Pedro Paulo Ribeiro Vieira
ex-aluno de 1994
na Amazônia
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esta série,
contando o "serviço" de Pedro Paulo Ribeiro Vieira (1994) na Amazônia
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Date: Mon, 12 Feb 2001
Paim,
Comecei a juntar as idéias... este meu trabalho aqui na amazônia tem diversos momentos... tem horas que as viagens são externas e a exuberância da natureza enche os olhos... mas em outros momentos a viagem é interna, conceitos se chocando.
Farei meu relato da forma que conseguir... Autorizo a publicar, mesmo que apenas as partes que você achar mais interessante... pois há dias, como o de hoje, que chego no quarto com as idéias mais claras... mas aqui no hospital há todos os tipos de dias, e eu faço questão de registrá-los como são... com o mínimo possível de intervenção literária....
As aventuras tipo "Indiana Jones" também tem seu lugar, mas para mim são simples alegorias, pois não vim aqui para passear... apesar de também o fazer e com muito gosto!
Hoje eu iniciei meu treinamento (oficial, com direito a diploma e tudo) de técnico em saúde aqui no Hospital Tropical de Manaus. Esta é uma instituição que absorve qualquer aspecto relacionado à medicina tropical no Estado do Amazonas. É um centro de referência, que ajuda a estancar, controlar e prevenir importantes doenças como a malária, SIDA, hepatites e arboviroses na região (mas no momento a preocupação aqui é com esta epidemia de dengue que está acometendo muita gente e não acaba!).
Por incrível que possa parecer, meu doutorado está me levando a dois extremos do assunto que resolvi estudar. Se por um lado desenvolvo técnicas e modelos moleculares para entender a quimiorresistência da malária falciparum na Amazônia Brasileira, por outro, preciso aprender a realizar todos os procedimentos para desenvolver o trabalho no campo. Ou seja, furar o dedo dos outros, fazer lâminas, observar parasitos no microscópio, retirar sangue à vácuo ou na seringa, armazenar, criopreservar, extrair DNA, amplificar, digerir, supor, sugerir e gerar resultados coerentes e relevantes.
Ano passado, quando estive aqui pela primeira vez, me espantei com quase tudo, e quem encontrou comigo neste "entre selvas" que passei ai no Rio, sabe do que estou falando. Aqui a exuberância natural enche os olhos. É lindo demais. Chegar de avião em Manaus é o oposto de chegar de avião em São Paulo. A quantidade de verde e de água doce ainda vai trazer-nos problemas diplomáticos internacionais, mas por enquanto só posso dizer que não tem nada a ver com o que agente vê pela TV. É muito maior e mais colorido.
Mas para quem conhece, não é novidade que Manaus apesar de quente e incrustada no meio da Floresta Amazônica, é uma cidade grande e à altura do posto de capital do Estado do Amazonas. A cidade teve um forte impulso financeiro por volta de 1900, no auge do ciclo da borracha. Foi considerada a " Paris dos trópicos", e ganhou até teatro municipal (todo trazido da França com exceção do chão que é de mogno extraído daqui mesmo, muito bonito aliás).
Hoje em dia a cidade de Manaus (de "Manaós" = rainha das águas em língua indígena), apesar de manter um programa requintado, semanalmente executado pela filarmônica local, já se rendeu aos ditos "ícones de metrópole" e quem não sobrevive sem um MacDonald's, TV a cabo, celular, carro importado, bolsas da Victor Hugo etc não ia se sentir tão longe assim de Ipanema. A falta de mar é satisfatoriamente preenchida pelo Rio Negro, e convenhamos, recursos hídricos não é o problema por aqui.
Apesar disto, o povo é calmo e hospitaleiro. Tem um certo estigma inicial contra o pessoal do Sudeste... a gente recebe a imagem de que eles são todos índios, andam nús, de arco e flecha em punho (mais ou menos igual ao pensamento que os nova-iorquinos tem do povo aí do Rio de janeiro) e eles de que a gente é bandido, que mata policiais etc, ou seja, a interação pode ser explosiva. Mas o evidente equívoco se desfaz rápido.
Mas para vir trabalhar aqui, a parte impessoal do processo eu aprendi como microbiologista formado pela UFRJ (que em breve passará a se chamar UB - Universidade do Brasil), lá no bloco I do Centro de Ciências da Saúde com professores doutores da mais alta estirpe no "ensinamento do invisível".
Mas tem uma segunda parte que estou aprendendo com a vida graças à Amazonia. Lá no Fundão, no Laboratório de Biologia da Malária, nós não perguntamos aos tubos de ensaio se eles permitem serem centrifugados a 15.000 rpm por 20 minutos, "não estamos nem aí" se os parasitas cultivados in vitro, sentem-se apertados dentro das garrafinhas de plástico vivendo em meios de cultura artificialmente preparados para mantê-los, nem muito menos nos emocionamos com os variados e trágicos fins dos cobaias, camundongos e outros animais de laboratório. É tudo em nome da ciência e pela manutenção de nossas bolsas de estudo, sejam de iniciação científica ou de pós-graduação.
Não me confunda. Sou um teórico que trabalha baseado no empirismo da ciência e de seu conhecimento objetivo. Utilizo modelos mentais para tentar entender e modificar a realidade, se possível de uma maneira positiva.
Mas sou um ser humano que nunca tinha ouvido uma criança doente chorar. Ainda mais ser "toda furada" ao se colher o seu sangue para exames e diagnósticos de doenças como malária, leishmaniose, dengue ou febre amarela. Coisas que agente estuda nos livros e acha que só é um problema real em algum lugar esquecido lá da África.
Não foi por isto que vim parar aqui primariamente, mas certamente uma das grandes razões de ter voltado foi ter contribuído, algumas vezes apenas com um sorriso, para amenizar o sofrimento de pessoas carentes desta região, muitas delas ribeirinhas que passam dias e dias navegando por igarapés para poder chegar em Manaus e ser precariamente atendidas.
Meus estudos só geram resultados a longo prazo e a necessidade destas pessoas é instantânea. Aqui estou aprendendo a ser uma pessoa melhor. Não, não sou médico, sou microbiologista. Jurei colaborar com a "logística" e não no "front". Não sou regulamentado por CRM algum a curar ninguém. Mas há diversas formas de ajudar, e a necessidade desta gente faz com que hoje, aos 25 anos, eu vire meus olhos para a Amazônia, que além de sua beleza e potencial de prosperidade, precisa de gente que queira fazer alguma diferença, por menor que seja.
