O OCASO DA JUVENTUDE DOURADA DA GLOBALIZAÇÃO
Retração econômica destrói ilusões da "classe global" dos anos 90, ligada à internet, propaganda e turismo, e joga por terra produção ideológica da esquerda deslumbrada
Por muito tempo as declarações
opostas dos intelectuais sobre o caráter da globalização
pareciam manter a balança em equilíbrio: são maiores os riscos
ou as chances? Temos de lidar com um limite objetivo do
desenvolvimento capitalista ou com uma nova era de acumulação
do capital? A pobreza global aumenta ou diminui? Levantava-se
teoria contra teoria, análise contra análise, estatística
contra estatística, interpretação contra interpretação. Na
verdade, todo esse debate foi definido por uma intelligentsia que
nos centros ocidentais observava de camarote o processo. O
raciocínio era platônico; não estava em jogo a própria pele
social. Era o jogo das contas de vidro de uma virtualidade que
não devia mostrar seu núcleo social duro. Nos últimos anos
isso se alterou por completo. Desde o colapso da nova economia no
começo do ano de 2000, as crises sociais vêm se estendendo cada
vez mais também pelos países ocidentais. Agora não são
atropelados apenas grupos marginais sem grande representação
(desempregados por tempo indeterminado, dependentes da
assistência social, imigrantes e ilegais, pessoas à procura de
asilo, mães solteiras, inválidos, os grupos afetados pela
velhice desamparada etc.); também o centro da sociedade é
atingida. As rendas da grande maioria diminuem, os sistemas de
seguro social se decompõem, os serviços públicos são
desmantelados, a assistência médica dos cidadãos normais se
encontra ameaçada. A privatização dos riscos assume uma
dimensão de encargos financeiros que acaba destruindo o padrão
de vida anterior e estrangulando a economia interna.
O sonhos de muitos
Mas, sobretudo, a crise socioeconômica atingiu fundo justamente
aquela parcela das sociedades ocidentais que menos esperava por
isso, a saber: a pretensa "geração fundadora" do ramo
da internet e, no sentido mais amplo, as camadas competentes da
chamada sociedade da informação ou do conhecimento, que já
foram tratadas como as grandes ganhadoras com a globalização.
Ainda há pouco o sociólogo liberal Ralf Dahrendorf falou da
"classe global" nesse sentido, a qual lhe parecia ser o
novo paradigma da dominação social. Essa "classe",
segundo Dahrendorf, começou a "dar o tom", a
generalizar seus valores, a fazer de suas inclinações
específicas os sonhos de muitos. Sem dúvida alguma, isso é
correto. E é preciso até mesmo ampliar o círculo social dessa
"classe global". A ela se ligam não apenas a
indústria de software e as empresas de prestação de serviços
pela internet, como a Amazon etc., mas também as tecnologias
"duras" de alguns setores da produção e das
prestações de serviços industriais que ascenderam no curso da
globalização, como a indústria aeronáutica e as empresas
aéreas, para não contar os produtores de hardware. Além disso,
há os serviços comerciais como a indústria de turismo e de
propaganda, que, embora já tivessem tido sua primeira
florescência nos tempos do fordismo, passaram a vivenciar um
novo surto na sequência da terceira revolução industrial e da
globalização. Não em último lugar, trata-se também da
"produção ideológica" no sentido mais amplo, isto
é, de um campo de atividades da indústria cultural que se
expandiu particularmente nos anos 90. Nesse campo se desenvolveu
uma larga camada de novos trabalhadores da mídia, a qual criou o
slogan "sociedade do conhecimento", divulgando-o de
maneira folhetinesca a fim de celebrar a si mesma. São esses
pretensos "campos do futuro", especialmente forçados
pelo processo de globalização, que foram arrasados mais
violentamente pelo ciclone da crise e transformados em zonas de
destroços econômicos. Como se sabe, verificou-se que a
magnificência toda se baseava apenas em uma conjuntura
determinada pelas bolhas financeiras. Nem todas as Bolsas
estouraram, mas já uma parte suficientemente grande para causar
o revés violento na economia global, o qual derrubou em primeiro
lugar os setores de inovação. As novas tecnologias e as novas
mídias não desaparecem naturalmente por causa disso; tampouco a
globalização é anulada. Mas é mais do que claro que a
terceira revolução industrial e a globalização não podem
trazer um nova era de crescimento capitalista. As potências
tecnológicas e a socialização planetária do século 21 são
completamente incompatíveis com as formas socioeconômicas
anteriores da modernidade. O Ocidente e os centros asiáticos
vivenciam agora o mesmo processo de dissolução social e de
barbárie que já se propagou pelas regiões do Terceiro Mundo,
fracassadas com a "modernização recuperadora". A
ambivalência das interpretações desapareceu; o assunto é
decidido negativamente.
