Depoimento de
Abílio Augusto Pires
INTRODUÇÃO
Aceitei
colaborar nesta página e nem sei explicar porquê. Não tem grande importância: sempre
pensei que os porquês são muito importantes nas ciências exactas mas eu não vou fazer
ciência.
Não aspiro ser vedeta.
Fui sempre contra os vedetismos e só admirei a Rosa Mota até ao momento em que a soube
nos estados-gerais do P.S. . Não fiquei desiludido: ouvi dizer que tinha os pés chatos
como o Presidente Sampaio e é certo e sabido que quem tem algo de chato acaba por ir
parar ao P.S.. Inevitavelmente.
Não sei escrever. Nunca
passei de polícia da Régua e um polícia da Régua não é
obrigado a saber escrever bem. Não precisa sequer de saber escrever corcel.
Basta que saiba escrever cavalo e se pronunciar cabalo. Não vem
daí mal nenhum. A Rosa Mota pronuncia assim e foi a Tóquio e aos estados-gerais do P.S..
Não quero o Prémio
Nobel da Literatura. Como havia de querê-lo, eu que nunca tive paciência para ler o
grande Saramago?...
Não aspiro sequer a uma
pena de ouro. Pena de ouro só há um, Raul Rêgo e mais nenhum.
Eu, posto isto, vamos ao
que me é pedido.
I E II BIOGRAFIA
É tão simples, tão
banal que mais valeria dizer que não tenho.
Nasci numa pequeníssima
aldeia a escassos 3 quilómetros de Bragança. Não fora o IP4 a estabelecer uma fronteira
e a cidade teria devorado já a pacatez e o silêncio em que vivo.
Filho de lavradores
modestos (Trá-os-Montes não é o Alentejo) fiz em Bragança o ensino secundário.
No 7º ano, então
último do Liceu, obtive uma média de 16 valores o que, ao tempo, me dispensava do exame
de admissão à Universidade. Era meu sonho tirar o curso de Direito. Mas em Bragança
não era possível, nem mesmo no Porto. Só em Coimbra ou Lisboa poderia fazê-lo e os
meus pais não dispunham de meios que o permitissem. Fiz o serviço militar obrigatório
como miliciano e, no ano seguinte, concorri à PIDE, onde entrei em 7 de Janeiro de 1950.
Não perdera sonho de
cursar Direito e logo que me foi possível matriculei-me, discretamente e como aluno
voluntário, na velha Faculdade do Campo de Santana. Fiz o 1º ano sem grandes problemas
não obstante as naturais dificuldades de adaptação e o facto de a vida profissional me
não permitir a comparência a mais do que umas dezenas de aulas. Valiam-me as
sebentas que alguns colegas e amigos me iam facultando. E estava no 2º ano
quando a PIDE decidiu nomear-me para frequentar um curso nos Estados Unidos da América,
mais precisamente na CIA, de que pouco mais conhecia do que a sigla. Tratou-se, no meu
caso, de um curso de informação e contra-informação, espionagem e
contra-espionagem, como eles preferiam dizer. Eram matérias do meu gosto, até
porque era nisso que eu já trabalhava. Não aprendi muito. Apercebi-me, a breve trecho,
de que eles não eram melhores que nós. A diferença residia nos meios disponíveis, já
que os deles eram quase infinitamente maiores do que os nossos. Porque vem a talho de
foice, esclarecerei que vem daí o facto de, após o 25 de Abril, eu ser acusado de
especialização em torturas na escola da CIA. Dá vontade de rir, porque tais
acusações resultam tão somente da incompetência, direi mesmo, da ignorância de certos
analistas. Desde logo porque a CIA, como a própria sigla indica, é uma Agência de
Informação. E embora se trate de uma Organização poderosíssima, cujos tentáculos se
estendem ao mundo inteiro, a verdade é que não tem presos, não faz interrogatórios nem
instrução de processos por se tratar de matérias que são da exclusiva competência do
FBI. E isto toda a gente sabe com excepção dos nossos profissionais de
Comunicação Social.
Regressado a Lisboa, foi-me logo comunicado que não poderia continuar os meus estudos de
Direito, uma vez que se havia gasto muito dinheiro com a minha especialização nos
E.U.A.. Nem sequer era verdade porque os americanos haviam suportado todas as despesas com
excepção das ajudas de custo uns 40 e tal contos que constituíram o meu
primeiro depósito bancário e serviram depois para pagar o meu primeiro carro. Como já
era casado e tinha responsabilidades de família, desisti do curso e continuei a trabalhar
na Informação, agora de uma forma um pouco mais sofisticada dado que os americanos
haviam oferecido algum material, embora pouco e um tanto demodé.