Desta forma, o relato que fui convidado a fazer, vai muito além de narrar as aventuras de um jovem pesquisador carioca na Amazônia, fascinado, diria até embasbacado, com tanta beleza dentro do nosso próprio país.
Muito mais do que isto, acredito que passo hoje pelo marco fundamental de um grande amadurecimento, uma reentrada na vida adulta. De uma forma audaciosa, se a modéstia me permitir, resolvi botar à prova simultaneamente, todos os ensinamentos, padrões, conhecimentos, receios, expectativas, desapegos, medos e dúvidas... um tiro no escuro!
Não em uma atitude suicida, mas para renascer. Sobrevivendo longe do lar paterno, do calor materno, longe das pessoas que amo e perseguindo um ideal.
Já me disseram que "isto não dá dinheiro" e que "a vida não é nada daquilo que agente pensa". Então, resolvi parar de pensar e começar a agir.
Contudo, tenho um pouco de medo deste tipo de relato. Como futuro pesquisador, sou solitário. Mas como antigo aluno sou membro de uma comunidade. E se nosso âncora, "aquele que me trouxe de volta", me faz um pedido como inaciano, desta forma eu o responderei.
Na verdade, como já disse, esta é a minha segunda passagem pela Amazônia em menos de 6 meses. Tenho ainda minhas lembranças e anotações de neófito em seus mistérios. Além do mais, aqui, bem pertinho do Equador, cercado de vida e morte dentro do Hospital Tropical de Manaus, não há um dia igual ao outro, Certamente terei muitas coisas para descrever.
Obviamente deixo aqui registrado minhas saudades por uma certa "turma de TATUS" que entopem minha caixa postal de e-mails, diariamente, não importando a distância. A grande maioria está formada e aí no Rio "correndo atrás", alguns estão em São Paulo e outros momentaneamente no Canadá, enfim, as atividades são variadas.
Mas mesmo querendo evitar o velho saudosismo inaciano, a gente sabe onde foi que tudo isto começou.
E eu agradeço ao Paim pelo convite e por esta oportunidade de desmistificar, e quem sabe jogar uma certa luz nesse assunto polêmico que é o fato da maioria dos brasileiros "nunca terem visto a amazônia".
foto 266
Date: Sat, 17 Feb 2001
Mando o primeiro relato um pouco mais com cara de diário.
O primeiro (ou segundo) de uma série.
Não recebi resposta sobre o anterior,e como não sou um excelente escritor, fico logo achando que você não gostou muito.
Como "âncora e editor" espero um retorno... já estou acostumado a remodelar o formato dos textos para torná-los mais "publicáveis" (pelo menos no que diz respeito a congressos e revistas científicas).
Mas se você não se importar, gostaria de manter minha "liberdade literária" e você dá aos textos a forma que você achar melhor, e, desculpe qualquer "assassinato ortográfico".
Água que não acaba mais.
Hoje é um dia típico de início de final de semana aqui no hospital. O número de pacientes de ambulatório diminui, o que na prática só significa que a segunda-feira vai ser agitada (Isto aconteceu ano passado na época do pico de malária!). Parece que as pessoas, mesmo doentes e com febre, evitam vir ao hospital no final de semana.
O convívio no alojamento com os médicos residentes é excelente, sendo que assim como eu, nenhum deles é natural do Amazonas. Por causa disto, os finais de semana neste lugar ficam com um "cheiro de saudade de casa no ar", e cada um de nós tenta digerir da melhor forma a sensação de falta e ausência dos parentes, amigos e amores.
O prédio da residência onde nós moramos tem apenas um andar. Costumava ser uma enfermaria, de maneira que possui uma ampla sala (onde os pacientes graves esperavam para ser atendidos) e um corredor bastante largo com 8 quartos onde haviam leitos para o atendimento destes pacientes (excelente lugar para morar se você quer perder seu medo de fantasmas!).
Os quartos não possuem janelas e apesar de serem suítes com ar-condicionado, não são muito aconchegantes (só tem água fria!). Os de número 1 a 6 são reservados para os médicos residentes do hospital. Os quartos 7 e 8 são maiores (possuem 5 camas cada) e servem como alojamento masculino e feminimo para pessoas em trânsito.
Aqui neste hospital há um fluxo muito intenso de chegada e saída de gente que vem de todo o Brasil (e de outros países também) para fazer estágios de 1 mês em medicina tropical.
Eu já dividi o quarto de número 7 com médicos, farmacêuticos e enfermeiros vindos de Minas Gerais, Rondônia, Roraima, Acre, Rio Grande do Sul e até espanhóis e alemães. É um local de centralização de pessoas viajadas e experientes, cada uma com uma história de vida diferente para contar.
Apesar de não ser médico, nem estar propriamente de passagem, sou "residente" e acabo servindo como anfitrião, juntamente com os médicos que moram aqui durante os 2 anos de especialização em infectologia.
Ano passado, tive a oportunidade de ser novato quando já estava chegando ao fim um destes ciclos.
Foi quando conheci o Franklin, a Eda, a Silvana, o Jesus e o Reynaldo .
Nenhum deles é do Estado do Amazônas. Franklin é bahiano, as meninas são paraenses, Jesus é um médico espanhol que depois de rodar o mundo todo como militar e voluntário em ONGs, resolveu vir ao Brasil trabalhar com o povo da Amazônia, e o Reynaldo é um veterinário cubano (carta fora do baralho que nem eu!) e está orientando a Secretaria Municipal de Saúde na estratégia de aplicação de biolarvicidas para o controle do mosquito vetor da malária no município de Manaus.
Após nosso primeiro encontro, no ano passado, fiquei muito amigo de todos e a história de cada um separadamente já seria suficiente para vários volumes deste relato.
Mas como ia dizendo, todos, sem exceção saíram de casa para vir trabalhar aqui na Amazônia e direta ou indiretamente, querendo ou não, acabam fazendo parte de um mesmo grupo.
Há gente de todo o tipo. Do visionário ao idealista, havendo inclusive os que enchergam o interior do Brasil como oportunidade imperdível e real de enriquecimento financeiro.
Nos meses que estive aqui no ano passado, nos finais de semana nós nos reuniamos para cozinhar comidas típicas (do Pará e Bahia, porque o Franklin e a Silvana tinham jeito para a coisa, enquanto o resto de nós só tinha dom mesmo para lavar os pratos e panelas) e tomar cerveja. Assim sendo, acabamos por fortalecer laços de amizade importantes para os momentos de saudade de casa doerem menos.
