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Depoimento de Abílio Augusto Pires
 
 

INTRODUÇÃO

    Aceitei colaborar nesta página e nem sei explicar porquê. Não tem grande importância: sempre pensei que os porquês são muito importantes nas ciências exactas mas eu não vou fazer ciência.
    Não aspiro ser vedeta. Fui sempre contra os vedetismos e só admirei a Rosa Mota até ao momento em que a soube nos estados-gerais do P.S. . Não fiquei desiludido: ouvi dizer que tinha os pés chatos como o Presidente Sampaio e é certo e sabido que quem tem algo de chato acaba por ir parar ao P.S..  Inevitavelmente.
    Não sei escrever. Nunca passei de “polícia da Régua” e um “polícia da Régua” não é obrigado a saber escrever bem. Não precisa sequer de saber escrever “corcel”. Basta que saiba escrever “cavalo” e se pronunciar “cabalo”. Não vem daí mal nenhum. A Rosa Mota pronuncia assim e foi a Tóquio e aos estados-gerais do P.S..
    Não quero o Prémio Nobel da Literatura. Como havia de querê-lo, eu que nunca tive paciência para ler o grande Saramago?...
    Não aspiro sequer a uma pena de ouro. Pena de ouro “só há um, Raul Rêgo e mais nenhum”.
    Eu, posto isto, vamos ao que me é pedido.
 
 

I E II BIOGRAFIA

    É tão simples, tão banal que mais valeria dizer que não tenho.
    Nasci numa pequeníssima aldeia a escassos 3 quilómetros de Bragança. Não fora o IP4 a estabelecer uma fronteira e a cidade teria devorado já a pacatez e o silêncio em que vivo.
    Filho de lavradores modestos (Trá-os-Montes não é o Alentejo) fiz em Bragança o ensino secundário.
    No 7º ano, então último do Liceu, obtive uma média de 16 valores o que, ao tempo, me dispensava do exame de admissão à Universidade. Era meu sonho tirar o curso de Direito. Mas em Bragança não era possível, nem mesmo no Porto. Só em Coimbra ou Lisboa poderia fazê-lo e os meus pais não dispunham de meios que o permitissem. Fiz o serviço militar obrigatório como miliciano e, no ano seguinte, concorri à PIDE, onde entrei em 7 de Janeiro de 1950.
    Não perdera sonho de cursar Direito e logo que me foi possível matriculei-me, discretamente e como aluno voluntário, na velha Faculdade do Campo de Santana. Fiz o 1º ano sem grandes problemas não obstante as naturais dificuldades de adaptação e o facto de a vida profissional me não permitir a comparência a mais do que umas dezenas de aulas. Valiam-me as “sebentas” que alguns colegas e amigos me iam facultando. E estava no 2º ano quando a PIDE decidiu nomear-me para frequentar um curso nos Estados Unidos da América, mais precisamente na CIA, de que pouco mais conhecia do que a sigla. Tratou-se, no meu caso, de um curso de informação e contra-informação, “espionagem e contra-espionagem”, como eles preferiam dizer. Eram matérias do meu gosto, até porque era nisso que eu já trabalhava. Não aprendi muito. Apercebi-me, a breve trecho, de que eles não eram melhores que nós. A diferença residia nos meios disponíveis, já que os deles eram quase infinitamente maiores do que os nossos. Porque vem a talho de foice, esclarecerei que vem daí o facto de, após o 25 de Abril, eu ser acusado de “especialização em torturas na escola da CIA. Dá vontade de rir, porque tais acusações resultam tão somente da incompetência, direi mesmo, da ignorância de certos analistas. Desde logo porque a CIA, como a própria sigla indica, é uma Agência de Informação. E embora se trate de uma Organização poderosíssima, cujos tentáculos se estendem ao mundo inteiro, a verdade é que não tem presos, não faz interrogatórios nem instrução de processos por se tratar de matérias que são da exclusiva competência do FBI. E isto toda a gente sabe com excepção dos nossos “profissionais” de Comunicação Social.