Nos últimos anos da
década de 50, fui colocado, que não transferido, na Direcção dos Serviços de
Investigação. A ideia inicial teria sido a de servir de elemento de ligação entre os
dois serviços o que, do meu ponto de vista, se justificava plenamente. E justificava-se
porque se era verdade que a Informação fornecia à Investigação os elementos que
permitiam iniciar processos, não o era menos que esta última acabava por recolher
pormenores que a Informação não poderia conhecer. Eram serviços complementares que
como tal deveriam funcionar. Aconteceu que, tempos depois, foram detidos alguns
intelectuais sobejamente
conhecidos médicos, advogados,
economistas, arquitectos, etc. e fui incumbido de interrogá-los e instruir os processos
respectivos. Creio que não me saí mal de todo e a verdade é que, terminada essa tarefa,
eu tive a oportunidade de penetrar na rede do Partido Comunista Português e desmantelar
os sectores intelectuais de Lisboa, Porto, Coimbra e Aveiro. Daí o epíteto de
intelectual com que ainda hoje vou sendo mimoseado pela própria comunicação
social. O que é, de todo injusto, pois não faltavam à PIDE funcionários capazes de
fazer o que eu fiz, porventura melhor do que eu.
De qualquer forma, eu
disse em entrevista a um semanário que, em termos económicos, terá sido esse um dos
maiores golpes que o partido comunista sofreu. E mantenho essa opinião porque, enquanto o
militante rural do Alentejo pagava para o partido uma cotização mensal da
ordem dos 2$50 ou 5$00, eu encontrei naqueles sectores pessoas bem lançadas na vida que
pagavam cotizações mensais de 100 contos, para além de fornecerem os automóveis em que
os funcionários clandestinos se faziam transportar.
Em 1965, já como
inspector, regressei à Informação.
III
Todas,
desde agente-auxiliar até Inspector-Adjunto. Direi, sem falsa modéstia, que fui o
Inspector de Carreira mais novo da Organização. Percorri todos os degraus da hierarquia
e, até Chefe de Brigada, sempre por concurso que englobava provas escritas e orais. A
partir dessa categoria foi diferente: só fui Chefe de Brigada um ano por ter sido
promovido a Subinspector por distinção. Também só fui Subinspector um ano por ter sido
nomeado Inspector. Fui Inspector 3 anos porque era isso o que a lei exigia para se poder
ocupar o lugar de Inspector-Adjunto.
IV
Atingi a categoria de
Inspector em 1965 e regressei à Direcção dos Serviços de Informação a que sempre
pertencera. Passei de imediato a dirigir o CI2 (Centro de Informação nº2) sem dúvida
um dos mais árduos da Organização. Bastará referir que centralizava toda a
informação relativa ao Ultramar e Estrangeiro, abrangia o gabinete NATO, o Conselho de
Segurança Interna que funcionava no Ministério da Defesa Nacional, em cujas reuniões
passei a participar como representante do Ministério do Interior e tinha ainda a
meu cargo os contactos com Polícias estrangeiras. Como Inspector-Adjunto mantive as
mesmas funções até 25 de Abril de 1974. Foram 9 anos de uma actividade intensa e
intensamente vividos. Sustentávamos uma guerra em três frentes. No estrangeiro, as
actividades contra a segurança do Estado Português não abrandavam, antes pelo
contrário. Vi-me, assim, obrigado a viajar constantemente pela Europa e por África num
dinamismo constante e por tal forma desgastante que ainda hoje vou sofrendo as
consequências. E quando chegava a Lisboa, encontrava sobre a secretária pilhas enormes
de documentos que urgia ler e despachar, no que consumia dias inteiros e parte das noites.
Mesmo assim, consegui montar uma boa rede de informação na Europa e também em África
apesar de, aí, ela estar a cargo das Delegações Provinciais.
Não gostaria de falar de factos
relevantes meus ou de outros. Dos meus (se algum tive) porque não posso ser juiz em causa
própria. De outros (e conheci muitos!) por razões éticas e de respeito para com os seus
autores. Mas para não fugir à questão, falaria en passant de algumas coisas
que eu próprio fiz e não considero relevantes porque consciente de que qualquer colega,
no meu lugar, teria feito o mesmo ou, porventura, melhor.
