A possível clínica da perversão

 

Flávio Carvalho Ferraz

 

 

RESUMO

 

O trabalho contém o relato extenso da análise de um paciente do sexo masculino cujo diagnóstico psíquico preenche todos os requisitos do que se convencionou chamar de “perversão” em psicanálise. A partir do caso, o autor tece comentários sobre a teoria da perversão e sobre as especificidades de sua clínica. Do ponto de vista teórico, enfatiza o fato de que o apego excessivo do perverso ao seu modo particular e restrito de obter prazer, compulsiva e compulsoriamente, funciona como proteção contra as angústias psicóticas e encarregam-se da manutenção da identidade subjetiva, tal como já propuseram diversos autores. Do ponto de vista clínico, enfatiza as dificuldades inerentes à demanda de análise no perverso, em função de suas próprias defesas psíquicas, bem como as especificidades da contratransferência no atendimento deste tipo de paciente, comentando ainda algumas questões éticas pertinentes.

 

 

A Possível Clínica da Perversão

Flávio Carvalho Ferraz

 

 

1. O Caso de André

Ainda nos primeiros anos de minha prática analítica, fui procurado por um jovem publicitário, de trinta e poucos anos, a quem darei aqui o nome de André.. Sua queixa inicial, formulada na primeira entrevista, era a de que “o tempo estava passando”, ele já não era mais tão moço e, até então, não conseguira “ter alguém”. Embora tivesse muitos amigos e uma intensa vida social, André sentia que a sua relação com as pessoas era fictícia e estereotipada; não raro apanhava-se como que representando teatralmente durante o tempo em que estava junto com alguém. Mesmo parecendo, aos olhos de todos, feliz e bem realizado, começava a sentir uma angústia, até então estranha a ele, e adquiria a consciência de que, na verdade, era um solitário, conquanto vivesse rodeado de pessoas boa parte de seu tempo. André começava a temer a solidão e a pensar como poderia vir a sofrer no futuro, quando estivesse velho e sem ninguém.

Moço elegante, sempre muito alinhado e bem vestido, e favorecido por um sucesso profissional muito grande, André circulava nas altas rodas. Havia traçado, de forma calculada, um objetivo de vida bastante preciso, que era o de enriquecer, frequentar a alta sociedade, conhecer pessoas ricas e influentes e, enfim, levar uma vida glamurosa, diferente daquela de sua família de origem. Foi assim que, vindo do interior de um outro Estado para fazer o curso superior em São Paulo, conheceu um colega muito rico de quem se tornou o melhor amigo, a ponto de ser “adotado”, como dizia, por sua família, passando a frequentar amiúde sua casa, conquistando a estima de seus pais e vindo a compartilhar da intimidade familiar. Formados, André e seu amigo tornaram-se sócios em um empreendimento profissional. Favorecidos pela influência da poderosa família do sócio, nunca lhes faltaram clientes abonados e, em poucos anos, André já era um moço rico e bastante requisitado profissionalmente. Portanto, obtivera êxito em seu projeto, o que era motivo de uma auto-confiança que me parecia, às vezes, desmedida.

André falava com muito orgulho do modo como fora se entrosando nos círculos importantes, fazendo-se visível para as pessoas de sucesso e sendo sempre solicitado tanto para realizar trabalhos vistosos como também para participar de eventos sociais badalados. Algo, porém, já nos chamava a atenção logo naquele início de análise: após ter vivido, por alguns anos, um clima de grande euforia, decorrente da construção de seu sucesso pessoal e profissional, a ponta de um questionamento incômodo começava a surgir. A consistência de seu trabalho profissional e de suas relações pessoais era perigosamente colocada a prova. Deste exame poderia resultar a conclusão nada tranquilizadora de que, na verdade, ele “enganava” as pessoas com o trabalho que fazia, isto é, de que não era um artista tão talentoso que fizesse juz à imagem que vendia de si próprio e de que seu vínculo com o sócio e com os amigos em geral era fictício, ou seja, suas relações pessoais eram-lhe pouco significativas. André, no fundo, nunca se sentia genuinamente em contato com ninguém.

Este tipo de pensamento, evidentemente, trazia-lhe uma sensação de falsidade desconfortável. Percebia viver uma vida pública que não era verdadeira, totalmente dissociada de uma outra vida particular, secreta e solitária, que concernia às suas atividades sexuais. Mas pensar nesta dicotomia perturbadora era um esforço muito angustiante e, desta maneira, no decorrer de sua análise, André se aproximava dela a passos lentos, e dela também fugia a passos largos.

André se definia como alguém “anormal” no campo da sexualidade. Contava-me com detalhes sobre a sua vida sexual compulsiva e, segundo ele mesmo, “depravada” e promíscua. Referia a suas relações sexuais como “putarias” que fazia com uma frequência incrível. Mantinha várias relações homossexuais em um único dia. Muitas vezes sua própria rotina de trabalho era perturbada pela necessidade que sentia de procurar parceiros para um sexo rápido. Em sua prática sexual, seguia, invariavelmente, o mesmo roteiro: saía à caça e nunca tardava a localizar, onde quer que fosse, alguém que se dispusesse a entrar com ele no esconderijo mais próximo, locais muitas vezes arriscados, onde poderia ser surpreendido por alguém ou onde não estivesse em segurança. Em seguida, abria a braguilha da calça de seu parceiro e praticava a felação. Cada detalhe era de suma importância nesta montagem: a sedução era feita com uma voz especial, baixa e infantilizada; o ato de abrir o zíper e de, repentinamente, ver surgir o pênis que ali se escondia era fundamental para o incremento de sua excitação. Por fim, deveria sugar aquele pênis de modo a provocar o maior prazer possível em seu parceiro, engulindo o esperma que jorrasse. Referia-se a este esperma como uma espécie de néctar nutritivo e revitalizante, de consistência e sabor excepcionalmente agradáveis, particularmente quando provinha de um parceiro jovem, na flor da adolescência. Não tocava seu próprio pênis e nem fazia questão de que o outro o tocasse. Aliás, este detalhe chamava-lhe a atenção: como podia ele prescindir da participação de seu próprio pênis nas relações sexuais e na obtenção do orgasmo? Seria isso indício de uma anormalidade muito grave? André sempre chegava ao orgasmo, extasiante, segundo dizia, ao final desta rápida encenação. Quando, eventualmente, era instado a mudar seu roteiro, isto é, quando o parceiro lhe pedia alguma variação, tal como ser penetrado ou penetrar, ele relutava em aceitar e, se o fazia, sentia apenas um certo tédio até o final da relação. Preferia evitar qualquer prática sexual que não estivesse dentro de seu roteiro habitual. Seu único prazer era mesmo o de praticar a felação, em quem quer fosse. Nenhum outro atributo do parceiro lhe interessava. Surpreendia-se, às vezes, por manter relações com homens feios, que não tinham o menor atrativo.