Eu me dei muito bem com o Franklin, uma pessoa muito inteligente, de personalidade forte, e que está dedicando a vida na materialização de um ideal (tipo de médico muito raro de se encontrar hoje em dia), mas serei mais específico em momento mais oportuno.
Porém, algumas destas pessoas se mudaram daqui. O período de residência deles acabou e eles foram absorvidos pela instituição como médicos contratados.
Por enquanto só ficamos eu, o Reynaldo, o Jesus (que termina a residência no final de 2001) e a Fabiana, uma médica de Boa Vista que está começando a residência agora.
Mas o importante mesmo, é que hoje é sábado, a "Tatuzada" deve estar combinando de se encontrar aí no Rio e eu estarei mais uma vez ausente. Está chovendo "cães e gatos" lá fora, cada "inquilino" está no seu próprio quarto (menos eu que não tenho quarto próprio e estou dividindo o 7 com um estudante de Medicina do Maranhão que veio junto com a namorada aprender malária) e a única coisa que se houve de vez enquando é o ranger das portas que separam a grande sala do corredor de quartos.
Deve ser Jesus indo fazer café, só para variar!
foto 274
Residência Médica do hospital tropical
Manaus, 7 de março de 2001
E o tempo começa a mudar.
A variação climática aqui no Amazonas é realmente algo a ser relatado. A única diferença entre as estações do ano são a presença ou não da chuva intensa, influenciando a já alta umidade relativa do ar (porque chover, chove quase todo o dia). Mas como a temperatura é sempre muito alta, a sensação varia metaforicamente entre "fritar na panela em cima do fogão" ou "dentro do forno". Eu estou tendo a oportunidade de vivenciar o momento de transição deste eventos climáticos e pessoalmente prefiro "fritar em cima do fogão" pois assim os dias são mais bonitos e as noites mais estreladas.
Semana passada foi o carnaval, que aqui em Manaus tem sua maior força no carnaBOI. O evento ocorre no Sambódromo da cidade e é caracterizado pela passagem de trios-elétricos tocando canções entoadas pelos representantes dos bumbás Garantido e Caprichoso.
Contudo, como é comum em todos os locais onde há apenas 2 concorrentes ao título de melhor do ano, empates na primeira posição são constantes (já que o que vem em segundo lugar é ao mesmo tempo vice-campeão e último colocado).
Já contei esta história antes, mas vou me dar ao luxo de repetí-la em "cadeia inaciana". Para participar da festa, é necessário comprar um "tururi" (o equivalente à mortalha ou abadá no nordeste) pela não equivalente quantia de 10 reais.
Este ano, eu fui novamente induzido a comprar um tururi do Caprichoso (e o Guimarães faria o mesmo) pois há uma forte simpatia dos vascaínos pelo boi Caprichoso e dos flamenguistas pelo boi Garantido. Porém, aqui em Manaus nós "caprichosamente vascaínos" estamos em maioria.
Ano passado houve empate e este ano também. No final, todo mundo é bi-campeão, e a festa continua nos "currais" até o evento de Parintins.
A música caracterizada como "boi", é muito bem marcada ritimicamente, e com uma grande riqueza de harmonias e levadas, além da seguinte peculariedade: coreografia específica para CADA letra.
Ou seja, é absolutamente impossível "dançar o BOI" sem um conhecimento prévio aprofundado da música em questão.
Num evento como o carnaBOI a grande maioria das pessoas conhece as toadas de seu boi preferido e até mesmo as do boi "contrário", o que implica num espetáculo sincronizado que eu só tinha presenciado nas "ôlas" nos jogos do maracanã.
E mesmo que se tenha boa vontade para aprender a dançar, a fluência só é atingida quando a música já está quase acabando, sempre seguida de outra, com coreografia completamente diferente. O resultado prático (segundo me disse a Vivian, uma médica paulista que conheci) é estar repetindo inesgotavemente os 10 minutos iniciais da primeira aula de "step". Eu nunca fiz uma aula dessas, então só posso dizer que a sensação é de se sentir pagando um baita de um mico, a noite toda que nem um mané, ou até o momento em que o único movimento sincronizado que se pode fazer sem chamar a atenção é "levantamento de latinhas de cerveja".
Em termos gerais, o carnaBOI é uma experiência bem interessante e eu indico para aqueles que tem curiosidade de conhecer. Se eu estiver por aqui na época do evento oficial em Parintins, é bem capaz de dar uma passada por lá. Quem sabe até lá eu não aprendo a dançar uma ou duas músicas....
Residência Médica
Manaus 13 de março de 2001
Bebendo com a Laura
Neste momento, todos os quartos da resisdência estão ocupados, e a sensação é de estar na colônia de férias de Correias (só que sem inspetores, é claro!). Além dos resisdentes fixos, de mim e do Reinaldo, estão aqui alojados o Michael (aluno de medicina cursando o último ano da Universidade de Berlim), a Vivian (residente em infectologista de um hospital paulista que eu não lembro o nome agora), o Henrique (niteroiense, aluno de medicina da Souza Marques que inclusive me disse conhecer alguns ex-alunos do CSI que estão por lá), o Ênio (médico paulista, chegou aqui anteontem) e a Chiara (infectologista italiana, portadora de um sorriso angelical que acompanha o seu inesgotável bom-humor).
Ontem, após o expediente convidei a Fabiana, o Michael e a Érika para tomar uma cerveja lá no centro. Quando chegamos lá, um deles me perguntou: " Onde é que agente vai beber? Tem algum bar por aqui? ". Respondi que certamente havia, mas que a minha idéia era pegar uma "vodeira" (canoa com motor) e cruzar o Rio Negro para tomar cerveja em algum "bar flutuante" que eu sabia que tinha lá do outro lado (Dica do Edinildo, técnico do laboratório de malária).
O pessoal concordou e a gente foi até o porto flutuante. Ao passarmos pelas voadeiras, rapidamente fomos abordados pelo seu Antônio, que se mostrou disposto a nos levar até o outro lado em troca de um pouco de cerveja e 2 reais por cabeça em cada direção. (Antes de encontrarmos o seu Antônio, recebemos milhares de propostas de passeios para igarapés e hotéis de selva, provavelmente devido a presença do Michael que por ser um alemão branquelo de 2 metros de altura, conferia ao grupo um certo "perfil de turistas").
Ao atravessar uns 15 km de uma margem até a outra do Rio Negro, travessia que foi recheada por "banzeiros" (marolas formadas pela passagem de outros barcos e que literalmente fazem a canoa "voar", chegamos ao bar Itaí na voadeira de nome "Sabrina".
