GUY DEBORD
REFUTAÇÃO DE TODAS AS CRITICAS,
TANTO ELOGIOSAS COMO HOSTIS,
ATÉ AQUI PUBLICADAS SOBRE O FILME
"A SOCIEDADE DO ESPECTÁCULO"
1975
(Simmar Films)
A organização espectacular da presente sociedade de classes acarreta duas consequências reconhecíveis em toda a parte: por um lado, a falsificação generalizada dos produtos, tal como dos raciocínios; por outro, a obrigação, para todos os que pretendem nela encontrar a felicidade pessoal, de se manterem sempre a grande distância daquilo que fingem amar - pois nunca dispõem dos meios, intelectuais ou outros, para disso chegarem a um conhecimento directo e aprofundado, a uma prática completa e a um gosto autêntico.
Isto que é já bastante evidente quando se trata do habitat, do vinho, do consumo cultural ou da liberalização dos costumes, deve ser naturalmente bastante mais vincado quando se trata da teoria revolucionária e da terrível linguagem que ela mantém sobre um mundo condenado.
Esta falsificação ingénua e esta aprovação incompetente, que são como que o odor específico do espectáculo, nunca deixaram portanto de ilustrar os comentários, diversamente incompreensivos, que responderam ao filme intitulado A Sociedade do Espectáculo.
A incompreensão, neste caso, impõe-se ainda por algum tempo. O espectáculo é uma miséria, mais que uma conspiração. E os que escrevem nos jornais do nosso tempo não nos escondem nada da sua inteligência: usam normalmente toda a que têm. Que poderiam eles dizer de pertinente acerca de um filme que ataca, em bloco, os seus hábitos e ideias, e os ataca no momento em que eles próprios começam a senti-los desmoronarem-se em cada detalhe? A debilidade das suas reacções acompanha a decadência do seu mundo. Os que dizem que gostam deste filme gostaram em demasia doutras coisas para poder gostar dele; os que dizem que não gostam dele, também eles aceitaram muitas outras coisas para que o seu julgamento tenha o menor peso.
Quem atenta na pobreza da sua vida compreende bem a pobreza dos seus discursos. Basta ver os adornos e as ocupações deles, as suas mercadorias e cerimónias; e isto está à vista por todo o lado. Basta ouvir as vozes imbecis que vos dizem aquilo em que vos tornásteis na alienação, e que vo-lo dizem com desprezo, a cada hora que passa..
Os espectadores não encontram o que desejam; eles desejam o que encontram.
O espectáculo não rebaixa os homens até fazer-se amar por eles; mas muitos são pagos para fazer de conta. Agora que já não podem ir ao ponto de assegurar que esta sociedade é plenamente satisfatória, apressam-se em primeiro lugar a afirmar-se insatisfeitos com toda a crítica do que existe. Todos os insatisfeitos se creem mercedores de melhor. Mas acaso imaginam eles que queremos convencê-los? Acreditarão eles que ainda estão a tempo de se ligar a uma tal crítica, se por uma vez esta aceitasse a sua adesão? Acreditarão poder falar fazendo esquecer o sítio donde falam, eles, os locatários do território da aprovação?
Será motivo de espanto, num futuro mais livre e mais verídico, que os escribas do sistema da mentira espectacular tenham podido julgar-se qualificados para dar a sua opinião, e pesar tranquilamente os prós e os contras, a propósito de um filme que é a negação do espectáculo; como se a dissolução deste sistema fosse uma questão de opiniões. O seu sistema é agora atacado na realidade; defende-se pela força; já não tem curso a moeda falsa dos argumentos deles, e portanto o desemprego ameaça presentemente um bom número de quadros da falsificação.
Os mais tenazes, entre estes mentirosos em falência, ainda fingem interrogar-se se a sociedade do espectáculo existirá de facto, ou se por acaso não terei sido eu o inventor dela. Mas como, de há uns anos para cá, a floresta da história se pôs em marcha contra o seu castelo de cartas falsas, e continua neste preciso momento a apertar o cerco, quase todos estes comentadores têm agora a baixeza de saudar a excelência do meu livro, como se fossem capazes de o ler e como se o tivessem acolhido com esse respeito em 1967. Mas geralmente acham que abuso da sua paciência ao levar este livro ao ecran. E o golpe é-lhes ainda mais doloroso porque não tinham imaginado possível um tal excesso. A sua cólera confirma que a aparição de tal crítica no cinema os inquieta mais que em livro. Neste caso como noutros, ei-los obrigados a bater em retirada, para uma segunda linha de defesa. Muitos culpam este filme de ser difícil de compreender. Segundo alguns, as imagens impedem a compreensão das palavras, a menos que seja o contrário. Dizendo que este filme os cansa, e elevando altivamente o seu particular cansaço a critério geral da comunicação, quereriam antes dar a impressão que compreendem sem esforço, que quase aprovam, a mesma teoria quando exposta apenas num livro. E depois, procuram fazer passar como um simples desacordo sobre uma concepção do cinema o que é, na verdade, um conflito sobre uma concepção da sociedade; e uma guerra aberta na sociedade real.