Até o começo de sua análise, André jamais havia repetido uma relação com o mesmo parceiro. Após uma relação, não restava mais o menor interesse por aquela pessoa. Era como um “palito de fósforo que se queima”, com ele próprio tratava de me explicar.

Durante muito tempo, em sua análise, André me falou destas relações. Contava como era capaz de fazer uma longa viagem de carro, passando por dezenas de postos de gasolina e “chupando” uma série infinita de “paus”, como costumava dizer. Dirigia-se, com frequência, a locais onde sabia haver homens em situação de abstinência forçada pelas circunstâncias, que aceitavam, sem maiores problemas, suas ofertas sexuais. Estes locais eram, em geral, obras de construção civil em locais distantes dos centros urbanos. Lá ele sabia não haver muitas mulheres disponíveis, e o fato de os homens estarem necessitados sexualmente facilitava-lhe o trabalho de sedução. Costumava também adentrar quartéis militares à noite para abordar soldados. Certa vez contou-me, como quem narra um feito heróico, que se formara uma fila de homens para serem chupados um a um por ele. Quando estava prestes a acabar a aventura, apareceu um militar de patente mais elevada, que inspecionava o quartel, e ele teve de fugir correndo. A exposição ao perigo era-lhe muito excitante, mas, em algumas ocasiões, fê-lo passar por maus bocados. De outra feita – e esta foi uma situação que teve especial importância quando trabalhada em sua análise – André entrou em um canavial à margem de uma estrada, onde encontrou um trabalhador rural. Como de hábito, perguntou-lhe se não desejava receber seus favores sexuais, ao que o homem opôs uma certa resistência. Ele insistiu, garantindo-lhe que seria bom e que esta experiência em nada o desabonaria, até porque ninguém precisaria ficar sabendo do que aconteceria entre eles. Foi então que aquele homem o convidou para adentrar um pouco mais o canavial, a fim de ficarem em um local onde seria impossível serem surpreendidos por alguém. André o seguiu até um determinado ponto. Lá chegando, o homem apanhou um facão enorme e pôs-se a correr atrás dele, dirigindo-lhe insultos e dizendo que iria castrá-lo, matá-lo e depois retalhar o seu corpo. Apavorado, André correu até a estrada, onde deixara seu carro estacionado, e escapou por pouco do perigo.

Em suas investidas habituais, quando o parceiro escolhido oferecia alguma resistência inicial, André sempre “sabia” como convencê-lo a aceitar sua proposta. Fazia uma voz de súplica que, segundo ele, tornava-o irresistível. Assim, julgava-se capaz de provar a todo homem que, no fundo, a relação homossexual era secretamente mais prazerosa do que a heterossexual. O que ocorria era que muitos homens não sabiam disso, isto é, ainda não tinham tido a oportunidade de receber aquela revelação e de provar daquela delícia que apenas os mais iluminados, como ele, conheciam. Aliás, esta era uma característica que se alastrava da vida sexual para toda a esfera de suas experiências. Ele “sabia” o que era bom e prazeroso, e as pessoas “normais”, não. Ao contar sobre suas noites agitadas, em que frequentava festas, boates e terminava por ter suas “grandiosas” aventuras sexuais, não era raro que me dissesse que, enquanto ele fazia tudo aquilo, eu, provavelmente, estava em casa, sentado de pijama no sofá assistindo televisão....

Esta imagem transferencial do analista remete ao que Janine Chasseguet-Smirgel (1991) ressalta a respeito das particularidades do ideal do ego no caso da perversão. Em uma palavra, este ideal não se liga ao investimento do pai e do pênis genital paterno, mas sim a um modelo pré-genital. A evolução psicossexual do menino é interrompida pela crença que ele adquire – induzido pela mãe, ao que parece – de que seu pênis infantil, ainda que pequeno, é superior ao do pai em qualidade e que ele, mesmo sendo criança, é um parceiro perfeito para mãe, nada deixando a desejar em relação ao pai.

Destaco as expressões de caráter concessivo “ainda que pequeno”, aplicada ao pênis, e “mesmo sendo criança”, aplicada a si próprio, para falar de seu papel na manutenção da ilusão, baseada na recusa, que ocorre no funcionamento mental do perverso. Do uso que este faz do concessivo resulta uma ampla operação psíquica que visa à elevação do falso à condição de autêntico e do inferior à condição de superior e melhor. Esta é a chave para a compreensão do significado do pênis fecal. Vimos, no caso de André, como ele se esforçava por demonstrar, na lógica das suas montagens sexuais, que seu prazer era mais intenso do que o das pessoas “normais”, isto é, nos termos de Chasseguet-Smirgel, demonstrar que a pré-genitalidade era superior à genitalidade.

O pai torna-se, assim, uma pálida miragem, impotente diante do pacto estabelecido entre mãe e filho em torno da situação edípica. Isto se presentifica, na transferência, através da imagem que André cria de seu analista assistindo televisão de pijama, à noite, da maneira mais doméstica e entediante possível, enquanto ele provava das delícias deslumbrantes de sua sexualidade secreta. Ele procurava, com esta imagem, reduzir-me ao pai outrora silencioso e complacente diante da mãe e, posteriormente, paralisado em uma cadeira de rodas. Um pai inapetente e indesejável. Mas, para que seu pênis pudesse ser assim denegrido, havia que se criar a contrapartida de um super-pênis idealizado, que André buscava frenética e incessantemente nos parceiros. Deste pênis idealizado jorrava um substituto do leite materno, vivido como alimento rejuvenescedor.