Este bar flutuante era muito grande e espaçoso. Imediatamente notamos a presença de uma arara vermelha (que logo em seguida soubemos que tinha o nome de "Laura"), que foi domesticada pelos donos do estabelecimento e que se apaixonou quase que instantanemente pelo Michael. Tiramos várias fotografias do casal.
Foi um fim de tarde muito agradável. Manaus podia ser vista ao fundo e foram momentos de grande tranquilidade. Algumas horas depois (assim que a chuva passou), seu Antônio nos levou de volta a Manaus.
Ao chegarmos ele disse: "Se quiserem posso levá-los para passear por aí, agente entra pelo Rio Amazonas, pesca um pouco e depois vai almoçar na casa de um ribeirinho amigo meu".
Chegamos ao hospital, contamos o ocorrido para o resto do pessoal e todos aceitaram fazer parte do próximo passeio. Acho que vai ser bem legal.
Manaus,14 de março de 2001
Iranduba parte I - Até Manacapuru
Eu o Henrique e a Vivian fizemos algo que eu sempre tive vontade de fazer aqui na Amazônia. Um passeio do tipo "vamos descobrir o Brasil" , ou seja, ir andando, andando e ver até onde agente chega em um passeio de apenas 1 dia.
A idéia era pegar um daqueles barcos onde se compra apenas o espaço para se colocar uma rede e ir até um lugar qualquer para tomar banho de rio. Fomos até o terminável hidroviário de Manaus e compramos uma passagem até o município de Iranduba.
A saída de voadeira foi calma, poucos banzeiros durante o caminho e um visual diferente pela presença de um baita transatlântico ("Crystal Harmony" - vindo da Flórida) ancorado no porto de Manaus. A chegada do outro lado do Rio Negro foi totalmente diferente da outra, quando fomos para o bar flutuante. Desta vez, aquela continuidade de terras ao longo da margem que imaginávamos existir, se mostrou enganosa.
Até aportar propriamente, passamos por um labirinto de Igarapés, até que finalmente avistamos uma pequena cidade numa área desmatada no meio de muito mato e água. Chegamos junto com uma balsa chamada "Boto de Manaus", que faz o transporte de automóveis de uma lado para o outro do Rio Negro.
Em Iranduba pegamos um taxi, e por 8 reais cada, fomos até Manacapuru (76 km de distância) numa estrada asfaltada que até não era tão ruim como eu esperava.
Em Manacupuru , o Henrique se enturmou com um pessoal que estava indo para o lago do Miriti. Fomos junto com eles e passamos um dia maravilhoso tomando banho e entrando em contato com a Natureza. Conhecemos uma moça chamada Rose, muito simpática e meio "natureba". Após "conversamos um pouco com a Rose", acabamos dando uma carona para ela até Iranduba quando da nossa volta para Manaus.
O sábado seguinte foi igualmente divertido, fizemos o tal passeio com o seu Antônio e de uma maneira bem menos asséptica do que a oferecida pelas impresas de turismo.
Eu poderia ficar horas aqui relatando as belezas naturais, a pescaria de piranhas, a focagem de jacarés nas margens dos Igapós, a lua cheia no céu na volta para Manaus, enfim, um visual maravilhoso, um pouco arriscado eu assumo, pois o contrato foi feito "de boca" com o motorista da voadeira, mas definitavamente valeu a pena, e as fotografias estão aí para confirmar.
No domingo fomos para um município que fica a 100 km de Manaus, chamado Presidente Figueiredo, tomar banho de cachoeira. O lugar é paradisíaco (já tinha ido lá antes).
Hospital Tropical 16 de Março de 2001
Tédio
Dei uma palestra/aula sobre biologia molecular e a resistência do plasmódio no contexto da minha tese de doutorado. Foi muito boa e aceitação por parte da audiência composta por médicos aqui da Fundação de Medicina Tropical foi muito satisfatória. Auditório cheio, muitas perguntas e o famoso "frio na barriga" que a gente sempre sente quando tem que se expor e "mandar bem", para que a continuidade de nossos ideais seja corroborada. Passei bem por mais este obstáculo. E por causa disso, não sou mais "invisível" por aqui, e a moral no trabalho esta em alta. Em termos de "interesse político e alocação de verbas", isto é uma grande coisa.
Até o diretor-presidente da Fundação de Medicina Tropical pegou dengue. A epidemia não perdoa ninguém.
Sinto que o meu aprendizado aqui no hospital está chegando ao fim, pois já faço o que me proponho em termos de contato direto com os pacientes com eficiência e precisão. Acredito estar pronto para ir para a fronteira.
Na semana que vem, estará ocorrendo um Congresso de Medicina Tropical lá na Bahia e o clima aqui é de preparação para o mesmo. Não vou porque não tenho "tempo", mas sinto que as coisas vão ficar um pouco paradas por aqui.
Hospital Tropical, Manaus 17 de março de 2001
Fui juntamente com outros residentes numa ONG chamada COIAB (Coordenação das organizações indígenas da Amazônia Brasileira) e me ofereci como voluntário para participar de uma viagem assistêncial junto a algumas tribos do distrito de Manaus.
Acho que vou dar uma fugida e passar uma semana prestando assistência em comunidades indígenas do interior do Rio Amazonas...o pessoal vai pro Congresso e nem vão sentir minha falta..assim espero, pois esta parte da viagem é um interesse pessoal meu e fica meio difícil de justificar profissionalmente, mas eu vou assim mesmo.....
Hospital Tropical, Manaus 18 de março de 2001
Eu vou mesmo, está decidido. Recebi um telefonema da confirmando a minha presença. Esta tudo sendo resolvido muito rápido e em cima da hora, vou deixar um recado com o pessoal da residência para me dar um back-up se a minha "batata assar" minha corientadora e o diretor-presidente vão para Brasília depois do Congresso, ou seja, se eu ficar uns 10 dias é bem capaz de ir e voltar sem ninguém importante sentir a minha ausência.
A vã para Itacoatiara sai amanhã às 6:30 da manhã, eu eu estarei dentro dela....tô com o pé meio machucado. (Uma friera que não sara de jeito nenhum por causa da umidade e parece que agora deu uma infeccionada). Estou levando a minha rede, curativos, antibióticos e a minha câmera. Deixei o notebook com o Michael e não faço a menor idéia do que me espera...
