelo historicista
(ou quase-historicista) no interior do pensamento de Marx, modelo
que infelizmente é muitas vezes tomado como se representasse
simplesmente a apresentação da história -de Marx.
Nele, pode-se dizer, o tempo e a ação dominam o conceito e a
teoria. Não há discurso pressuposto, isto é, não se põe o
discurso pressuposto enquanto tal. Há porém uma espécie de
pressuposição da pressuposição, e em mais de um aspecto.
Vimos que a idéia de uma revolução visando à base de comum da
história "até aqui", assim como a exigência de uma
auto-educação universalizante do proletariado vão no sentido
de uma totalização. As expressões "nova fundação da
sociedade" ou nova "abolição da divisão do
trabalho" infletem essas indicações no sentido de uma
totalização que não será só retilínea, mas também
circular. Mas não se vai até a posição do discurso
pressuposto. Isso significaria que o "Manifesto" e a
"Ideologia Alemã" propõem um esquema de simples
dispersão das formas de propriedade? Não. E não só devido à
presença dos esboços de totalização indicados. Antes pela
razão contrária. A ausência de um verdadeiro discurso
pressuposto tem paradoxalmente como consequência a introdução
de uma espécie de contínuo e, até certo ponto, mesmo de um
finalismo na história, embora a recusa em totalizar venha de um
impulso explicitamente antifinalista. É como se um discurso
totalizador continuista (mas continuista "malgré lui")
e um discurso posto descontinuista se sustentassem um ao outro em
forma de uma "má" contradição (4). A ausência de um
deles faz com que um se interverta no outro. A pura dispersão é
continuismo.
Poder-se-ia também dizer, na mesma direção, que esse discurso
que se apresenta como essencialmente prático, isto é, cujos
títulos de legitimidade são apresentados essencialmente na
instância prática, precisamente pelo caráter unilateral,
excessivo desse praticismo -no caso do "Manifesto" isso
tem algo a ver, é verdade, com o gênero do discurso-, se
interverte em discurso teórico mal fundado, em sistema
dogmático. Ou, digamos, a antifilosofia estreita da
"Ideologia Alemã" se interverte em má filosofia, em
filosofia "sistemática" em sentido pejorativo. Os
pressupostos que deveriam indicar a direção do projeto se
perdem no movimento efetivo. "O comunismo não é para nós
uma situação que deva ser estabelecida, um ideal segundo o qual
a realidade efetiva terá de se orientar. Chamamos de comunismo o
movimento efetivo que suprime as condições atuais" (W 3,
pág. 35, (A)).
A exigência de desqualificar toda a utopia normativa vai longe
demais, como se só houvesse duas possibilidades, o dogmatismo
dos fins postos e a ausência pura e simples dos fins (a que
equivale a simples presença do movimento efetivo). A recusa em
pensar um fim "negado" (o qual se torna aqui um fim
simplesmente negado) (5) tem como resultado um discurso que é
tão identitário e dogmático como o seu oposto. O comunismo
não seria mais do que um movimento efetivo. Mesmo que se pense a
ação como autoconsciente etc., a liquidação abstrata do
"ideal" introduz uma espécie de finalismo histórico:
a história tende à realização do comunismo. Paradoxalmente o
fato de não haver ainda elaborado a crítica da economia
política que introduziria um finalismo do capital (isto é, um
finalismo interior a um modo de produção) tem como resultado
uma espécie de homogeneização da história, que não está
longe de introduzir um esquema finalista no plano global (cf. MLP
2, 1, ap. 1).
Em resumo, o caráter em geral antidialético da crítica da
dialética hegeliana a que procede a "Ideologia Alemã"
tem como resultado contraditório uma espécie de dogmatismo
filosófico e de totalização da história, precisamente o que
se tratava de exorcizar. Com o "Manifesto Comunista"
ocorre coisa semelhante. Se falta um discurso quase-totalizante,
isso não significa que se tenha como resultado efetivo uma
dispersão de formas históricas. Logicamente é o que se
pretende, mas na falta dos conceitos fundamentais da crítica da
economia política, mesmo no plano lógico a descontinuidade fica
a meio caminho. E, no plano histórico, a falta de uma lógica da
descontinuidade (o outro lado do discurso dialético) tem como
resultado algo como um contínuo histórico, cujo ponto de
chegada inevitável é o comunismo. Assim, sob mais de um
aspecto, o discurso quase-historicista que se quer
não-totalizante, antifilosófico e antifinalista se inverte no
seu contrário.
Antes de concluir é preciso aprofundar ainda a lógica desse
texto, de qualquer modo notável, que é a "Ideologia
Alemã". Vimos que o que caracteriza a "Ideologia
Alemã" -como também o "Manifesto"- é o fato de
considerar a posição como equivalente da atividade: se o
conceito não for imediatamente "adequado" (no sentido
filosófico do termo "adequação"), mas
"adequado" à atividade prática, ele é apenas
determinado e não posto. E, sendo assim, ele não significa o
que pretende significar. Nada mais característico da lógica da
"Ideologia Alemã" do que a passagem em que Marx define
o termo "comunista": "Fica evidente também a
partir dessa discussão o quanto Feuerbach se engana quando,
graças à qualificação de "homem comum", ele se
declara comunista, (designação que é) transformada num
predicado do homem, e assim crê poder transformar de novo numa
pura categoria a palavra comunista, que no mundo atual designa o
seguidor de um partido revolucionário determinado" (W 3, p.
41, (F)). "Comunista" é aquele que age como comunista.
Se ele tiver apenas idéias comunistas, tem a determinação de
comunista, mas não a posição. Se esse movimento tem alguma
coisa a ver com o universo da filosofia pós-kantiana alemã, a
referência não é certamente Hegel. Embora o texto tenha -como
foi dito- uma ressonância historicista, há um paralelo
possível com o pós-kantismo na figura da filosofia de Fichte.
A "Ideologia Alemã" e, em particular, as "Teses
Sobre Feuerbach", que fazem parte do mesmo conjunto de
textos, querem realizar o "lado ativo" que só o
"idealismo" desenvolveu. E criticam a tradição
materialista por não ter considerado o objeto, a realidade,
subjetivamente (6). Como em Fichte, "atividade",
"auto-atividade" e também "vida" são
termos-chave. Trata-se nos dois casos, embora em sentidos
diferentes, de exorcizar de certa forma -não absolutamente em
Marx- a coisa-em-si, por meio de uma conversão da sensibilidade
e da intuição em atividade. Só que, evidentemente, se em
Fichte a atividade é posição, na "Ideologia Alemã"
a posição é atividade. E a exorcização da coisa-em-si em
Fichte se faz antes por uma interiorização do
"sensível" do que por uma exteriorização dele; por
isso, a transcendentalidade fichtiana cairia sem dúvida sob a
crítica do "misticismo", tal como se encontra na tese
oito, e em geral na "Ideologia Alemã". Não é menos
verdade que há uma certa homologia entre as duas
"demarches".
São Paulo, domingo, 04 de março de 2001
Ruy Fausto é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e professor de filosofia na Universidade Paris 8, autor, entre outros, de "Dialética Marxista, Dialética Hegeliana -A Produção Capitalista como Circulação Simples" (Paz e Terra).