A minha rede de
informação na Europa funcionava bem, em especial na França, Bélgica e Suíça. Tão
bem que permitia controlar, quase ao pormenor, os passos de terroristas e assaltantes que
por lá campeavam. Referir-me-ei, a título de exemplo, a Liga de Unidade Antifascista
revolucionária (LUAR), cujo chefe operacional era Hermínio da Palma Inácio. Essa
organização havia assaltado a Agência do banco de Portugal na Figueira da Foz, o que
lhe rendera um montante de 28.000 contos. Foi sem dúvida um golpe inédito em
Portugal, que só foi possível por se tratar de uma associação de
malfeitores de crime comum, já que a LUAR só nasceu como organização depois do
assalto e com o único objectivo de inviabilizar as respectivas extradições. E
permitir-me-ia lembrar que 28.000 contos naquela época equivaleriam a muitas centenas de
milhar hoje. De qualquer forma, consegui recuperar 22.000 contos, dos quais cerca de
metade em território nacional e o restante (um pouco mais de metade) numa Quinta situada
nos arredores de Paris. A minha rede de informação permitiu-me ainda deter o Palma
Inácio e o seu exército quando entraram de novo em Portugal e responder de
forma que também terá sido inédita: - Fui eu quem comprou e pagou a serra com que o
Palma Inácio fugiu do calabouço da PIDE, no Porto. Fi-lo porque tinha a certeza de que o
apanharia de novo logo que voltasse a Portugal e, principalmente, porque queria
limpar um dos meus informadores, cuja vida corria perigo. Saí-me bem. Tão bem que
quando, tempos depois, reentrou em Portugal, com o seu novo exército, foi
tudo detido na hora H, ou seja, no preciso momento em que se preparavam para assaltar nova
agência bancária.
Em África, recrutei um
Oficial de Polícia da Tanzânia que, por ser piloto aviador e um bom perito em fotografia
aérea, passou a fornecer-me as fotografias de bases da FRELIMO, situadas para lá das
fronteiras de Moçambique.
Ficar-me-ia por estes dois exemplos, que não pretendem passar disso mesmo. Mas há um
outro aspecto da minha actividade que não desejaria passar em branco porque já foi alvo
de especulações por parte de certa imprensa: num país em guerra, corre-se sempre o
risco de ter que suportar as ofertas de pseudo-informadores que mais não
pretendem do que extorquir dinheiro. Portugal não poderia fugir à regra e os
pseudo-informadores saltavam de Embaixada em Embaixada em tentativas constantes de
extorsão. Os nossos Embaixadores dfendiam-se e, por norma, despachavam esses assuntos
para para os adidos militares que, por sua vez, se defendiam também, oficiando ou
telefonando à PIDE a pedir um técnico que avaliasse a
mercadoria. Por força das circunstâncias, o técnico era eu.
Lembro-me de variadíssimos casos mas o mais curioso ocorreu na Embaixada de Portugal em
Haia. O Senhor embaixador tratou o caso pessoalmente com o Director-geral da PIDE,
Major Silva Pais. E lá fui eu, no primeiro avião, para a Holanda. Em Haia, aguardava-me
o Senhor Embaixador que me narrou o caso e disse que jantaríamos os três, ele, eu e o
informador em determinado local. Perguntei-lhe se havia dito ao informador que ia alguém
de Lisboa para o ouvir e perante a sua resposta afirmativa disse-lhe: Tenho muito
gosto em jantar consigo mas seremos só os dois porque o homem não aparece. Não
acreditou e garantiu-me que o homem apareceria pois tinha a certeza de que eram
verdadeiras muitas das suas informações. A verdade é que não compareceu. Intrigado, o
Senhor Embaixador perguntou-me como tinha eu adivinhado a não comparência,
ao que respondi: Não só conheço a história como sei quem lha contou.
Continuou a não acreditar pelo que lhe propus o seguinte: Vamos à Embaixada e
autorize-me a telefonar para Lisboa. Amanhã, à chegada do avião de Lisboa eu mostro-lhe
a fotografia do seu informador. Assim fizemos. Liguei para o CI2 e disse ao Chefe da
Secretaria: Enderece um envelope ao Senhor Embaixador de Portugal em Haia. Introduza
nesse envelope a fotografia de F... e mande entregar ao Comandante do avião da TAP.