Manaus, 19 de março de 2001
iagem Assistêncial junto com a equipe da COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira)
Dia 1
Quase não viajei por causa deste fungo no meu pé. A infecção secudária por bactérias, encheu as feridas de pus e fica difícil de andar. Tirei até uma foto. Dá até para mandar para um livro de microbiologia médica.
Tá feio mesmo. Os residentes do hospital tropical me desaconselharam a viajar por causa da excessiva umidade, o que seria um aditivo para o crescimento do fungo, e consequentemente intensificaria a infecção secundária com perigo de septicemia.
Fui objeto de uma "exposição clínica no alojamento". Ser atendido por 7 médicos de diversos países, e simultaneamente, foi realmente interessante. Eles descobriram que eu já estava com um gânglio infartado na virilha, o que significa que já tinham caído bactérias nas minhas vias linfáticas.
Contudo, apesar da pequena febre que tinha me acometido, eu estou bem de saúde, e pela minha idade e condição física, os riscos de complicações, apesar de existentes são mínimos. Me muni dos antibióticos e fungicidas necessários e me "dei alta" à revelia do atestado que me foi dado.
Que se dane! Não vou deixar passar esta experiência por causa de um fungo, nem hoje nem nunca. Juntei minhas coisas e vim assim mesmo.
Hoje, as 6:30 da manhã, já estava na porta da ONG, como tinha sido combinado. A vã atrasou muito para sair e deu tempo de começar a conhecer os outros integrantes da equipe. Fui apresentado ao Custódio (microscopista), ao Ângelo (dentista) e à Zeila (técnica em enfermagem).
Finalmente, já dentro da vã, pegamos rapidamente a M010, estrada que liga Manaus ao município de Itacoatiara, que fica a 280 km de distância da capital (3,5 horas de viagem devido a trechos bastante esburacados).
O Rui, motorista da vã não queria parar nem para o pessoal urinar, porque estava muito atrasado. Ainda iríamos encontrar com a Simone e a Rosa, enfermeiras que também fariam parte da equipe e que são residentes em Itacoatiara.
Após este primeira parte da viagem, já cansativa o suficiente, chegamos ao nosso destino e fomos direto ao porto da cidade descarregar o material.
Encontramos as enfermeiras já fazendo preparativos dentro do barco da FUNASA (Fundação Nacional de Saúde) e foi então que descobri que apesar de "não governamental" a COIAB recebe apoio federal para o desenvolvimento de suas atividades. Após outra espera, finalmente dentro do barco de um andar, um cômodo e uma pequena área para refeições, seguimos pelo rio Amazonas até um igarapé que nos levaria até o Rio Urubu, um dos seus afluentes e onde se localiza o polo base da COIAB, dentro da área de reserva indígena dos Mura, Mundurucus e Tucanos.
O Rio Amazonas difere enormemente do Negro por uma série de características. A primeira a ser notada é a inquietação de suas águas de tonalidade barrenta.
Me falaram que a gente chegaria na Comunidade do Maquira (primeira a ser atendida) lá para as 8 da noite, como eram 1:30 da tarde e tinhamos acabado de almoçar, me toquei que estava realmente me embrenhando na selva, numa viagem que só estava começando.
A segunda diferença marcante entre o Rio Amazonas e o Negro é a presença de botos. Animais lindos, de tonalidades róseas, outros azulados, e que assustados pelo motor do barco fogem e aparecem muitas vezes bem do nosso lado ao emergirem para respirar.
Que maneiro! E não são poucos não, a gente até se cansa de contar quantos aparecem ao longo do caminho e a sensação de sentir que não é um evento raro dá uma grande satisfação.
"Está um dia de muito sol. Escrevo estas linhas sentado na proa do barco olhando a paisagem. Estas águas turvas e arredias recheadas de botos são realmente inspiradoras.
Ando meio preocupado com o meu pé, mas não vou deixar nada interferir com os meus planos aqui na Amazônia.
Semana que vem vou para a fronteira, e esta viagem assistencial será um bom teste para o aprendizado "de campo" que tive no Hospital Tropical lá em Manaus.
Entre botos, andorinhas, búfalos, garças, insetos e FUNGOS, finalmente começo a sentir saudades de casa, da minha mãe, pai e irmãos, e de vez em quando bate uma paranóia. Se eu sumir aqui, vai demorar muito, mas muito tempo mesmo para alguém notar, e caso me achem, não vai ter muito de mim para contar a história.
Ainda falta muito para chegar, o sol queimando meu miolo,o pessoal do barco falando de política enqunto passamos por Igarapés (ouço falar que este aqui se chama " Aró-ató" que significa "gavião real" em linguagem indígena) e ilhas.
As vezes até eu mesmo me pergunto que diabos estou fazendo aqui. Mas a sensação interna é de muita tranquilidade. Estou feliz. Este fungo está cada vez maior, mas estou feliz. É um privilégio estar vivenciando isto tudo e ainda tão jovem. Tomara que realmente sirva para alguma coisa...senão ....valeu a intenção da semente.
O barulho espanta os bichos. Muitos se escondem e outros, antes disso, passam na frente do barco e dão um showzinho de poucos segundos. Refiro-me às aves. Desisti de fotografar, tenho que ser muito seletivo com o que registrar, pois não há filmes no mundo que consigam retratar a experiência de estar respirando dentro deste paraíso. Prefiro "filmar com os olhos" e gravar na minha memória, pelo menos registro para bons sonhos eu vou ter.
Os sujeitos estão apostando para ver quem sabe reconhecer melhor os tipos de madeiras que aparacem no caminho (acho que eles estão inventando).
Neste momento já é meia noite. A viagem de barco demorou muito mesmo, passamos a Maquira e viemos pernoitar na comunidade da Taboca. Descobri que vamos dormir dentro do barco pendurados em redes, juntos uns dos outros. Demorei para perceber isto e não peguei um lugar muito bom (estou no meio da passagem entre a cozinha e o banheiro).
Escrevo estas últimas linhas de dentro da minha rede. Meu pai tem uma rede na varanda do apartamento lá em Botafogo, mas eu não me lembro de ter dormido uma noite inteira dento dela. A provável dor nas costas amanhã cedo vai me relembrar, mas não reclamo não. Isto e ter tomado banho com este troço em movimento sob a luz da lua já valeram o dia de hoje.
Conheci o um sujeito chamado Jânio, assistente do piloto do barco, ele me ensinou a pendurar minha rede no estilo "Parintins". (Pois quando não há gancho pra todos, pode-se pendurar a rede usando cordas mesmo).