Mas porque haveriam eles de compreender, melhor que um filme que os ultrapassa, tudo o mais que lhes acontece numa sociedade que tão perfeitamente os deixou condicionados pelo cansaço mental? Como se encontraria a sua fraqueza em melhor posição para discernir, no ruído ininterrupto de tantas mensagens simultâneas da publicidade ou do governo, todos os grosseiros sofismas que tendem a fazê-los aceitar o seu trabalho e os seus ócios, o pensamentto do presidente Giscard e o sabor dos amiláceos? A dificuldade não está no meu filme, está nas suas cabeças prosternadas.
Nenhum filme é mais difícil que a sua época. Por exemplo, há quem compreenda e quem não compreenda, que quando se ofereceu aos franceses, segundo uma velha receita do poder, um novo ministério chamado "Ministério da Qualidade de Vida", era simplesmente, como dizia Maquiavel, "para que conservassem ao menos o nome do que tinham perdido". Há quem compreenda e quem não compreenda, que a luta de classes em Potugal foi em primeiro lugar e principalmente dominada pelo confronto entre os operários revolucionários, organizados em assembleias autónomas, e a burocracia estalinista, guarnecida com generais derrotados. Os que compreendem isto são os mesmos que podem compreender o meu filme; e eu não faço filme para os que não compreendem, ou dissimulam, isto.
Se todos os comentários provêm da mesma zona poluída pela indústria espectacular, eles são, como as mercadorias de hoje, aparentemente variados. Vários afirmaram que estavam entusiasmados com este filme e tentaram em vão dizer porquê. Cada vez que me vejo aprovado por pessoas que deviam ser meus inimigos, pergunto-me que erro cometeram eles nos seus raciocínios. Geralmente é fácil de descobrir. Encontrando uma estranha quantidade de novidades, e uma insolência que nem sequer podem compreender, consumidores de vanguarda procuram aqui aproximar-se duma aprovação impossível reconstruindo algumas belas estranhezas de um lirismo individual, que não estava lá.
Assim, um quer admirar no meu filme "um lirismo da raiva"; outro descobriu nele que a passagem de uma época histórica comportava uma certa melancolia; outros, que seguramente sobrestimam os refinamentos da vida social actual, atribuem-me um certo dandismo. Em tudo isto, esta velha canalha da época prossegue "a sua mania de negar o que existe e de explicar o que não existe". A teoria crítica que acompanha a dissolução de uma sociedade não se entrega à raiva, e muito menos exibiria a mera imagem desta. Ela compreende, descreve, e dedica-se a precipitar um movimento que se desenrola efectivamente sob os nossos olhos. Quanto aos que nos apresentam a sua pseudo-raiva como um material artístico tornado moda, bem sabemos que com isso não procuram senão compensar a subserviência, os compromissos e as humilhações da sua vida real; no que espectadores não terão dificuldade em se identificar com eles.
A hostilidade é naturalmente maior cada vez que se exprimem sobre o meu filme os que são, politicamente, reaccionários. É assim que um aprendiz de burocrata quer à força aprovar a minha audácia em "fazer um filme político não contando uma história, mas filmando directamente a teoria". Só que, ele não suporta minimamente a minha teoria. Cheira-lhe que, sob a aparência da "esquerda sem concessões" eu escorregaria mais para a direita, e é por isso que eu ataco sistematicamente "os homens da esquerda unida". Eis precisamente os vocábulos exagerados com que este cretino encheu a boca. Que união? que esquerda? que homens?
Salta à vista que não passa da união dos estalinistas com outros inimigos do proletariado. Cada um dos parceiros conhece bem o outro e trapaceiam desastradamente entre si, acusando-se mutuamente com grandes berros todas as semanas; mas esperam poder ainda trapacear frutuosamente em comum contra todas as iniciativas revolucionárias dos trabalhadores, para conservar, com o acordo de ambos, o essencial do capitalismo, se não conseguirem salvar-lhe todos os detalhes. São os mesmos que reprimem em Portugal, como outrora em Budapeste, as "greves contrarrevolucionárias" dos operários; os mesmos que aspiram a "comprometer-se historicamente" na Itália; os mesmos que se chamavam o governo da Frente Popular quando sabotavam as greves de 1936 e a revolução espanhola.
A esquerda unida não passa de uma pequena mistificação defensiva da sociedade espectacular, um caso particular cuja vida é breve, pois o sistema só se serve dela ocasionalmente. Apenas a referi de passagem no meu filme; mas, bem entendido, ataco-a com o desprezo que merece; como depois a atacámos em Portugal, num campo mais belo e mais vasto.