Curioso era observar o fluxo de suas narrativas na correlação que mantinham com a experiência emocional que veiculavam. Algumas vezes elas tinham início com um tom levemente depressivo: ele se percebia me falando, na verdade, de sua doença, de sua anormalidade, de sua solidão e, enfim, de seu sofrimento. Contudo, fugindo da dor que isto podia trazer-lhe, sua narrativa ia adquirindo um colorido maníaco, e ele se empolgava como se estivesse contando um autêntico feito épico e heróico. E dizia-me ter a certeza de que era o mais interessante de meus pacientes e que duvidava que os outros me entretivessem com histórias tão emocionantes... Mas o movimento emocional veiculado por sua narrativa acabava por dar uma volta completa e, deste modo, não era incomum que, após contar tanta vantagem, sentisse um esgotamento e se visse, inelutavelmente, diante do vazio que aquilo tudo significava: ele não tinha ninguém e nem conseguia desejar alguém de modo contínuo. Nessas ocasiões, o desespero vinha à tona e ele se sentia muito doente. Chegou a confessar-me que invejava a paz que eu tinha em minha vida recatada, de pijama diante da televisão, “curtindo” a minha família. Um detalhe deve ser aqui esclarecido: uma vez ele me vira chegar ao consultório de carro e percebera haver um cadeirão de bebê no banco traseiro. Muito emocionado, começou a sessão daquele dia contando-me ter descoberto que eu era pai, certamente um ótimo pai, muito bom para os meus filhos...

André era o segundo filho de uma família de quatro irmãos, todos homens. Não era difícil deduzir, por toda a história familiar que me relatava, que sua mãe era uma mulher muito perturbada, de quem ele procurava manter distância. Nunca a trouxera para visitar a sua casa em São Paulo, muito embora ela não disfarçasse seu sonho de conhecer a casa do filho, chegando a colecionar, orgulhosamente, revistas de arquitetura e decoração em que esta era retratada. André fazia-lhe visitas de tempos em tempos, mas estas eram-lhe custosas, pois não suportava a ansiedade da mãe e acabava travando violentas discussões com ela nestas ocasiões. Recusava a comida que ela lhe preparava, tendo, certa vez, entornado na pia da cozinha o iogurte que ela lhe ofereceu pela manhã. Dava-lhe, no entanto, dinheiro para seu sustento e providenciava para que ela não passasse privações. Suspeitava que ela redistribuía sua ajuda para os irmãos, todos em situação econômica confusa.

Muito curiosa era a explicação que André arranjara para teorizar sobre a origem e as causas de sua condição patológica: sua mãe, quando se casou, desejava muito um filho homem, e assim foi. O primeiro filho, então, tornou-se heterossexual porque não havia sofrido interferência negativa da mãe. Mas, ao engravidar pela segunda vez, ela desejou uma menina, sendo esta a razão por que ele veio a tornar-se homossexual. Quando engravidou pela terceira vez, a mãe queria, com muito mais ardor ainda, uma filha mulher. E então este irmão tornou-se também homossexual, só que mais “grave” do que ele: era afeminado e frágil, não estudara e envolvia-se com homens violentos, tendo várias vezes recorrido à mãe para socorrê-lo nas situações mais degradantes e vexatórias. André se achava mais saudável do que este irmão, visto que não deixava, socialmente, transparecer sua homossexualidade, sendo até muito assediado por mulheres “belíssimas” e “milionárias”.. Finalmente, ao engravidar pela quarta vez, a mãe, de tão frustrada, já desistira de ter uma filha e se encontrava indiferente; não queria nem mesmo aquela gravidez. Por esta razão, o caçula tornou-se heterossexual, tal como o primogênito. Se o primeiro passou incólume por corresponder ao desejo materno, o último também escapara da praga por ter se visto livre de todo e qualquer desejo proveniente da mãe.

O pai era, aparentemente, uma figura de pouca importância. Oficial militar reformado, era descrito como um homem ético, calado e demasiadamente conformado com a postura agressiva da mulher, com quem nunca se confrontava. Já aposentado, foi acometido por uma enfermidade que o deixou entrevado. A mãe, não suportando o fardo de cuidar do marido doente, pediu o divórcio. O pai então passou a viver sozinho em um apartamento comprado para ele por André, que também pagava a enfermeira que o assistia.

André cresceu em uma vila militar em seu Estado de origem. Relatava-me que, desde muito pequeno, cultivava o hábito de vagar pela vila à espreita dos soldados; mais especificamente, na tentativa de flagrar algum deles a urinar em um canto qualquer. Conhecia um lugar onde podia instalar-se às escondidas, próximo ao alojamento dos soldados, de onde era possível espiar o seu interior. Assim, costumava passar longos momentos a observar uma grande quantidade de pênis dos soldados que se trocavam, tomavam banho e urinavam. Este hábito, aliás, ele conservara na vida adulta: gostava de frequentar festas de rodeio e outras similares no interior, pois ali os homens bebem muita cerveja e os banheiros são pequenos para acomodar tanta gente. Assim, eles acabam tendo de urinar em qualquer canto. André passava horas sentado em algum lugar de onde pudesse apreciar dezenas ou até mesmo centenas de órgãos masculinos. Em algumas dessas ocasiões atingia o orgasmo sem sequer masturbar-se ou tocar o próprio órgão sexual.

Quando pequeno, sua mãe vestia a ele e aos irmãos de branco, exigindo que se mantivessem limpinhos o dia todo, mesmo vivendo em um local semi-rural; se acontecia de se sujarem, ela ficava furiosa. O branco da roupa tinha de permanecer imaculado até o final do dia. Por esta razão, os quatro irmãos eram chamados pelos meninos da vila de “os mariquinhas da Dona Fulana” (o nome da mãe). Este pormenor foi associado, no decorrer da análise, a uma especial fixação que André tinha por homens sujos. Os borracheiros constituíam um de seus alvos favoritos. As mãos e as vestes sujas de preto funcionavam como um elemento altamente excitante. Sem contar o fato adicional de que os borracheiros gostam de manifestar sua convicção heterossexual pregando pôsteres de mulheres nuas nas paredes das borracharias. Assim, a “conversão” destes homens à prática homossexual tinha um sabor especial.