    Regressado a Lisboa, foi-me logo comunicado que não poderia continuar os meus estudos de Direito, uma vez que se havia gasto muito dinheiro com a minha especialização nos E.U.A.. Nem sequer era verdade porque os americanos haviam suportado todas as despesas com excepção das ajudas de custo – uns 40 e tal contos – que constituíram o meu primeiro depósito bancário e serviram depois para pagar o meu primeiro carro. Como já era casado e tinha responsabilidades de família, desisti do curso e continuei a trabalhar na Informação, agora de uma forma um pouco mais sofisticada dado que os americanos haviam oferecido algum material, embora pouco e um tanto “demodé”.
    Nos últimos anos da década de 50, fui colocado, que não transferido, na Direcção dos Serviços de Investigação. A ideia inicial teria sido a de servir de elemento de ligação entre os dois serviços o que, do meu ponto de vista, se justificava plenamente. E justificava-se porque se era verdade que a Informação fornecia à Investigação os elementos que permitiam iniciar processos, não o era menos que esta última acabava por recolher pormenores que a Informação não poderia conhecer. Eram serviços complementares que como tal deveriam funcionar. Aconteceu que, tempos depois, foram detidos alguns intelectuais sobejamente
conhecidos – médicos, advogados, economistas, arquitectos, etc. e fui incumbido de interrogá-los e instruir os processos respectivos. Creio que não me saí mal de todo e a verdade é que, terminada essa tarefa, eu tive a oportunidade de penetrar na rede do Partido Comunista Português e desmantelar os sectores intelectuais de Lisboa, Porto, Coimbra e Aveiro. Daí o epíteto de “intelectual” com que ainda hoje vou sendo mimoseado pela própria comunicação social. O que é, de todo injusto, pois não faltavam à PIDE funcionários capazes de fazer o que eu fiz, porventura melhor do que eu.
    De qualquer forma, eu disse em entrevista a um semanário que, em termos económicos, terá sido esse um dos maiores golpes que o partido comunista sofreu. E mantenho essa opinião porque, enquanto o “militante” rural do Alentejo pagava para o partido uma cotização mensal da ordem dos 2$50 ou 5$00, eu encontrei naqueles sectores pessoas bem lançadas na vida que pagavam cotizações mensais de 100 contos, para além de fornecerem os automóveis em que os funcionários clandestinos se faziam transportar.
    Em 1965, já como inspector, regressei à Informação.
 
 

III

    Todas, desde agente-auxiliar até Inspector-Adjunto. Direi,  sem falsa modéstia, que fui o Inspector de Carreira mais novo da Organização. Percorri todos os degraus da hierarquia e, até Chefe de Brigada, sempre por concurso que englobava provas escritas e orais. A partir dessa categoria foi diferente: só fui Chefe de Brigada um ano por ter sido promovido a Subinspector por distinção. Também só fui Subinspector um ano por ter sido nomeado Inspector. Fui Inspector 3 anos porque era isso o que a lei exigia para se poder ocupar o lugar de Inspector-Adjunto.
 
 