Na manhã seguinte lá estávamos, no Aeroporto. O Senhor Embaixador recebeu o envelope,
abriu-o e exclamou de imediato: Mas isto é incrível! E repetiu a
exclamação. Pela minha parte limitei-me a dizer-lhe com bonomia: Não é
nada incrível. Se lhe lerem uma página de Eça e outra de Camilo, V. Excia. sabe qual é
a de um e qual a do outro... Com certeza, respondeu. Foi só isso
o que eu fiz. V. Excia. Leu-me a página e disse-lhe quem é o autor. E
despedimo-nos. Na verdade, era a terceira vez que o nosso homem tentava vender aquela
história, embora com variantes. Eu só o vira uma vez, em Paris, mas aproveitara para o
fotografar muito discretamente.
Não cito o nome do Senhor Embaixador
que julgo vivo e são. Rirá com certeza se ler esta página.
V
Que
poderia eu dizer sobre o regime anterior a não ser que concordei em absoluto com ele e
por isso o servi o melhor que pude e soube? Salazarista convicto, jamais renunciarei às
minhas convicções. Para mim Salazar confundiu-se com o regime e este com a Pátria e
creio bem que nem o Frei Melícias e o Brigadeiro D.Januário juntos conseguiriam levar-me
a mudar de ideias. E, se me esgotassem os argumentos, dir-lhes-ia que sou católico,
apostólico, romano e quero comparecer no Juízo Final, no Vale de Josafá, como homem de
direita que sempre fui. E aí, di-lo a sagrada escritura, os bons vão para a direita e os
réprobos para a esquerda.
Nos meus verdes anos,
fiz-me salazarista já nem sei bem porquê. Talvez porque Salazar foi um provinciano como
eu e como eu deveu a Deus a graça de ser pobre. Era incorruptível, pelo que
também deveu a Deus a graça de morrer pobre. Como me acontecerá. Foi, sem sombra de
dúvida, o maior estadista do seu século: herdou um país arruinado por duas décadas de
desgovernação vergonhosa, desprestigiado, sem ordem, sem dinheiro e sem crédito. Em vez
de acusar os governos anteriores, como hoje se tornou hábito, remeteu-se ao silêncio do
seu gabinete e equilibrou as finanças, restabeleceu a ordem pública e reconquistou um
prestígio internacional que lhe permitiu atravessar incólume a Guerra Civil de espanha e
a Segunda Guerra Mundial. E, apesar de Yalta, conservou o Portugal de Além-mar. Não me
agrada alongar-me sobre este assunto porque já o fiz mais de uma vez através da
imprensa. Acresce, de resto, que já vejo e oiço, nos ecrãs de televisão, homens de
extrema-esquerda confessarem compungidamente os méritos de estadista de António de
Oliveira Salazar. Mas não posso esquecer-me de África e dos africanos. Não posso
esquecer uma Angola que conheci próspera e feliz agora esventrada por rebentamentos de
bombas e de minas, com a sua população desnutrida esfomeada que se não morre de um tiro
ou de uma granada, morre por falta de alimento ou por força de doenças há muito
erradicadas. Como não posso esquecer uma Guiné menos próspera sem dúvida, mas onde
sempre se arranjava um punhado de arroz para matar a fome o que é impossível agora face
à intervenção de tropas estrangeiras. Ou Moçambique, com larguíssimos recursos
terrestres e marítimos mas que figura nas estatísticas como o país mais pobre do mundo.
Está agora, ao que parece, numa paz expectante, aguardando que um grupo de Zulos se
juntem porque um deles se lembrou de soprar num corno de búfalo ou que umas dúzias de
Macondes desajeitados desçam do planalto às cambalhotas. Como não posso esquecer o povo
martirizado de Timor, traído e abandonado pelos mesmos portugueses que choram agora
lágrimas de crocodilo.