O papel da regressão anal da formação do fetiche, ressaltada por Chasseguet-Smirgel (1991), evidencia-se, no caso de André, pela curiosa atração que ele sentia pelos borracheiros, bem como por frentistas e mecânicos sujos de graxa. As manchas nas mãos e nas vestes proporcionavam-lhe um enorme incremento da excitação sexual. Certa vez, propus-lhe a idéia de que aquilo significava uma conspurcação da pureza alva que a mãe exigia dele e dos irmãos, quando os vestia de branco e ordenava que se mantivessem limpos até o fim do dia. André então lembrou-se de que, ao sair de bicicleta pela vila militar onde morava, a fim de espionar os soldados em seus alojamentos, preocupava-se em não manchar a roupa branca com a graxa da bicicleta, pois, quando isso ocorria, ele sentia estar se delatando à mãe. Lembrou-se também de que os soldados faziam tarefas nas quais se manchavam de graxa, tal como a manutenção de armas e de outras peças e máquinas. Na vida adulta, André vivia o prazer transgressor de deixar-se manchar, na pele e na roupa, pela graxa dos homens com que se relacionava[i]. Portanto, vemos aqui que a regressão anal que enseja a fetichização da sujeira é um lado da mesma moeda que estampa, no verso, o desafio e a transgressão, consubstanciados na imagem da conspurcação do imaculado, símbolo este da renúncia, da obediência e da castidade.

Quando se relacionava com um tipo de homem que considerava viril e até mesmo tosco, André introduzia uma outra variante na relação. Após a abordagem inicial, começava o ato, como de hábito, por sugar o pênis daqueles homens. Mas, ao perceber que eles começavam a gostar e a entusiasmar-se, então fazia-lhes também algumas carícias, nas pernas ou na barriga. Se não encontrava resistência, usava sua técnica de ir conduzindo o parceiro a uma espécie de torpor extático, e então começava a passar a mão em suas nádegas. Quando conseguia este feito, sentia-se vitorioso por provar que aquele homem se deixara tratar como um “veado”.. Imaginar que estava destruindo a masculinidade de um homem dava-lhe uma sensação de triunfo. Certa vez, depois de praticar a felação em um caminhoneiro à beira da estrada, percebeu que este se inquietava porque seu filho adolescente, que fora dar uma volta, reaproximava-se do caminhão. Perturbado pelo medo de ser apanhado pelo filho, o parceiro pediu-lhe que saísse logo dali. Levando o homem ao desespero, André lhe propôs deixar que fizesse o mesmo com o filho. Afinal, ele não podia negar que havia gostado, e o filho poderia desfrutar do mesmo gozo... No fim da história, André acabou concordando em afastar-se dali, mas não sem antes divertir-se sadicamente diante daquele homem que ficara, por alguns minutos, em maus lençóis.

Havia um aspecto da vida de André que me chamava a atenção como algo significativo para a compreensão de sua dinâmica psíquica. Trata-se do fato de que ele dormia pouco, pois passava as noites em festas, invariavelmente seguidas de “caçadas” e aventuras sexuais na madrugada. Mas, como era muito responsável em seu trabalho, acordava sempre logo cedo. Assim, não era raro que dormisse apenas duas ou três horas por noite, coisa que também me contava com uma soberba napoleônica. Suas sessões eram no início da manhã e, mesmo assim, ele nunca faltava ou se atrasava, sendo que, antes de chegar ao consultório, fazia uma hora de ginástica na academia. Sua única falta foi no dia em que o pai morreu repentinamente e ele teve de viajar às pressas para cuidar do funeral, visto que seus irmãos eram incapazes de tal empresa. Do mesmo modo como negava sua necessidade de sono, negava também a falibilidade do seu corpo. Se adoecia, procurava não se importar e em nada alterava sua rotina; mesmo que estivesse com febre, mantinha o ritmo habitual de trabalho e de atividades sociais e sexuais.

Antes de vir ter comigo, André experimentara por poucas semanas um tratamento com um outro analista, de quem escapou apavorado. Contou-me que, ao narrar sua vida sexual promíscua, aquele analista lhe alertou para o perigo que corria de contrair aids. Como este era um assunto no qual não queria nem pensar, encerrou ali mesmo aquela breve experiência, queixando-se depois para mim que o outro analista tentara arremessá-lo a um abismo, ao falar-lhe de uma coisa tão sombria que lhe despertara muito medo e o fizera sentir-se na iminência do desespero e de um colapso psíquico.

Se eu fosse estender muito mais aqui o relato dos detalhes deste caso, certamente teria matéria para centenas de páginas. Cabe mencionar, por ora, alguns pontos da evolução de sua análise e algumas mudanças psíquicas conseguidas a duras penas, tanto para ele como para mim.

A série de relatos “heróicos” prosseguia, mas, cada vez mais, era-nos possível refletir sobre os afetos que veiculavam ou dissimulavam, bem como sobre os afetos que André experimentava na situação analítica e, aos poucos, ia podendo exprimir. Eu tinha a certeza de que a depressão potencial, ocultada por toda aquela montagem perversa, era algo de porte oceânico, e que a análise só resultaria em algum avanço se atravessássemos, ali, o pântano infernal que cercava sua vida psíquica.

Impressionava-me a quase compulsão com que André me contava de sua vida sexual, de detalhes minuciosos dos atos sexuais e, particularmente, da anatomia sexual dos parceiros, de cuja fisionomia ele sequer se lembrava. Colecionava mentalmente os pênis que ia conhecendo e era capaz de passar minutos descrevendo-os. Gabava-se de conhecê-los aos milhares. Eu me interrogava frequentemente sobre o sentido daquilo tudo, daquela falta de privacidade, daquele escancaramento. Suas aventuras sexuais heróicas, que no início chocavam-me um pouco, passaram a entediar-me sobremaneira. Como sair daquilo? Fui percebendo, então, quão pobre era seu mundo onírico e quão estereotipadas e repetitivas eram suas fantasias. Aquilo que poderia parecer uma exuberância fantasmática ia se revelando como um estado de verdadeira paupéria da vida mental. As fantasias eram imutáveis e invariavelmente atuadas de modo compulsivo. Aliás, André dizia que nunca sonhava, ou, pelos menos, nunca se lembrava de seus sonhos, se é que sonhava. Acreditava não ter sonhos.