Nossa Senhora da Taboca , 20 de março de 2001
Dia 2
Acordei cedo e junto com todo mundo. Segui ao lado do dentista para terra firme, não consigo desfarçar meu fascínio e as pessoas percebem. Comunidade simples. Feição e morfofisionomia típica de descendentes de índios, completamente diferente dos ribeirinhos das comunidades que conheci lá pelo Rio Negro. Andam vestidos, falam português, aqueles índios típicos que todo mundo espera encontrar quando desse do avião em Manaus certamente existem, mas chegar até eles é muito mais complicado do que se imagina, e não é para qualquer um também não, tem que te um bom motivo para ser "levado até lá", é o tipo da coisa que dinheiro não paga. Só dá para chegar até aqui de graça e se for a trabalho.
"Conheci seu Daniel, pajé da comunidade da Taboca, neto de índios Mura. Aparentemente eles não tem muito orgulho disto, ou fingem que não tem, tentam manter uma postura "civilizadamente esperada". Me apresentei junto com os membros da COAIAB para a comunidade. A velha "boa vontade" novamente funciona, e a sinceridade das minhas palavras novamente me abrem portas. A apresentação foi feita numa casa sem paredes na forma de um "chapéu de palha", orgulho de seu Samuel, "presidente da Taboca".
O atendimento começa. As enfermeiras começam a dar vacinas e o Ângelo se prepara para iniciar o tratamento dos dentes (arrancando mais do que tratando como eu perceberia mais tarde). A já costumeira gritaria e barulheira de criança chorando mais uma vez preenche a até então silenciosa escola primária onde é feito o atendimento. Normal!
Ainda estou meio igual a "peixe fora d'agua". Ajudo a cadastrar os pacientes, sou sistemático no trabalho (minha profissão exige!) e coloco as fichas em ordem alfabética. Contudo, sou horrível para burocrias e encho logo o saco e vou dar uma caminhada para conhecer melhor o lugar e tirar umas fotos. Uma senhora me convida para entrar em uma das casas e me oferece água. Eu aceito e entro. É a casa do pajé...
Seu Daniel tem 71 anos mas não aparenta mais do que uns 50. Segundo ele, tem a idade mantida por duas doses diárias de vinho (mas na garrafa ele coloca uns "mantinhos que crescem por aqui" e que ajudam a dar força e manter a virilidade, segundo ele). É o curandeiro e responsável em manter a espiritualidade dos indígenas daqui.
Mostro para ele meu fungo, ele me diz que trata este tipo de ferimento com graxa...Desta vez não vou arriscar, tá muito infeccionado!
Apesar dos traços indígenas de seu Daniel, sua casa é uma casa típica de caboclo amazonense. Calendário com a figura de Jesus com os dias em "folhinhas destacáveis", armários, mesas, enfim oca mesmo pelo visto so em São Gabriel da Cachoeira (onde o também ex-aluno Rafael Caruso o "Carusinho" está servindo como tenente farmacêutico) e lá na fronteira onde foi recentemente descoberta uma tribo ainda denominada como marreteiros (pois é desta forma que eles ainda recebem quem vai visitá-los).
Converso sobre tudo com seu Daniel, política de acentamento de terras, religião, relações familiares, FUNAI, invasão da amazônia por americanos e outros estrangeiros (nesta hora a esposa do seu Daniel me oferece uma fruta amarela que tem o gosto e a aparência semelhante à "fruta do conde")....o sujeito é especial!
Fiquei um pouco impressionado apenas com uma frase proferida por pelo pajé Daniel que transcrevo aqui: "...enquanto isto VOCÊS BRANCOS, vem para cá e querem levar o que é nosso....e sabe do que mais?....podem levar....estamos aqui de passagem....nossa terra está garantida!"
Ouvir isto de um "brasileiro mais puro do que eu" foi um pouco difícil. Mais um que ouve o galo cantar, não sei se ele sabe "onde", mas eu acredito que sim.
De volta para o minúsculo barquinho da FUNASA fico batendo papo com o Jânio (que agora está jogando dominó) e descubro o "milagre medicinal da água de bateria do motor da lancha", inclusive no tratamento de enfermidades urológicas. (Êta sujeitinho mais "gaiato").
O "piloto do barco" chama-se Lauro. Experiente funcionário da FUNASA conhece os Igarapés do Rio Amazonas como a palma da própria mão e foi apelidado como "gargalhada" pelo Jânio, por possuir uma risada exageradamente alta e que por si só faz todo mundo rir, independente do que antecedeu à mesma.
O bom humor do seu Lauro me mantém conversando com ele por tempo suficiente para ele me prometer sair mais tarde para pescar e garantir um jantar com peixe fresco.
Amanhecer embarcado, após Ter dormido numa rede é algo que não dá para explicar. Além de muito menos desconfortável do que eu imaginava, o visual e o cheiro do mato e ir dormir com o som dos anfíbios e acordar com o barulho das aves da amazônia tendo consciência de estar na floresta amazônica, trabalhando junto aos índios, convivendo com estas comunidades, é incrível demais.
Ainda é muito cedo (falta muito para o almoço) e me sinto um pouco desorientado. Na prática, se me deixarem aqui eu realmente não sei o que fazer para voltar, e quem me conhece sabe que para eu assumir isto é porque a coisa é realmente séria. Telefone? Luz? Nada disso!
A energia chega aqui na forma de GASOLINA (parece aqueles filmes do Mad Max). Para tudo é necessário um motor gerador. Fico pensando na hora de ler as lâminas no microscópio. Provavelmente o Custódio deve ter trazido um gerador portátil...duvido que ele use "espelhinho" para fazer os exames.
Sabe uma coisa engraçada? Neste momento me lembro daquelas lojas que vendem equipamentos e aparatos para acampamento (tipo as que tem no Rio Sul). Eu já acampei muito por aí...Ilha grande, Guarapari, Bonito, mas é impressionante como não há nenhum tipo de preparação nestes locais que permita uma preparação para a realidade amazônica.
Os equipamentos aqui são: bermuda, chinelo, óculos escuros e à noite: Rede, mosquiteiro, lençol e repelente. Coloque uma meia e use-a dentro de uma bota por mais do que alguns minutos e vc terá um fungo no pé maior do que o meu.