IV

    Atingi a categoria de Inspector em 1965 e regressei à Direcção dos Serviços de Informação a que sempre pertencera. Passei de imediato a dirigir o CI2 (Centro de Informação nº2) sem dúvida um dos mais árduos da Organização. Bastará referir que centralizava toda a informação relativa ao Ultramar e Estrangeiro, abrangia o gabinete NATO, o Conselho de Segurança Interna que funcionava no Ministério da Defesa Nacional, em cujas reuniões passei a participar como representante do Ministério  do Interior e tinha ainda a meu cargo os contactos com Polícias estrangeiras. Como Inspector-Adjunto mantive as mesmas funções até 25 de Abril de 1974. Foram 9 anos de uma actividade intensa e intensamente vividos. Sustentávamos uma guerra em três frentes. No estrangeiro, as actividades contra a segurança do Estado Português não abrandavam, antes pelo contrário. Vi-me, assim, obrigado a viajar constantemente pela Europa e por África num dinamismo constante e por tal forma desgastante que ainda hoje vou sofrendo as consequências. E quando chegava a Lisboa, encontrava sobre a secretária pilhas enormes de documentos que urgia ler e despachar, no que consumia dias inteiros e parte das noites. Mesmo assim, consegui montar uma boa rede de informação na Europa e também em África apesar de, aí, ela estar a cargo das Delegações Provinciais.
 Não gostaria de falar de factos relevantes meus ou de outros. Dos meus (se algum tive) porque não posso ser juiz em causa própria. De outros (e conheci muitos!) por razões éticas e de respeito para com os seus autores. Mas para não fugir à questão, falaria “en passant” de algumas coisas que eu próprio fiz e não considero relevantes porque consciente de que qualquer colega, no meu lugar, teria feito o mesmo ou, porventura, melhor.
    A minha rede de informação na Europa funcionava bem, em especial na França, Bélgica e Suíça. Tão bem que permitia controlar, quase ao pormenor, os passos de terroristas e assaltantes que por lá campeavam. Referir-me-ei, a título de exemplo, a Liga de Unidade Antifascista revolucionária (LUAR), cujo chefe operacional era Hermínio da Palma Inácio. Essa organização havia assaltado a Agência do banco de Portugal na Figueira da Foz, o que lhe rendera um montante de 28.000 contos. Foi sem dúvida um “golpe” inédito em Portugal, que só foi possível por se tratar de uma “associação de malfeitores” de crime comum, já que a LUAR só nasceu como organização depois do assalto e com o único objectivo de inviabilizar as respectivas extradições. E permitir-me-ia lembrar que 28.000 contos naquela época equivaleriam a muitas centenas de milhar hoje. De qualquer forma, consegui recuperar 22.000 contos, dos quais cerca de metade em território nacional e o restante (um pouco mais de metade) numa Quinta situada nos arredores de Paris. A minha rede de informação permitiu-me ainda deter o Palma Inácio e o seu “exército” quando entraram de novo em Portugal e responder de forma que também terá sido inédita: - Fui eu quem comprou e pagou a serra com que o Palma Inácio fugiu do calabouço da PIDE, no Porto. Fi-lo porque tinha a certeza de que o apanharia de novo logo que voltasse a Portugal e, principalmente, porque “queria limpar” um dos meus informadores, cuja vida corria perigo. Saí-me bem. Tão bem que quando, tempos depois, reentrou em Portugal, com o seu novo “exército”, foi tudo detido na hora H, ou seja, no preciso momento em que se preparavam para assaltar nova agência bancária.
    Em África, recrutei um Oficial de Polícia da Tanzânia que, por ser piloto aviador e um bom perito em fotografia aérea, passou a fornecer-me as fotografias de bases da FRELIMO, situadas para lá das fronteiras de Moçambique.

    Ficar-me-ia por estes dois exemplos, que não pretendem passar disso mesmo. Mas há um outro aspecto da minha actividade que não desejaria passar em branco porque já foi alvo de especulações por parte de certa imprensa: num país em guerra, corre-se sempre o risco de ter que suportar as “ofertas” de pseudo-informadores que mais não pretendem do que extorquir dinheiro. Portugal não poderia fugir à regra e os pseudo-informadores saltavam de Embaixada em Embaixada em tentativas constantes de extorsão. Os nossos Embaixadores dfendiam-se e, por norma, despachavam esses assuntos para para os adidos militares que, por sua vez, se defendiam também, oficiando ou telefonando à PIDE a pedir um “técnico” que avaliasse a “mercadoria”. Por força das circunstâncias, o “técnico” era eu. Lembro-me de variadíssimos casos mas o mais curioso ocorreu na Embaixada de Portugal em Haia. O Senhor embaixador tratou o caso pessoalmente com o Director-geral da PIDE,  Major Silva Pais. E lá fui eu, no primeiro avião, para a Holanda. Em Haia, aguardava-me o Senhor Embaixador que me narrou o caso e disse que jantaríamos os três, ele, eu e o informador em determinado local. Perguntei-lhe se havia dito ao informador que ia alguém de Lisboa para o ouvir e perante a sua resposta afirmativa disse-lhe: “Tenho muito gosto em jantar consigo mas seremos só os dois porque o homem não aparece”. Não acreditou e garantiu-me que o homem apareceria pois tinha a certeza de que eram verdadeiras muitas das suas informações. A verdade é que não compareceu. Intrigado, o Senhor Embaixador perguntou-me como tinha eu “adivinhado” a não comparência, ao que respondi: “Não só conheço a história como sei quem lha contou”. Continuou a não acreditar pelo que lhe propus o seguinte: “Vamos à Embaixada e autorize-me a telefonar para Lisboa. Amanhã, à chegada do avião de Lisboa eu mostro-lhe a fotografia do seu informador”. Assim fizemos. Liguei para o CI2 e disse ao Chefe da Secretaria: “Enderece um envelope ao Senhor Embaixador de Portugal em Haia. Introduza nesse envelope a fotografia de F... e mande entregar ao Comandante do avião da TAP.” Na manhã seguinte lá estávamos, no Aeroporto. O Senhor Embaixador recebeu o envelope, abriu-o e exclamou de imediato: “Mas isto é incrível”! E repetiu a exclamação. Pela minha parte limitei-me a dizer-lhe  com bonomia: “Não é nada incrível. Se lhe lerem uma página de Eça e outra de Camilo, V. Excia. sabe qual é a de um e qual a do outro”... “Com certeza”, respondeu. “Foi só isso o que eu fiz. V. Excia. Leu-me a página e disse-lhe quem é o autor”. E despedimo-nos. Na verdade, era a terceira vez que o nosso homem tentava vender aquela história, embora com variantes. Eu só o vira uma vez, em Paris, mas aproveitara para o fotografar muito discretamente.
 Não cito o nome do Senhor Embaixador que julgo vivo e são. Rirá com certeza se ler esta página.
 