Um jornalista próximo da mesma esquerda, que depois alcançou uma certa notoriedade vangloriando-se de ter publicado um inverosímil falso documento porque é assim que concebe a liberdade de imprensa, é também grosseiramente falsificador quando insinua que eu nunca teria atacado os burocratas de Pequim tão claramente como as outras classes dominantes. Deplora, por outro lado, que um espírito com a qualidade do meu se contente com um "cinema de gueto", que as multidões pouca oportunidade terão de ver. O argumento não me convence: prefiro ficar na sombra, com essas multidões, a consentir arengar-lhes no clarão artificial manipulado pelos seus hipnotizadores.
Outro jesuita igualmente pouco dotado finge, pelo contrário, interrrogar-se se denunciar publicamente o espectáculo não seria já entrar no espectáculo? Vê-se bem o que pretendia obter tão extraordinário purismo num jornal: que nunca ninguém aparecesse no espectáculo como inimigo.
Aqueles que nem sequer têm um posto subalterno a perder na sociedade espectacular, mas apenas a ambiciosa esperança de, um dia destes, nela constituir o turno mais juvenil, manifestaram mais franca e furiosamente o seu descontentamento, e até ciúme. Um anónimo muito representativo expôs longamente as teses do mais recente conformismo, no seu lugar natural, no semanário da troupe cómica do eleitorado mitterrandista.
O anónimo acha que teria ficado muito bem filmar o meu livro em 1967, mas que em 1973 era demasiado tarde. Apresenta como prova o facto de que lhe parece urgente que se deixe a partir de agora de falar de tudo o que ele ignora: Marx; Hegel; os livros em geral porque não poderiam ser um instrumento adequado de emancipação; todo o emprego do cinema, pois é apenas cinema; a teoria ainda mais que o resto; e a própria história, donde se gaba de ter saído anonimamente.
Um pensamento tão decomposto não pôde evidentemente ressumar senão das paredes desoladas de Vincennes. Que se lembre um estudante de Vincennes, nunca se viu nascer uma teoria. E é precisamente lá que se preconiza, provisoriamente ao que parece, a anti-teoria. Que mais teriam eles para vender, contra um lugar de mestre-assistente na neo-universidade? Não que eles se contentem com isso, indo hoje o mais desclassificado dos candidatos-recuperadores badalar por todo o lado para ser no mínimo director de colecção junto de um editor, e se possível encenador: o anónimo de algures não esconde que me inveja os ganhos, faustosos a seu ver, do cinema. Podemos portanto ficar certos que nenhuma destas anti-teorias atingirá facilmente o silêncio, que é a sua única realização autêntica, porque nesse caso os seus coriféus não passariam de assalariados sem qualificação. De facto o anónimo abre o seu jogo no fim. O impostor não desejara dissolver a história senão para escolher outra no seu lugar. Queria designar os pensadores do futuro. E esta cabeça de defunto avança friamente os nomes de Lyotard, Castoriadis, e outros apanha-migalhas a reboque; ou seja, pessoas que há mais de quinze anos tinham lançado os seus faróis, sem chegar a deslumbrar por aí além o seu século.
Nenhum perdedor ama a história. E por outro lado, quando se nega a história em família, porque haveria o carreirismo mais genuinamente inovador de fazer cerimónia em agarrar-se a quinquagenários recuperados? Porque haveríamos de achar contraditório fazer-se passar por um anónimo que mudou de tal modo após 1968, e confessar que ainda nem sequer se chegou ao desprezo dos professores? Este anónimo ainda assim tem o mérito de ter ilustrado, melhor que os outros, a inépcia da reflexão anti-histórica de que se reclama; como as reais intenções deste falso desprezo que os impotentes opõem à realidade. Ao postular que era demasiado tarde para empreender uma adaptação cinematográfica de A Sociedade do Espectáculo seis anos após a aparição do livro, esquece em primeiro lugar o facto de que não houve sem dúvida três livros de crítica social tão importantes nos últimos cem anos. Quer esquecer por outro lado que eu próprio tinha escrito o livro. Falta qualquer termo de comparação para avaliar se eu fui demasiado lento ou demasiado rápido, pois é óbvio que os melhores dos meus antecessores não dispunham do cinema. De modo que, confesso, senti-me muito bem por ser o primeiro a realizar esta espécie de proeza.
Os defensores do espectáculo acabarão por reconhecer este novo emprego do cinema, tão lentamente como vieram a reconhecer o facto de que uma nova época de contestação revolucionária sapa a sociedade deles; mas serão obrigados a reconhecê-lo com igual inevitabilidade. Seguindo o mesmo caminho, primeiro calam-se; depois falam de lado do assunto. Os comentadores do meu filme estão neste estádio.
Os especialistas do cinema disseram que havia nele uma má política revolucionária; e os políticos de todas as esquerdas ilusionistas disseram que era mau cinema. Mas quando se é ao mesmo tempo revolucionário e cineasta demonstra-se facilmente que o generalizado azedume deles decorre da evidência de que o filme em questão é a crítica exacta da sociedade que eles não sabem combater; e um primeiro exemplo do cinema que eles não sabem fazer.
Tradução de B. A.
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