Saguões dos aeroportos
É claro que não se trata meramente de um processo objetivo. A
consciência social precisa elaborar de algum modo a crise que
irrompe. Isso concerne sobretudo àquelas novas camadas sociais
que, segundo Dahrendorf, haviam começado a "dar o tom"
em termos culturais e simbólicos e cujos campos agora são
soterrados. Com que mentalidade e com que ideologia nós temos de
lidar nesse contexto? Dahrendorf ilustra a "classe
global" com aquelas conhecidas figuras que "passam
muito tempo nos saguões dos aeroportos internacionais",
tagarelando sem parar em seus celulares. São pessoas que levaram
Tony Blair ao poder e assinam sua doutrina do "new
labour". Na Alemanha, a etiqueta se chama "novo
centro".
Não é uma classe de grão-mogóis capitalistas, ainda que Bill
Gates conste dela; mas tampouco é uma "classe
trabalhadora" claramente definida. Poderíamos designá-la
como "empresários de seu capital humano", não
importando de que forma eles investem em si mesmos. Muitas vezes
são prestadores de serviço móveis, do excêntrico da
computação aos animadores dos clubes
"Meditérranée".
O tipo se encontra em todo o mundo, mas naturalmente, como a
globalização, em densidade diferente. Se no Terceiro Mundo é
uma camada urbana diminuta, nós encontramos nos países
ocidentais uma ampla base de grupos sociais, com um determinado
projeto de vida, que se sentiram como parte da "classe
global", pelo menos segundo a possibilidade. Também aqueles
cuja posição econômica na verdade já era precária desde o
início puderam imaginar para si, com o auxílio das redes
sociais (ou do suporte familiar dado pelas gerações mais velhas
do "milagre econômico", há muito tempo transcorrido),
um futuro no "novo centro", participando de certo modo
do "capital cultural" (Bourdieu) dos novos setores
aparentemente promissores.
Mas é indiferente se se trata dos que ascenderam socialmente na
curta era da nova economia ou meramente dos sonhadores
ideológicos da "sociedade do conhecimento", dos
pequenos empresários da indústria cultural ou dos trabalhadores
baratos das mídias: é uma classe de ilusionistas econômicos e
políticos. Até mesmo a competência e o profissionalismo
ostentados são amiúde meros produtos da simulação.
O culto ideológico pós-moderno da virtualidade tem seus
fundamentos tecnológicos nos mundos ilusórios das novas mídias
e no espaço de comunicação "desrealizado" da
internet. Em termos econômicos, corresponde a isso a arquitetura
aérea do capitalismo das bolhas financeiras que hoje chega ao
fim; em termos políticos, a encenação de figuras imaginárias
preparadas pela mídia e de vocábulos-design conforme o padrão
da propaganda comercial. Essa virtualidade determina a
consciência da juventude socializada nos anos 90, a qual
constitui um segmento substancial da "classe global"
difusa. Em geral são pessoas jovens (mais ou menos entre 25 e 40
anos) que definem a imagem do "novo centro".
Grau zero
Por um lado, essa "classe global" jovem não tem
passado nem futuro; ela sucumbiu à ausência de história do
mercado total. Apesar disso ela é, por outro lado, o produto de
uma experiência histórica determinada. Seu grau zero foi o fim
do socialismo, o colapso dos movimentos de libertação e dos
regimes desenvolvimentistas no Terceiro Mundo, o ocaso do velho
paradigma marxista, o emudecimento da crítica social
emancipatória e a decadência da reflexão teórica em geral. Em
muitos aspectos, pode-se falar de uma "jeunesse
dorée", de uma "juventude dourada", leviana,
consumista e viciada em diversões. O protótipo dessa
designação foi a juventude parisiense contra-revolucionária
após a queda dos jacobinos (1794). Foram os filhos de uma
minoria rica da grande cidade, como hoje no Terceiro Mundo,
separada do grosso de seus contemporâneos. Nos centros
ocidentais, ao contrário, é a maioria de uma determinada
geração que tem de viver agora seu Waterloo socioeconômico. A
"classe global", no sentido mais amplo, é ainda jovem,
mas seu futuro já passou. Isso é perceptível não apenas pelos
parâmetros econômicos. Muitos não puderam nem sequer assimilar
o desastre social em que se dissolveram seus sonhos e suas
fantasias. Mas o choque de realidade vai além da experiência de
não poder pagar mais o aluguel e de se ver de repente, após as
esperanças ambiciosas da nova economia, fazendo bicos
deploráveis. Foi também o abalo de 11 de setembro que quebrou o
pescoço da pós-modernidade. O simbólico desse ataque
terrorista salta aos olhos quando se lê a descrição que
Dahrendorf faz da "classe global": "Os que
chegaram ao arranha-céu das possibilidades não podem alcançar
o topo; hoje em dia o topo está muito longe para a maioria...