Eis, então, que, após dois anos de análise, teve um sonho pavoroso, um pesadelo que o despertou no meio da noite. Seu estado de pânico foi tal que se sentiu mal fisicamente, achando que teria algum problema cardíaco, e não mais conseguiu conciliar o sono naquela noite. Custou a decidir se o que lhe tinha sucedido era sonho ou se fora uma visão real. Ainda sob forte impacto emocional daquela experiência, ele me contou, na sessão da manhã subsequente, que sonhara com um pássaro preto e grande. Esta ave horrenda e pavorosa, de mau agouro, havia entrado em seu quarto e feito um vôo rasante, quase o atingindo. Achou que se tratava de um mau presságio. Era só isso.

Pensei então com meus botões que nos aproximávamos de elementos inconscientes da maior relevância: ali se delineavam as figuras da castração recusada, da loucura potencial que a perversão escondia como se fosse um muro sólido e irremovível, do pavor lancinante que o ameaçava constantemente mas era rechaçado com veemência e, enfim, da perigosa depressão em que cairia se removêssemos aquelas defesas que, ao longo de sua história, foram se estruturando para que ele se protegesse da morte psíquica, da sensação de vazio, inexistência e futilidade.

Neste momento de sua análise, cabe dizer, sua vida vinha passando por significativas alterações. Arranjara um namorado com quem ficou por alguns meses, sem, no entanto, abandonar suas práticas sexuais corriqueiras. Confessou-me sentir-se aturdido por descobrir o quanto era bom dormir uma noite inteira com alguém e ter relações sexuais deitado, já que nunca havia experimentado uma relação que não tivesse sido rápida e realizada em pé em um canto secreto qualquer, muitas vezes em um banheiro público. Após esta experiência de namoro, conheceu um outro rapaz, de origem bem mais simples do que o primeiro, com quem permaneceu mais tempo e por quem se dizia apaixonado. Quando adoecia, geralmente com gripe, este rapaz cuidava dele, levando-lhe chá e remédios na cama. André se emocionava muito com isto, embora sempre manifestasse desconfiança quanto à autenticidade de suas próprias emoções. Menciono estes fatos por acreditar que foram de uma importância monumental e resultantes de uma mudança psíquica conseguida que indicava, por consequência, uma mudança concernente ao estatuto do objeto em seu mundo relacional.

É interessante também o fato de que, concomitantemente a estas mudanças, André passou a viver uma crise profissional em que, descontente com seu trabalho, por julgá-lo pouco criativo, viu sua relação com o sócio cada vez mais desgastada. Este nunca soubera nada sobre a sua vida íntima, desconhecendo a sua homossexualidade. André chegou a ter, antes do início de sua análise, um namoro de mais de um ano com uma amiga do sócio, moça da alta sociedade, que seria a esposa ideal segundo os parâmetros da conveniência social. Este casamento consagraria, inclusive, sua entrada definitiva no meio social a que a família do sócio pertencia. Mas este namoro era, segundo ele próprio dizia, apenas “de fachada”. Ele raramente conseguia excitação suficiente para manter uma relação sexual com a namorada, dizendo-me que ela deveria ser cega para não ver que havia algo de errado com ele. Ocorre que, à medida que André assumia relacionamentos homossexuais, sua vida social alterava-se substancialmente. Se antes o sócio nada podia ver, porque suas relações eram rápidas e feitas às escondidas, agora sua vida afetiva era incompatível com o convívio no meio que frequentara até então. Disto resultaram o estabelecimento de um novo círculo de amizades, o afastamento do sócio e uma série de desentendimentos que culminaram em um fim tempestuoso da sociedade, com acusações recíprocas. No início, André temeu a perda de clientes, mas logo viu seu novo negócio prosperar, já que determinados contatos anteriores mostraram-se suficientemente sólidos para que ele passasse a atuar de forma independente no mercado.

André criticava, no sócio, o fato de ele ter apenas o dinheiro como objetivo, não se importando com a qualidade artística do que produziam e nem com os pressupostos ideológicos que os norteavam. Sabia ter compartilhado com isso durante muito tempo, mas agora não mais tolerava aquele modo de trabalhar. É muito curioso como a mudança na vida sexual deu-se atrelada a uma mudança profissional rumo a uma atuação mais criativa e mais ética. André tornava-se cada vez mais enfadado da duplicidade de sua vida e tentava combater, com algumas medidas, aquela dicotomia atormentadora. Eu diria que ele começava a integrar partes do seu mundo que sempre mantivera separadas e incomunicáveis, num reflexo da operação psíquica que agora permitia-lhe integrar algumas partes de si próprio até então cindidas.

Não é de se estranhar que, a esta altura dos acontecimentos, agora já em torno do quarto ano de análise, tenha aparecido o medo da doença no universo dos seus sentimentos. Afinal, a vivência dos afetos vinha sendo, de algum modo, desbloqueada. Não quero afirmar aqui, evidentemente, que este processo era completo. Apenas trato dele comparativamente ao modo como André se apresentava quando iniciamos nosso contato. Foi então que uma febre intermitente o levou ao desespero, visto que lhe acenava com a possibilidade insuportável de ter adquirido o vírus da aids, fato estatisticamente muito provável, já que ele jamais tomara qualquer precaução em suas relações sexuais de altíssimo risco.

André rejeitava terminantemente a idéia de fazer um exame anti-HIV. Bastante desorganizado, passou a exprimir-se, comigo, de um modo afetivamente carregado, ora criticando minha impotência e dizendo que interromperia a análise, ora chorando e acusando-me de não perceber o quanto eu era importante para ele e o quanto ele gostava e precisava de mim. Paradoxalmente, pensava eu, o passo que ele dera em direção a uma maior integração psíquica, era, então, o fator responsável por sua capacidade de vivenciar aquele sofrimento cruel.