 

V

    Que poderia eu dizer sobre o regime anterior a não ser que concordei em absoluto com ele e por isso o servi o melhor que pude e soube? Salazarista convicto, jamais renunciarei às minhas convicções. Para mim Salazar confundiu-se com o regime e este com a Pátria e creio bem que nem o Frei Melícias e o Brigadeiro D.Januário juntos conseguiriam levar-me a mudar de ideias. E, se me esgotassem os argumentos, dir-lhes-ia que sou católico, apostólico, romano e quero comparecer no Juízo Final, no Vale de Josafá, como homem de direita que sempre fui. E aí, di-lo a sagrada escritura, os bons vão para a direita e os réprobos para a esquerda.
    Nos meus verdes anos, fiz-me salazarista já nem sei bem porquê. Talvez porque Salazar foi um provinciano como eu e como eu deveu a “Deus a graça de ser pobre”. Era incorruptível, pelo que também deveu a Deus a graça de morrer pobre. Como me acontecerá. Foi, sem sombra de dúvida, o maior estadista do seu século: herdou um país arruinado por duas décadas de desgovernação vergonhosa, desprestigiado, sem ordem, sem dinheiro e sem crédito. Em vez de acusar os governos anteriores, como hoje se tornou hábito, remeteu-se ao silêncio do seu gabinete e equilibrou as finanças, restabeleceu a ordem pública e reconquistou um prestígio internacional que lhe permitiu atravessar incólume a Guerra Civil de espanha e a Segunda Guerra Mundial. E, apesar de Yalta, conservou o Portugal de Além-mar. Não me agrada alongar-me sobre este assunto porque já o fiz mais de uma vez através da imprensa. Acresce, de resto, que já vejo e oiço, nos ecrãs de televisão, homens de extrema-esquerda confessarem compungidamente os méritos de estadista de António de Oliveira Salazar. Mas não posso esquecer-me de África e dos africanos. Não posso esquecer uma Angola que conheci próspera e feliz agora esventrada por rebentamentos de bombas e de minas, com a sua população desnutrida esfomeada que se não morre de um tiro ou de uma granada, morre por falta de alimento ou por força de doenças há muito erradicadas. Como não posso esquecer uma Guiné menos próspera sem dúvida, mas onde sempre se arranjava um punhado de arroz para matar a fome o que é impossível agora face à intervenção de tropas estrangeiras. Ou Moçambique, com larguíssimos recursos terrestres e marítimos mas que figura nas estatísticas como o país mais pobre do mundo. Está agora, ao que parece, numa paz expectante, aguardando que um grupo de Zulos se juntem porque um deles se lembrou de soprar num corno de búfalo ou que umas dúzias de Macondes desajeitados desçam do planalto às cambalhotas. Como não posso esquecer o povo martirizado de Timor, traído e abandonado pelos mesmos portugueses que choram agora lágrimas de crocodilo.
    Estamos na Europa, dir-me-ão. É verdade. Estamos na Europa de mão estendida, vergonhosamente. E se não tenho nada contra a “Europa das Pátrias” o mesmo não direi de uma Europa federal ou globalizada como soe dizer-se: “A Pátria não se discute”, disse Salazar. E talvez os federalistas, os defensores da globalização desconheçam ou não se lembrem de que também Hitler queria a Europa. E queria-a amalgada e amassada por um exército comum, uma economia  e um sistema monetário comuns, por uma política de estrangeiros comum”.  Dir-me-ão agora que os meios eram diferentes e horrorosos. Totalmente de acordo. Mas não posso deixar de responder que não foi a direita quem disse que “os fins justificam os meios”. Mas isto é assunto para economistas e políticos. Não o é seguramente para “polícias da Régua” e eu nunca passei disso. Pelo que fico por aqui.
 