Estamos na Europa,
dir-me-ão. É verdade. Estamos na Europa de mão estendida, vergonhosamente. E se não
tenho nada contra a Europa das Pátrias o mesmo não direi de uma Europa
federal ou globalizada como soe dizer-se: A Pátria não se discute, disse
Salazar. E talvez os federalistas, os defensores da globalização desconheçam ou não se
lembrem de que também Hitler queria a Europa. E queria-a amalgada e amassada por um
exército comum, uma economia e um sistema monetário comuns, por uma política de
estrangeiros comum. Dir-me-ão agora que os meios eram diferentes e
horrorosos. Totalmente de acordo. Mas não posso deixar de responder que não foi a
direita quem disse que os fins justificam os meios. Mas isto é assunto para
economistas e políticos. Não o é seguramente para polícias da Régua e eu
nunca passei disso. Pelo que fico por aqui.
VI
Sobre o
regime actual, creio bem que nem valerá a pena pronunciar-me, já que a minha resposta
está implícita na que dei anteriormente.Acresce que foi aceite pelos portugueses bem ou
mal informados, enganados ou não, violentados ou descomprometidos.
De qualquer forma,
optaram e creio que não devo, aqui e agora questionar essa opção. Já quanto ao governo
a questão se me põe em termos diferentes. É verdade que também ele foi eleito por
vontade dos portugueses, melhor diria, de alguns portugueses. Mas foi-o a um nível
diverso porque partidário e de forma crapulosa através de falsas promessas que não
foram nem serão cumpridas. E eu nunca poderia concordar com um governo crapuloso e
libertino, com um governo que o não é porque dialoga ou diz dialogar mas não governa.
Não sou contra o diálogo, sou contra a falta de decisão. Veja-se o que se passa nos
domínios da saúde, da justiça, da educação, dos transportes, da agricultura, da
segurança das pessoas e bens: - Se os médicos não estão em greve, estão os
enfermeiros. Se os juízes não protestam, fá-lo o Ministério Público e de tal forma
que se quem rouba um tostão é ladrão, quem rouba um milhão é barão mesmo
que para tal se deixem ultrapassar todos os prazos até à prescrição. Se os professores
não estão em greve, estão os estudantes que fecham as escolas a cadeado ou ocupam as
instalações dos Conselhos Directivos. Se os pilotos não estão em greve, está o
pessoal de terra. Se os maquinistas da CP não estão em greve, estão os camionistas. Se
Souselas não está em greve, está a Maceira ou se ambas acalmam começa o Barreiro. Se
os agricultores não protestam, fazem-no os suinicultores ou os bovinicultores. Deixei
para o fim a Segurança de pessoas só para dizer que passeei sòzinho ou mesmo com a
mulher e o filho, vezes sem conta e sempre desarmado, por locais onde hoje a Polícia não
vai. E que ninguém pense tirar dividendos desta afirmação, porque a culpa não é da
Polícia. A Polícia cumpre como sempre cumpriu. Enfim, segundo o calendário chinês,
estamos no ano do Coelho e pode ser que as coisas mudem. Mas não será com 8500 polícias
mais que elas mudarão. Mudariam sim se dignificassem os que têm, se os nobilitassem, se
lhes restituíssem a autoridade e o respeito que lhes são devidos e de que os despojaram,
se os dotassem de meios que os novos tempos exigem, se deixassem de encarcerar polícias e
soltar criminosos. E o que é dramático no meio desta barafunda em que vivemos é que se
fala constantemente na criação de milícias populares. Eu confesso que estremeço, creio
que chego a corar como se ainda tivesse algo a ver com isso. Se pudesse dar um conselho ao
Engenheiro Guterres, seria este: - Cuide-se, estejamos ou não no ano do Coelho. Não se
fie em sondagens. Um ano antes do 25 de Abril, eu vi o Professor Marcelo Caetano em ombros
pelas ruas de Tomar. E vi claramente visto porque andava com ele.
VI
Não
consigo explicar a génese do 25 de Abril de 1974 sem falar de Salazar, até porque, com
ele, nada teria acontecido. Tentarei explicar-me.
A partir de 1968, a oposição ao regime
vigente em Portugal foi-se radicalizando de forma gradual mas sempre progressiva. Para mim
e creio que para a maioria dos Portugueses que pensavam como eu, as questões que se
punham eram fundamentalmente as seguintes:
- Seria o País capaz de
adaptar-se sem sobressaltos a uma realidade nova, após 40 anos de governação de um
homem com a sagacidade, a tenacidade, a coragem e o génio de Salazar?
- A evolução na
continuidade, desde logo anunciada pelo novo Chefe do Governo, poderia ser
exequível e tranquila num país de tão parcos recursos e que, para mais, suportava
pràticamente só, uma guerra em três frentes?