Mas, enquanto os elevadores só sobem até o décimo andar e
outros só começam no 50º, há para todos uma subida. Mas nesse
caso se trata daqueles que nem sequer alcançam o andar térreo
do edifício das possibilidades". Com um único golpe, a
destruição brutal das torres gêmeas e a queimadura do Marco
Zero tornou evidente para a "classe global" e seus
oportunistas ideológicos que seu "arranha-céu das
possibilidades" não é o mundo inteiro e que a "fúria
bárbara da destruição" não poupa nem mesmo os centros. O
fim das ilusões econômicas é também o fim da
"segurança". Para medir como a "jeunesse
dorée", agora não mais tão dourada, da pós-modernidade
decaída assimila sua própria crise, pode se aduzir como
indicador a geração correspondente dos radicais de esquerda.
Sem dúvida é uma pequena minoria ideológica, mas que passou,
como parte integrante da sociedade, pela mesma socialização e
provém do mesmo meio e dos mesmos setores sociais. Justamente
porque ela precisa se legitimar no interior dessa relação com a
pretensão do pensamento refletido, ela pode servir de
sismógrafo para as tendências mais gerais. Essa esquerda
virtualizou sua própria radicalidade há muito tempo, conforme o
padrão da sociedade circundante. A crítica econômica dura foi
substituída em grande parte por um culturalismo brando. Por esse
motivo, a minoria de esquerda se encontra tão despreparada
diante das catástrofes econômicas e políticas da
pós-modernidade em colapso quanto a grande maioria da
"classe global". Sob a pressão dos fenômenos reais
que não se deixam mais "desrealizar", dissolvem-se os
paradigmas de qualquer modo já extenuados de uma crítica social
cujos conceitos se tornaram completamente imprestáveis. Na
presente crise mundial, o chão social comum das forças sociais
concorrentes passa a tremer, as formas categoriais comuns se
rompem, o sistema referencial comum choca em seus limites. A ala
esquerda da "classe global" e de sua "jeunesse
dorée" é completamente incapaz de se colocar esse
problema.
Alternativas repugnantes
Uma parte refugia-se em reações regressivas. A
reinterpretação culturalista da crítica do capitalismo e do
antiimperialismo se aproxima de idéias reacionárias,
saturando-se de anti-semitismo e de concepções
neonacionalistas. O conceito de "povo", tal como deve
ser mobilizado contra as consequências negativas da
globalização capitalista, desvela sua qualidade
antiemancipatória de estreiteza "étnica".
O espectro da regressão ideológica vai da nostalgia
nacional-keynesiana até o projeto folclórico, incluindo a
simpatia pelos terroristas suicidas. Uma outra parte da esquerda
na "classe global" gostaria de se refugiar atrás dos
muros da fronteira imperial a fim de barrar a barbárie lá fora
no Terceiro Mundo. De súbito, essa esquerda se torna tão
estupidamente pró-americana quanto seus pais eram estupidamente
antiamericanos. Invocam irrefletidamente os "valores
ocidentais", o "mito de Nova York" e os deleites
do consumo de mercadorias. A crítica do capitalismo é
abandonada; antes de tudo a máquina militar norte-americana deve
criar a "ordem".
Essas alternativas são tão repugnantes que alguns jovens
enojados da esquerda da "classe global" decadente
quiseram recorrer aos fósseis do marxismo tradicional. Mas o
mundo dos proletários das máquinas a vapor está tão distante
das condições sociais hodiernas da crise que essa espécie de
nostalgia é tomada a sério por muito poucos. A ala esquerda da
"jeunesse dorée" pós-moderna declinante mostra em
suas reações ignorantes que a "classe global" em seu
todo está paralisada. Mas talvez essas pessoas ainda
biograficamente jovens, que não podem se desligar da
socialização dos anos 90, já sejam na verdade os velhos, e os
de esquerda com 30 anos de idade sejam como que "vovôs
vermelhos". Nos protestos em massa no mundo todo contra a
Guerra do Iraque se manifesta uma nova geração, de pessoas de
15 a 20 anos, para a qual a visão do mundo da geração da nova
economia e de sua esquerda é já parte da história. Esperemos
que eles venham a compreender melhor que os novos tempos e as
novas crises requerem também novas respostas da crítica social
emancipadora.
Julho de 2003
Robert Kurz é sociólogo e
ensaísta alemão, autor de "Os Últimos Combates" (ed.
Vozes) e "O Colapso da Modernização" (ed. Paz e
Terra). Ele escreve mensalmente na seção "Autores",
do Mais!.
Tradução de Luiz Repa.
http://www.oocities.org/grupokrisis2003/