Prólogo para a terceira edição francesa de

A Sociedade do Espectáculo

Guy Debord

1992

 

A Sociedade do Espectáculo publicou-se pela primeira vez no editorial Buhet-Chastel de Paris em 1967. Os distúrbios de Maio deram-na a conhecer. Desde 1971, o livro, do qual não foi alterada uma única palavra, foi reeditado pelas Editions Champ Libre que, após o assassinato do seu editor em 1984, adoptaram o nome de Gérard Lebovici. As reimpressões sucederam-se regularmente até 1971. Também a presente edição é rigorosamente idêntica à de 1967, e a mesma regra presidirá à edição de todos os livros da Editorial Gallimard.

Uma teoria critica como a contida nesta livro não precisa alteração alguma enquanto não desaparecerem as condições gerais do dilatado período histórico que ela foi a primeira a definir com exactidão. O desenvolvimento subsequente deste período não fez mais que confirmar e ilustrar a teoria do espectáculo cuja exposição, agora repetida, pode também considerar-se como histórica num sentido mais modesto: dá-nos testemunho das posições mais extremas durante as lutas de 1968 e, portanto, vislumbra já o que poderia suceder nesse ano. Os mais iludidos de então, tiveram, entretanto, ocasião de inteirar-se, pelos desenganos da sua existência, do significado de fórmulas como «a negação da vida que se torna visível», «a perda da qualidade» ligada à forma mercantil e à «proletarização do mundo».

Para além disso, com o tempo, foram-se acumulando algumas observações acerca das novidades mais importantes no curso ulterior deste mesmo processo. Em 1979, aproveitando a ocasião que me oferecia um prefácio destinado a uma nova tradução italiana, ocupei-me das transformações ocorridas na própria natureza industrial, tal como nas técnicas de governo, nas quais começava a autorizar-se o uso da força espectacular. Em 1988, meus Comentários sobre a sociedade do espectáculo deixaram claramente estabelecido que a antiga «divisão mundial do trabalho espectacular» entre os impérios rivais de «o espectacular concentrado» e «espectacular difuso» havia acabado com uma fusão que deu lugar à forma comum de «o espectacular integrado».

Esta fusão pode comentar-se sumariamente rectificado a tese 105, a qual, referindo-se ao ocorrido em 1967, distinguia essas duas formas anteriores, assinalando práticas opostas em cada uma delas. Ao haver terminado em reconciliação o Grande Cisma do poder de classe, havia que dizer que as práticas unificadas do espectacular integrado haviam conseguido, nos nossos dias, «transformar economicamente o mundo» e, ao mesmo tempo, «transformar policialmente a percepção» (numa atitude na qual a policia enquanto tal é algo completamente novedoso).O mundo só pôde proclamar-se oficialmente unificado porque previamente se havia produzido esta fusão na realidade económico-política à escala mundial. E, ainda assim, se o mundo tinha necessidade de reunificar-se rapidamente, isso se devia à gravidade que representava um poder separado na situação universal a que havemos chegado. O mundo necessitava participar como um só bloco na mesma organização consensual do mercado mundial, espectacularmente falsificado e garantido. Mas, por fim, não haverá unificação.

A burocracia totalitária, «relevo da classe dominante da economia dominante», nunca confiou demasiado no futuro. Tinha consciência de ser «uma forma subdesenvolvida de classe dominante», e aspirava algo melhor. Fazia já tempo que a tese 58 havia estabelecido o seguinte axioma: «o espectáculo funda as suas raízes numa economia da abundância, e dela procedem os frutos que tendem a dominar finalmente o mercado do espectáculo».

Esta vontade de modernização e unificação do espectáculo é a que levou a burocracia russa a converter-se repentinamente, em 1989 à actual ideologia da democracia: isto é, à liberdade ditatorial do Mercado, moderada pelo reconhecimento dos Direitos do Homem espectador. Ninguém no Ocidente fez o menor comentário crítico acerca do significado e as consequências de tão extraordinário acontecimento mediático, o que prova por si mesmo o progresso da técnica espectacular. A única coisa que se pôde registar foi a aparência de um facto de natureza geológica. Fecha-se o fenómeno, considerando-o suficientemente compreendido, e contentando-se em reter um sinal tão elementar como a queda do muro de Berlim, tão discutível como os restantes sinais democráticos.

Os primeiros efeitos da modernização detectaram-se em 1991, com a completa dissolução da Rússia. Aí vemos exposto com mais clareza que no Ocidente, o desastroso resultado da evolução geral da economia. Os caos não é mais que a sua consequência. Em todas as partes se encontra a mesma terrível pergunta, que desde à dois séculos se faz ao mundo inteiro. Como fazer trabalhar os pobres ali onde se desvaneceu toda a ilusão e toda a força desapareceu?

A tese 111, ao reconhecer os primeiros sintomas do crepúsculo russo a cuja explosão final acabamos de assistir, e antecipando-se à eminente desaparição daquilo que, como diríamos hoje, se borrará de la memoria del ordenador, e enunciava este juízo estratégico, cuja exactidão será fácil de conceder: «A decomposição mundial da aliança da mistificação burocrática é, em última instancia, o factor mais desfavorável ao desenvolvimento da sociedade capitalista».

Este livro deve ler-se tendo em consideração que se escreveu deliberadamente contra a sociedade espectacular. Sem exagero algum.

30 de Junho de 1992

 

(Tradução portuguesa de Leonel Santos da edição castelhana, ( Valencia, Pre-textos de 1999)


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