 

VI

    Sobre o regime actual, creio bem que nem valerá a pena pronunciar-me, já que a minha resposta está implícita na que dei anteriormente.Acresce que foi aceite pelos portugueses bem ou mal informados, enganados ou não, violentados ou descomprometidos.
    De qualquer forma, optaram e creio que não devo, aqui e agora questionar essa opção. Já quanto ao governo a questão se me põe em termos diferentes. É verdade que também ele foi eleito por vontade dos portugueses, melhor diria, de alguns portugueses. Mas foi-o a um nível diverso porque partidário e de forma crapulosa através de falsas promessas que não foram nem serão cumpridas. E eu nunca poderia concordar com um governo crapuloso e libertino, com um governo que o não é porque dialoga ou diz dialogar mas não governa. Não sou contra o diálogo, sou contra a falta de decisão. Veja-se o que se passa nos domínios da saúde, da justiça, da educação, dos transportes, da agricultura, da segurança das pessoas e bens: - Se os médicos não estão em greve, estão os enfermeiros. Se os juízes não protestam, fá-lo o Ministério Público e de tal forma que se “quem rouba um tostão é ladrão, quem rouba um milhão é barão” mesmo que para tal se deixem ultrapassar todos os prazos até à prescrição. Se os professores não estão em greve, estão os estudantes que fecham as escolas a cadeado ou ocupam as instalações dos Conselhos Directivos. Se os pilotos não estão em greve, está o pessoal de terra. Se os maquinistas da CP não estão em greve, estão os camionistas. Se Souselas não está em greve, está a Maceira ou se ambas acalmam começa o Barreiro. Se os agricultores não protestam, fazem-no os suinicultores ou os bovinicultores. Deixei para o fim a Segurança de pessoas só para dizer que passeei sòzinho ou mesmo com a mulher e o filho, vezes sem conta e sempre desarmado, por locais onde hoje a Polícia não vai. E que ninguém pense tirar dividendos desta afirmação, porque a culpa não é da Polícia. A Polícia cumpre como sempre cumpriu. Enfim, segundo o calendário chinês, estamos no ano do Coelho e pode ser que as coisas mudem. Mas não será com 8500 polícias mais que elas mudarão. Mudariam sim se dignificassem os que têm, se os nobilitassem, se lhes restituíssem a autoridade e o respeito que lhes são devidos e de que os despojaram, se os dotassem de meios que os novos tempos exigem, se deixassem de encarcerar polícias e soltar criminosos. E o que é dramático no meio desta barafunda em que vivemos é que se fala constantemente na criação de milícias populares. Eu confesso que estremeço, creio que chego a corar como se ainda tivesse algo a ver com isso. Se pudesse dar um conselho ao Engenheiro Guterres, seria este: - Cuide-se, estejamos ou não no ano do Coelho. Não se fie em sondagens. Um ano antes do 25 de Abril, eu vi o Professor Marcelo Caetano em ombros pelas ruas de Tomar. E “vi claramente visto” porque andava com ele.
 
 