"Barracas? Acampamento longe da margem do Igarapé? TÚ É LÉSO É? Ou quer ser comido pela onça?" (resposta do pajé Daniel perante a minha pergunta sobre passar a noite lá dentro do mato....)
foto 281
Nossa Senhora da Taboca , 21 de março de 2001
Dia 3
Lençol de estrelas
Ontem à noite o pajé me ensinou a ver a constelação de Orion no céu. Desta forma já me sinto menos "desorientado" e agora faço uma idéia da direção para onde fica Manaus...fora isto...NADA!
(Escrevo estas linhas vendo o Custódio preparar o material para fazer o parasitológico das fezes dos índios. Técnica de Hoffman, filtração do sedimento e visualização direta de ovos e cistos de parasitos intestinais após fixação e coloração com azul de metileno e fuccina.
A experiência de dormir na rede na outra noite foi interessante, mas as costas reclamaram.
Após o atendimento ontem, eu, o Jânio,o "Gargalhada" e dois índios saímos para colocar a malhadeira (rede de pesca). Durante o processo vimos vários botos e alguém comentou que eles atrapalhavam muito arrebentando malhadeiras ao ficarem presos nelas ou "roubando os peixes" que por elas eram apanhados. Após algumas "histórias de pescador" envolvendo botos fêmeas e fantasias eróticas de alguns pescadores desesperados, colocamos malhadeiras perto da margem onde estávamos e dentro de um igapó lá do outro lado do Rio Urubu. Fizemos o trajeto com uma lanchinha com um motor de popa de 40hp e agora eu sei porque chamam elas de "voadeiras".
O fungo do meu pé está melhorando. Meu sistema imune está vencendo. Mas já sugeriram que eu colocasse água de bateria de motor (borbulhando de quente), urina com tabaco, cera de vela, graxa e etc. No momento eu ainda estou preferindo tomar azitromicina (antibiótico para acabar com a infecção secundária) e uma pomada contendo neomicina para tratar o fungo no local.
Voltamos a noite para olhar as malhadeiras. ...Nada! "Se dependêssemos desta malhadeira para botar comida na mesa, morreríamos de fome e levando chifre da mulher" (palavras do seu Lauro "Gargalhada").
Todos os índios homens da comunidade (fora o seu Daniel) tem a mesma profissão aqui: Pescador. Aí fica difícil, os peixinhos não tem a menor chance.
De volta para o Barco, seu Lauro comprou dois tucunarés e um surubim (o mesmo que pintado lá no Mato Grosso) para fazermos uma caldeirada. O custódio cozinhou...ficou maravilhoso!
Hoje não fiz muita coisa no sentido prático. Ainda estou meio deslumbrado, amanhã vou focalizar e ajudar o Custódio nos exames.
Chega a hora de dormir. Todo mundo pendura as redes novamente. Somos 8 dormindo em um barco que só seria espaçoso para 2 pessoas. Arrumei um colchão na comunidade (limpei e embalei com dois lençois. Já basta o meu fungo, não tô afim de arrumar uma escabiose também não) e coloquei no teto do barco. Nunca tinha visto nada igual. Um dia sem uma nuvem. Um noite completamente estrelada, nenhuma outra luz para ofuscar o brilho das estrelas. Um verdadeiro planetário natural!
Visual indescriível! Pego uma lanterna emprestada, foco as margens...nada de especial, fora o fato do foco de luz ir muito mais longe do que eu imaginava.
Seu Lauro liga o gerador do barco e a luz do mastro acende. Tomo um susto. Alguns minutos depois a luz do gerador está cercada de insetos atraídos pela luminosidade e junto com eles uma porção de morcegos, pelo menos uns 15, voando e dando rasantes tentando "jantar os insetos em pleno vôo". Fico um pouco apreensivo. Em seguida relaxo um pouco e acendo a minha lanterna para ver se atraio alguns insetos também e vejo um razante um pouco mais de perto. Sem chance! Nem os insetos estão querendo papo comigo ultimamente.
Assim sendo, arrumo o colchonete e me preparo para dormir. Desta vez sozinho, na "cobertura". Ah! Como é bom dormir na horizontal!
Nossa Senhora da Taboca , 22 de março de 2001
Dia 4
Zoológico microscópico
Fora a serração da manhã que umideceu um pouco os lençois, a noite foi maravilhosamente bem dormida. Mas o amanhecer foi espetacular. Ser acordado pelo sol que nascia por trás da floresta e iluminava o rio que de tão parado (o Rio Urubu tem as águas mais escuras e calmas) pararecia um espelho, refletindo o céu, em tonalidades azuis amarronzadas. Repentinamente aparece a mala do Jânio e quebra meu clima dizendo: Acorda Dr...vamos recolher a malhadeira antes do povo acordar".
Desta vez pegamos um Tucunaré e um Pacu...comida suficiente para todo mundo (um Tucunaré pode chegar a pesar uns 10 kilos) o nosso era pequeno, mas tinha carne suficiente para alimentar muita gente.
Jânio me ensina a tratar o peixe e ele fica prontinho para ser cozinhado.
Resolvo fazer uma lista das palavras novas que andei ouvindo:
"Tratar um peixe " - Tirar escamas, guelrras e o "bucho" antes de cozinhar.
"Bucho" - visceras do peixe (esta eu já sabia)
"Carapanã" - pernilongo (usado também no dizer: "carapanã picou vôou? ", quando alguém come e já quer se retirar)
"Caba" - marimbondo (ninho de "cabas")
"Mári-mári" - "azedinho doce natural" - fruta de cor verde na forma de pequenos "drops" dispostos um ao lado do outro dentro de uma casca parecedia com a que retém as sementes de ervilhas.
"Ingá" - fruto doce, com semente grande e carne branca, dispostas de forma parecida ao mári-mári, só que o "invólucro" parece um pedaço de pau torto.
"Cauixi" - vegetal tipo urticária que cresce nos troncos das árvores dentro dos igapós (pó que cai se a gente esbarra nas árvores para colocar ou retirar as malhadeiras)
"malhadeira" - rede de pesca (pode ter vários tamanhos tanto no comprimento quanto nos entrelaces que as compõe)
"Pitiú" - cheiro forte de peixe (não necessariamente podre!)
"Flutuante" - casa, bar ou qualquer outro tipo de moradia erquida no meio do rio ou igarapé (normalmente tem um cabo de aço que o prende ao fundo ao á margem para não ser levado pelas correntezas e marés)
O Custódio já está rotulando os copos com as fezes para o exame e eu vou ajudá-lo a identificar as principais parasitoses dos índios....hora de trabalhar!!!