Em meio a esta crise, André interrompeu a sua análise de uma forma que eu diria intempestiva, acusando-me de não curar a sua dor. Mas, ao sair da sala, na sua última sessão, voltou rapidamente da sala de espera até minha porta e disse algumas palavras apaziguadoras que demonstravam que ele não queria sentir-se rompido comigo.

Alguns anos mais tarde, encontrei-o casualmente em um evento social. André parecia bem de saúde, nada indicando que estivesse doente, como eu também havia temido junto a ele. Olhando-me com ar admirado e, de certo modo, divertido e provocativo, disse-me apenas: “olha só, não é que você existe de verdade!”

 


2. Algumas Considerações Sobre a Clínica da Perversão

 

É comum que escutemos, nos meios psicanalíticos, que o perverso raramente procura uma análise. Isto faz sentido quando se considera que a prática da perversão tem o poder de assegurar o gozo, sendo o sintoma experimentado, muitas vezes, com uma sensação triunfal e não penosa. O perverso, portanto, não se encontra sujeito às insatisfações, inibições, ruminações de culpa, dúvidas, medos e todas as demais formas de tormento psíquico que, normalmente, assolam os neuróticos. Freud já admitia que o fetiche garantia o prazer sexual e, deste modo, era encarado pelo fetichista como algo benéfico; a queixa do fetichista, quando este, eventualmente, buscava uma análise, não dizia respeito, ao menos conscientemente, à prática sexual em si mesma. A onipotência exibida pelo perverso e a efetiva consecução do gozo, vivido como extraordinário, reforçam a base narcísica de sua dinâmica psíquica. O apego excessivo ao seu modo particular de obter prazer pode ser encarado, à primeira vista, como decorrente da magnitude do gozo por ele auferido. No entanto, a forma restrita de obtê-lo e o caráter compulsivo e compulsório que ele assume na vida do perverso comprovam que, na verdade, tal apego excessivo decorre do fato de que as práticas sexuais atuadas funcionam como proteção contra as angústias psicóticas e encarregam-se da manutenção da identidade subjetiva.

A formação perversa assenta-se, de fato, sobre a produção do gozo, de modo até mesmo excessivo. Ocorre, entretanto, que ela apresenta também efeitos colaterais indesejáveis: o uso do mecanismo da recusa e a consequente dissociação do ego vão, cada vez mais, conduzindo o indivíduo a um estado de vazio psíquico, a uma falta de relacionamentos afetivos genuínos e, valendo-me do vocabulário comum, a uma solidão e a uma infelicidade capazes de tornarem-se perturbadoras. Durante muito tempo, as negações podem ser eficientes, mas a engrenagem perversa pode começar a falhar e, então, o sofrimento psíquico começa a vir à tona, muitas vezes portando o colorido trágico das angústias psicóticas e a ameaça de um desmoronamento dos limites identitários. No caso de André, como vimos, a queixa inicial que se formula não concerne à prática sexual em si, mas ao risco da falência do funcionamento onipotente: “o tempo passava”, ele sentia-se só, isto é, sem “ter ninguém”, e o seu futuro insinuava-se-lhe sombrio. Como a manutenção da recusa se baseia na onipotência, o envelhecimento do corpo, a doença física e o fantasma da mortalidade são sentidos como ameaças, ostentadas pela realidade, que podem abrir algumas brechas na rocha da personalidade perversa. A procura de André pela análise, bem como a de outros pacientes cujo funcionamento mental era semelhante ao seu, serve-me de apoio para assim pensar.

Otto Fenichel (1945) já chamava a atenção para a dificuldade do engajamento do perverso na análise: o fato de os sintomas serem sentidos como prazerosos, diferentemente do que se verifica na neurose, acaba sendo um fator complicador no tratamento psicanalítico da perversão. Assim, o prognóstico terapêutico é melhor nos casos em que os pacientes pior se sentem, isto é, nos casos em que existe uma combinação entre a perversão e a neurose. De modo similar, Otto Kernberg (1995) é também bastante reservado quando considera o prognóstico do paciente perverso, julgando-o menos favorável do que o do borderline comum. Para ele, a falta de integração da identidade e a falta de constância objetal representam fortes obstáculos à análise.

André, como vimos, fazia uma divisão entre um mundo “oficial”, que podia ser mostrado às pessoas, e um mundo “secreto”, no qual ele vivia em absoluta solidão (já que as pessoas com quem se relacionava neste mundo não chegavam a ser propriamente “pessoas”, mas objetos descartáveis). A manutenção desta divisão era, inicialmente, vivida como uma capacidade formidável, que lhe proporcionava um sentimento de poder e de triunfo sobre a realidade. No entanto, era esta mesma divisão que, aos poucos, corroía seu projeto de felicidade e de bem-estar, a ponto de tornar-se uma verdadeira tormenta. A divisão só podia ser sentida como fonte de sofrimento psíquico à medida que houvesse uma integração entre as partes cindidas.

Esta é, exatamente, a dificuldade maior da clínica da recusa: a integração, que consideramos como um caminho rumo à sanidade, pressupõe o aparecimento do sofrimento psíquico que sempre foi tenazmente negado. Portanto, aquilo que o analista encara como processo de cura é sentido pelo paciente como loucura. Jorge L. Ahumada (1999) trata com precisão deste problema na análise do perverso, referindo-se ao “desacordo frontal” que pode ocorrer entre analista e paciente, pois aquilo que o primeiro entende como sendo “sadio” é, para o segundo, uma “alteração louca”. Aquilo a que o paciente se refere como “crise” implica, na verdade, o contato que ele toma com seus afetos genuínos, de caráter explosivo, suscitados por sua relação com os objetos (ciúmes, possessividade, inveja, percepção do self infantil necessitado e incapaz de sobrevivência se abandonado pelo objeto, etc.). Com a clivagem de seu ego ameaçada, o perverso pode experimentar um sentimento de iminente despersonalização, pois não é só a sua sexualidade que foi construída sobre o alicerce da clivagem, mas sim toda a sua superfície identificatória. O sonho de André com o pássaro negro da castração, neste sentido, foi um sonho de terror que o invadiu exatamente pela fenda aberta pela análise. Não era uma realização de desejos, como Freud (1900) inicialmente supunha serem todos os sonhos. Ao contrário, este sonho possuía um caráter francamente bruto e ameaçador, tal como tenho observado na produção onírica de outros pacientes paranóides e borderlines. Trata-se, na verdade, de um sonho traumático.