- Como reagiria a Igreja
Católica, onde já eram visíveis sinais de degradação como o atestavam,
designadamente, os casos do Bispo do Porto e vários párocos como os de Belém, de Alhos
Vedros e da Lixa para além de outros, em Angola e sobretudo em Moçambique?
- Qual a política do
Vaticano que, tendo abençoado a nossa ajuda na dilatação da fé ao
construir o Império, parecia já então evidente que se manifestava contra esse mesmo
império?
- Até quando os dois
imperialismos mundiais Estados Unidos e Rússia continuariam a seguir
políticas paralelas contra aquilo que denominavam por imperialismo
português sem outro fim em vista que não fosse a exploração das riquezas
existentes no subsolo, em especial no de Angola?
Tudo isto era deveras
preocupante. A verdade, porém, é que também a oposição dita democrática, em
Portugal, estava enfraquecida face ao desaparecimento de algumas figuras de proa e ao
envelhecimento de outras. E, por outro lado, não se afigurava que a ASP, nascida na
Suiça creio que em 1964, viesse nos próximos anos a conquistar um mínimo de
credibilidade interna e externa. Acontecia ainda que a própria guerra no Ultramar
contribuia para dividir as oposições já que alguns dos mais altos expoentes defendiam a
permanência de Portugal em África. Afigurava-se, assim, que seria possível uma
transição mais ou menos calma mas que daria o tempo suficiente para a resolução dos
problemas africanos. Talvez bastasse confinar o partido comunista português aos seus
limites tradicionais, o que nem seria difícil dada a experiência da PIDE nessa matéria.
Não se desconheciam outros problemas como o
dos oficiais milicianos a que cada vez mais se recorria e que, salvo honrosíssimas
excepções, saíam das Universidades mais versados em marxismo do que em qualquer outra
matéria, e iam para as unidades semear essas ideias entre os do Quadro Permanente. Por
outro lado, as guerras prolongadas geram sempre a lassidão que passou a ser facilmente
detectável entre entre Oficiais do Quadro Permanente com várias comissões no Ultramar.
Aí residiu a génese do chamado movimento dos capitães que já uma vez
defini como movimento meramente corporativo, uma espécie de guerrilha de
mamelucos contra janízaros em que cada grupo defendia os seus
interesses e tambám o seu sultão. O livro de António Spínola
Portugal e o Futuro viria exaltar as hostes e descer enormemente o moral das
nossas tropas. E o movimento dos capitães constituído por homens na sua
maioria politicamente ingénuos, deixou-se envolver pela dupla constituída pelo p.s. de
Mário Soares e o p.c.p. de Álvaro Cunhal que se haviam aliado cerca de três anos antes,
em Paris. Uma aliança que mais pròpriamente se diria entre a CIA e o KGB. E, perante
tudo isto, o que fez o governo? Direi que rigorosamente NADA. Posso garantir que o
Primeiro Ministro esteve sempre perfeitamente informado. Só que não enfrentou nem deixou
enfrentar a situação. E manteve essa posição até à tarde do dia 25 de Abril de 1974,
recusando-se inclusivamente a sair do Quartel do Carmo quando os carros que o haviam de
levar estavam estacionados junto do elevador de Santa Justa. Não correria o mínimo
risco. Um dos Inspectores que o acompanhariam entrou calmamente no Quartel e
responsabilizou-se pela sua saída com total segurança. Limitou-se a um breve
agradecimento e dizer-lhe que já combinara tudo com o general Spínola e aguardava que
chegasse para lhe entregar o poder. Não sairia, portanto, dali.
Termino este capítulo como o comecei: - Com
Salazar o 25 de Abril não teria acontecido.
VIII
Não
posso pronunciar-me sobre o Futuro de Portugal. Não sou profeta nem analista político.
Fui polícia e nada mais do que isso. Não estou optimista. O futuro do próprio mundo
civilizado é mais do que nunca uma incógnita. Os fundamentalismos tomam aspectos
assustadores. Quanto a nós, portugueses, viveremos certamente mais um ano de mão
estendida à caridade dos ricos até que estes se cansem de suportar-nos. Depois, receio
seriamente o desaparecimento de Portugal como Nação independente e soberana. Mas ainda
pode acontecer um milagre que bem poderia ser o aparecimento de um novo Salazar.
Copyright © 1999 Abílio Augusto Pires