VI

    Não consigo explicar a génese do 25 de Abril de 1974 sem falar de Salazar, até porque, com ele, nada teria acontecido. Tentarei explicar-me.
A partir de 1968, a oposição ao regime vigente em Portugal foi-se radicalizando de forma gradual mas sempre progressiva. Para mim e creio que para a maioria dos Portugueses que pensavam como eu, as questões que se punham eram fundamentalmente as seguintes:
    - Seria o País capaz de adaptar-se sem sobressaltos a uma realidade nova, após 40 anos de governação de um homem com a sagacidade, a tenacidade, a coragem e o génio de Salazar?
    - A “evolução na continuidade”, desde logo anunciada pelo novo Chefe do Governo, poderia ser exequível e tranquila num país de tão parcos recursos e que, para mais, suportava pràticamente só, uma guerra em três frentes?
    - Como reagiria a Igreja Católica, onde já eram visíveis sinais de degradação como o atestavam, designadamente, os casos do Bispo do Porto e vários párocos como os de Belém, de Alhos Vedros e da Lixa para além de outros, em Angola e sobretudo em Moçambique?
    - Qual a política do Vaticano que, tendo abençoado a nossa ajuda na “dilatação da fé” ao construir o Império, parecia já então evidente que se manifestava contra esse mesmo império?
    - Até quando os dois imperialismos mundiais – Estados Unidos e Rússia – continuariam a seguir políticas paralelas contra aquilo que denominavam por “imperialismo  português” sem outro fim em vista que não fosse a exploração das riquezas existentes no subsolo, em especial no de Angola?
    Tudo isto era deveras preocupante. A verdade, porém, é que também a oposição dita democrática, em Portugal, estava enfraquecida face ao desaparecimento de algumas figuras de proa e ao envelhecimento de outras. E, por outro lado, não se afigurava que a ASP, nascida na Suiça creio que em 1964, viesse nos próximos anos a conquistar um mínimo de credibilidade interna e externa. Acontecia ainda que a própria guerra no Ultramar contribuia para dividir as oposições já que alguns dos mais altos expoentes defendiam a permanência de Portugal em África. Afigurava-se, assim, que seria possível uma transição mais ou menos calma mas que daria o tempo suficiente para a resolução dos problemas africanos. Talvez bastasse confinar o partido comunista português aos seus limites tradicionais, o que nem seria difícil dada a experiência da PIDE nessa matéria.
Não se desconheciam outros problemas como o dos oficiais milicianos a que cada vez mais se recorria e que, salvo honrosíssimas excepções, saíam das Universidades mais versados em marxismo do que em qualquer outra matéria, e iam para as unidades semear essas ideias entre os do Quadro Permanente. Por outro lado, as guerras prolongadas geram sempre a lassidão que passou a ser facilmente detectável entre entre Oficiais do Quadro Permanente com várias comissões no Ultramar. Aí residiu a génese do chamado “movimento dos capitães” que já uma vez defini como “movimento meramente corporativo”, uma espécie de guerrilha de “mamelucos” contra “janízaros” em que cada grupo defendia os seus interesses e tambám o seu “sultão”. O livro de António Spínola “Portugal e o Futuro” viria exaltar as hostes e descer enormemente o moral das nossas tropas. E o “movimento dos capitães” constituído por homens na sua maioria politicamente ingénuos, deixou-se envolver pela dupla constituída pelo p.s. de Mário Soares e o p.c.p. de Álvaro Cunhal que se haviam aliado cerca de três anos antes, em Paris. Uma aliança que mais pròpriamente se diria entre a CIA e o KGB. E, perante tudo isto, o que fez o governo? – Direi que rigorosamente NADA. Posso garantir que o Primeiro Ministro esteve sempre perfeitamente informado. Só que não enfrentou nem deixou enfrentar a situação. E manteve essa posição até à tarde do dia 25 de Abril de 1974, recusando-se inclusivamente a sair do Quartel do Carmo quando os carros que o haviam de levar estavam estacionados junto do elevador de Santa Justa. Não correria o mínimo risco. Um dos Inspectores que o acompanhariam entrou calmamente no Quartel e responsabilizou-se pela sua saída com total segurança. Limitou-se a um breve agradecimento e dizer-lhe que já combinara tudo com o general Spínola e aguardava que chegasse para lhe entregar o poder. Não sairia, portanto, dali.
Termino este capítulo como o comecei: - Com Salazar o 25 de Abril não teria acontecido.
 
 

VIII

    Não posso pronunciar-me sobre o Futuro de Portugal. Não sou profeta nem analista político. Fui polícia e nada mais do que isso. Não estou optimista. O futuro do próprio mundo civilizado é mais do que nunca uma incógnita. Os fundamentalismos tomam aspectos assustadores. Quanto a nós, portugueses, viveremos certamente mais um ano de mão estendida à caridade dos ricos até que estes se cansem de suportar-nos. Depois, receio seriamente o desaparecimento de Portugal como Nação independente e soberana. Mas ainda pode acontecer um milagre que bem poderia ser o aparecimento de um novo Salazar.
 
 



Copyright © 1999 Abílio Augusto Pires