Uma das especificidades da clínica da recusa reside no grau e no tipo de dificuldades que o trabalho analítico enfrenta, que pertencem a uma ordem diferente daquela resistência que encontramos na clínica do recalque, isto é, na clínica das neuroses. Se a resistência oposta pelo paciente neurótico visa à defesa contra o desprazer provocado pela rememoração, como postulava Freud (1914), a resistência que se verifica na clínica da perversão constitui-se como um verdadeiro baluarte contra a emergência da angústia, da loucura e da depressão. Portanto, há um fator de porte que se erige como um complicador da análise e que pode, até mesmo, marcar o limite das próprias condições de analisabilidade. Vimos como André foi conseguindo uma certa integração de partes cindidas que implicaram uma mudança de atitude, ainda que parcial, para com os objetos e em uma significativa alteração de seus padrões de vida. Mas, ainda assim, quando foi forçado a deparar-se com o medo da doença e da morte, produtos transformados da inexorável angústia de castração, opôs uma resistência fatal ao trabalho de análise, a despeito do vínculo nada desprezível que já havia estabelecido comigo.

Masud Khan (1987) foi um autor que abordou, com profundidade, o problema da analisabilidade do perverso diante da rigidez de seus mecanismos defensivos, que constituem uma estrutura de tal modo eficaz, quase autônoma, que acaba por oferecer a mais firme resistência contra a mudança e a cura no tratamento. Khan expressa um ponto de vista muito original e interessante sobre a natureza do sintoma perverso, para ele muito mais próximo do sonho do que do sintoma neurótico, visto que o acting-out é o que mais precisamente o caracteriza. Assim, a cena perversa seria uma espécie de sonho corporal que, atuado na realidade, envolve uma outra pessoa real em sua montagem. Para o autor, portanto, uma das maiores dificuldades no trabalho analítico com o paciente perverso seria lograr êxito na tarefa de fazê-lo despertar e abandonar este seu modo específico de dramatizar os sonhos. Khan, entretanto, reconhece que esta operação dificilmente pode ser executada plenamente, dada a inacessibilidade do perverso à influência e à mudança. A relação transferencial não pode proporcionar a satisfação física que o perverso busca desenfreadamente em suas encenações habituais, o que o coloca diante de uma situação de frustração especialmente difícil. Suas defesas baseadas na intimidade física não podem aí ser utilizadas, o que traz o risco do aparecimento dos afetos dolorosos que a dissociação usualmente mantém sob controle. É por isso que Khan recomenda que, através das interpretações analíticas, administre-se, “em doses toleráveis”, o significado da experiência encenada de modo tal a ajudar o paciente a resolver sua dissociação. O processo analítico poderia, portanto, através dos insights que proporciona, ajudar o paciente a superar a repetição compulsiva de suas experiências perversas.

Otto Kernberg (1998) enfatiza a necessidade de se focalizar, na análise do perverso, a atuação ou a expressão das fantasias inconscientes na transferência. Fazendo menção a um caso clínico, ele atenta para a possibilidade de o paciente buscar imobilizar o analista, conduzindo-o ao lugar de espectador do cenário de suas relações objetais perversas, reproduzindo, na transferência, a mesma satisfação de suas fantasias perversas, agora nelas envolvendo o seu analista. Quando André buscava “entreter-me” com suas aventuras fabulosas, é possível que estivesse tentando envolver-me na condição de voyeur, querendo, inclusive, acreditar que era o meu paciente mais interessante, pelo fato de ter sempre tantos relatos “emocionantes” e sórdidos para conquistar-me ou encabular-me. Deste modo, a recomendação de Kernberg é preciosa: “é importante explorar as fantasias inconscientes experimentadas pelo paciente no decurso da encenação desse cenário perverso, à medida que o analista estiver consciente de que se trata apenas de uma exploração preliminar daquilo que eventualmente se transformará numa atuação transferencial” (p.75).

Fábio Herrmann (1991), tratando das especificidades da clínica da perversão, alerta para o risco representado pela ruptura da crença ilusória mantida graças à recusa e à clivagem, crença tão cara e fundamental à sobrevivência psíquica. Sua ruptura pode trazer efeitos verdadeiramente catastróficos para o paciente. Se a cura da perversão passa, necessariamente, pela experiência psicótica, requer-se do analista muita cautela na avaliação dos efeitos de sua intervenção. O tipo de sensação de perigo que André começou a vivenciar em sua análise, decorrente do risco de desmontagem da recusa, é descrita por Herrmann como “risco do desmoronamento das bordas representacionais”. Para o autor, a perversão encontra-se no núcleo da identidade, e todo o restante da própria identidade e também da realidade têm de estar submetidos a ela. Isto corrobora o que observamos no funcionamento psíquico de André, pois sua vida sexual, cenário privilegiado da encenação perversa, seguia as mesmas regras de sua vida objetal em geral: seu relacionamento com o mundo todo – amigos, clientes e colegas - baseava-se no desafio, no triunfo e na onipotência e tinha por corolário o empobrecimento do contato humano, que não podia ser autêntico. Herrmann fala de um mundo reduzido a uma “área de conquista” ou a um “coito extenso”. Assim, para o perverso, bem como para o psicopata e para o drogadicto, a relação com o mundo e consigo próprio é de tal modo marcada por esta característica que cada relação se torna uma réplica do assunto perverso.

Isto coloca uma outra questão para a clínica, que vem a ser a especificidade da técnica de interpretação e as considerações sobre sua eficácia. De que maneira o perverso escuta as palavras do analista? O que ele faz com elas? É fato que ele não se nega a problematizar. Traz sempre seu problema para a discussão. Masud Khan fala, inclusive, de uma espécie de compulsão à confissão: na análise, o perverso fala, sem cerimônia e até mesmo sem privacidade, de sua vida íntima e de suas práticas sexuais em detalhes. Portanto, estamos, novamente, diante de um problema diverso daquilo que habitualmente encontramos na clínica das neuroses. O problema, assim,  não é tanto o de propiciar condições para que o paciente fale, mas o de manter uma sintonia com o tema da perversão, “sem exigir que ela seja uma neurose ou uma psicose”, no dizer de Herrmann. Em outras palavras, o desafio para o analista é manter-se lidando com a área doente da personalidade. Falar simplesmente da perversão sexual manifesta pode dar a impressão de que estamos encarando de frente o problema, mas, de fato, quando o fazemos, podemos estar apenas o rodeando. É preciso estender sua problematização para toda a área que ele realmente ocupa, que vem a ser a personalidade total.

Trata-se, na prática, de um difícil desafio lançado ao analista, pois o tema da perversão costuma incomodar e produzir efeitos contratransferenciais nada banais. Como lidar com a indisposição deflagrada pelo modo com que o perverso faz uso do outro? A transferência, na perversão, compreende a presença do mesmo desafio que o paciente lança ao mundo que o cerca. Se o ideal do ego, como mostra Janine Chasseguet-Smirgel (1991) , não se assenta sobre o investimento do pai e do pênis genital paterno, mas sim de um modelo pré-genital do pênis (pênis fecal), é provável que a transferência, no processo analítico, venha a revestir-se da mesma forma de investimento. A clínica da perversão pode, muitas vezes, exigir do analista que experimente, no limite, a máxima exigência ética da psicanálise, que pressupõe a neutralidade e a abstinência. Mas a observância destas exigências não pode confundir-se com complacência ou conivência diante da perversidade eventualmente presente no padrão de conduta do paciente, seja na transferência, seja em suas relações com o mundo.

De qualquer maneira, vale lembrar da advertência feita por Graña (1998) de que estamos sempre analisando pessoas que sofrem e não desvios sexuais. No caso do perverso, em função de sua proximidade estrutural com os transtornos narcisistas da personalidade, a linha de abordagem a ser seguida deve basear-se na presença de “um analista emocionalmente disposto e tecnicamente preparado para o exercício da função holding, mais do que para a formulação de interpretações ‘inteligentes’” (p.95).

Ainda um outro obstáculo no caminho da análise repousa na obstinação com que o perverso se defende dos sentimentos de dependência e da necessidade de receber cuidados emocionais. Esta característica o coloca, muitas vezes, em franca oposição aos esforços terapêuticos do analista. Ahumada (1999) relata o caso de um paciente que, diante dos ganhos obtidos através da análise, reagia com a tentativa de rebaixá-la. Assim, quando os processos perversos predominavam em sua relação transferencial, ele respondia às interpretações “de maneira fraudulenta”, procurando nelas um ponto fraco para ridicularizá-las. Agindo deste modo, segundo o autor, ele buscava expulsar o que ouvia juntamente com os aspectos necessitados de seu self.

Finalmente, para encerrar, eu gostaria de lembrar que o sintoma perverso, como todo e qualquer outro sintoma – neurótico, psicótico, psicossomático ou psicopático -, por mais que nos impressione ou até mesmo cause incômodo, constitui sempre o arranjo que foi possível ao sujeito em sua luta pela sobrevivência psíquica. Alguns pacientes apresentam sintomas que são, muitas vezes, considerados inacessíveis à abordagem terapêutica, e certamente o perverso inclui-se entre eles. Ainda assim, como mostra Masud Khan, é possível vislumbrar em suas montagens perverso-polimorfas defensivas, que apelam obstinadamente à sensorialidade corporal e ao acting-out, os rudimentos de uma potencialidade criativa e simbólica que podem ser explorados terapeuticamente pela análise, de modo a promover uma integração egóica um pouco maior. Há, sempre, algo a ser feito, como nos ensinaram os analistas que ousaram tratar dos pacientes ditos “difíceis” ou inacessíveis à análise. E este posicionamento não decorre de um mero princípio da técnica, mas, antes, de uma disposição ética.


Referências bibliográficas

 

AHUMADA, J.L.  Descobertas e refutações: a lógica do método psicanalítico. Rio de Janeiro, Imago, 1999.

CHASSEGUET-SMIRGEL, J.  Ética e estética da perversão. Porto Alegre, Artes Médicas, 1991.

FENICHEL, O. (1945)  Teoria psicanalítica das neuroses. Rio de Janeiro, Atheneu, 1981.

FREUD, S. (1900)  A interpretação dos sonhos. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro, Imago, 1980. v.4-5.

-------- (1914)  Recordar, repetir e elaborar. op. cit., v.12.

GRAÑA, R.B.  Além do desvio sexual: analisando a assim chamada perversão. Rev. Bras. Psicanal., 32(1):83-101, 1998.

HERRMANN, F.  Clínica psicanalítica: a arte da interpretação. São Paulo, Brasiliense, 1991.

KERNBERG, O F.  Agressão nos transtornos de personalidade e nas perversões. Porto Alegre, Artes Médicas, 1995.

--------  Perversão, perversidade e normalidade: diagnóstico e considerações terapêuticas. Rev. Bras. Psicanal., 32(1):67-82, 1998.

KHAN, M.M.R.  Alienación en las perversiones.. Buenos Aires, Nueva Visión, 1987.

 

 

Flávio Carvalho Ferraz

e-mail :  ferrazfc@uol.com.br

 


NOTAS

1[i] Vale mencionar aqui um exemplo clínico que ilustra a formulação freudiana de que “a neurose é o negativo da perversão”. No caso de André, a fantasia anal não era recalcada, mas atuada impulsivamente, quando ele se deixava sujar, na pele e nas vestes, pela graxa. Um outro paciente que atendi, de características obsessivas claríssimas, toda vez que recebia seu carro das mãos de manobristas, passava um pano no volante antes de tocá-lo com as suas mãos, pois sentia repulsa pela sujeira que eles ali tinham deixado. Esta conduta decorria de uma óbvia formação reativa contra seu desejo de contato homossexual.


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