Cana, 23 de março de 2001
Dia 5
(Escrevo em cima do barco, avistando a comunidade do Cana, a segunda a ser atendida nesta viagem)
Amanheci novamente em cima do barco. A única coisa que atrapalhava era o sereno que me molhava pela manhã. Usei minha rede para fazer uma cobertura, apoiada no mastro do barco, improvisando uma "barraca" (matei minha vontade de acampar na Amazônia. (O "aparato" bloqueou também os poucos mosquitos que me importunavam e funcionou perfeitamente).
Outro nascer do sol cinematográfico. Desta vez levei a máquina e bati fotografias muito bonitas (O Rômulo, ex-aluno do CSI e atualmente fazendo cinema na Hunter College de Nova Iorque e residente por lá há quase 10 anos, me ajudou a escolher a minha câmera, que por sinal é igual à dele, e tira fotografias praticamente sozinha e é muito melhor do o "fotógrafo").
Nem cheguei a por meus pés em terra, e seu Lauro já tinha ligado os motores rumo à próxima comunidade denominada Cana (ou Ponta da Onça). A comunidade ao longe é aparentemente maior, mas o barranco de chegada de tão alto mais parece um fiord, vai dar trabalho levar as coisas até lá em cima.
Ontem ajudei o Custódio nos exames parasitológicos. Muita ameba (Coli e histolítica), ovos de ascaris, cistos de giardia, e apesar de pessoas portando vários tipos diferentes de parasitos intestinais, a diversidade foi bem menor do que a que eu esperava. O boato é que parecia parasitose de "classe média" em exames de plano de saúde.
Tive que ir a Manicoré (seu Lauro me levou) para pegar um microscópio para eu utilizar com uma AIS (agente indígena de saúde) chamada Simone. Apesar da comunidade possuir até um rádio amador, ela não tinha luz para fazer as leituras, mas o microscópio dela possuia entrada para canhão de luz e nós fizemos as observações usando o gerador de energia do barco e uma extensão (não pudemos usar os microscópios dentro do barco porque trepidava muito).
O barco da SEMSA (secretaria municipal de saúde de Manaus) era melhor equipado para este tipo de coisa, quando atendíamos as comunidades ribeirinhas no final do ano passado.
De qualquer maneira, voltei de voadeira para a Taboca e fiquei feliz em finalmente poder ser útil.
Aqui devem ser umas 10 horas da manhã e eu tô morrendo de fome. "Aqui de cima" estou vendo alguém jogar cascas de mári-mári dentro dágua...vou tentar arrumar um pouco para mim.
Obs: Este barco foi feito para ser usado por Amazonenses e a estatura média deste povo é bem menor do que a minha.. NÃO AGUENTO MAIS BATER COM A MINHA CABEÇA! E nem tenho namorada para bater "tanto assim com os chifres".
Por falar nisto, aconteceu uma coisa interessante. Estava eu sentado sozinho, na proa do navio, quando uma senhora já bem idosa veio falar comigo. Ela subiu a estreita escada (achei até que ela fosse desequilibrar-se e cair dentro dágua) sentou-se perto de mim e perguntou se eu era médico.
Respondi que não. Que acompanhava a equipe e que poderia tentar ajudá-la se ela me informasse qual era o problema. Ela disse que não tinha problema nenhum e que estava interessada em saber o que eu fazia então. Tentei explicar o que era pós-graduação, minha tese, biologia molecular, tudo de uma maneira bem simplificada. Acho que ela não entendeu nada. De qualquer maneira, em seguida ela me agradeceu e se retirou.
Continuei descascando uma cana de açucar que a Rose tinha arrumado e percebo que após uns 15 minutos, a anciã retorna em minha direção, entra novamente no barco e me pergunta: "Doutor, o senhor é casado?", respondo: "Não. Porque a pergunta?", e ela me responde com outra: "Mas tem noiva?, ou alguém esperando pelo senhor?", novamente respondo que não, e insisto para que ela me explique a razão daquelas perguntas (receioso de estar levando uma cantada), um tanto o quanto pessoais para serem feitas a um total estranho (seja ele índio ou branco) e a senhora me esclarece:
" Sabe doutor, é que a minha neta, ela é muito bonita e obediente e está na idade de casar. Ela pediu para eu vir aqui perguntar se o senhor era compromissado, e se sabe fazer farinha de tapioca, canoa e casa, porque ela gostaria de se casar com o senhor..."
Fiquei meio espantado e sinceramente tive que conter o riso porque ela falou com um tom sério e poderia parecer desrespeito da minha parte...ai respondi: "Olha, infelizmente eu vim aqui à trabalho e não poderia abrir mão das coisas que estou fazendo para ficar mais do que umas semanas aqui com vocês, então fica meio difícil ter compromisso sério (mas não resisti à curiosidade) e perguntei: "Quantos anos tem sua neta?" Ela respondeu: "Ela faz 12 no fim do mês ".
Moral da história, agente estuda, tenta fazer uma pós-graduação que seja representativa e não consegue arrumar de casar nem com uma criança por não ter "habilidade específica" para tal.
É....o mundo vai ser dos especialistas.....vou aprender a fazer farinha!
Cana, 24 de março de 2001
Dia 6
Chuva na "Ponta da Onça"
(escrevo dentro da rede do lado do gerador de energia "barulhento")
Ontem à tarde, depois que fomos botar a malhadeira para pegar uns tambaquis, começou a chover enquanto ainda estávamos no rio. A chuva era forte e os pingos doiam no rosto da gente porque a voadeira ia rápido. Pensei em comprar uma cachaça com o seu Lauro num bar flutuante, mas desisti...Aquele tempo cinza...água caindo forte em cima daquela água escura, limpa meio, parada e cercando a gente por todos os lados. Dava a impressão que os pingos estavam sendo expulsos do espelho dágua...outra cena inspiradora!
Cheguei ao barco da FUNASA. A chuva "afinou" mas eu resolvi montar meu "acampamento" junto aos outros hoje. A noite veio e estava até bem estrelada, um pouco mais "carapanãs" do que de costume.
De madrugada, São Pedro abre novamente as torneiras e ao ser acordado pelo barulho da chuva, dou graças a Deus por não estar dormindo no teto.
O Fungo no meu pé já está quase bom. Tratei dele direitinho.
A chuva não parou ainda, são 11:30 da manhã e ela ainda está comprometendo o atendimento pois as pessoas que moram nas cabiceiras dos igarapés não saem de casa para serem atendidas no polo base da comunidade, é compreensível, mas a coisa fica complicada, este povo não verá dentista ou profissionais da área de saúde em alguns meses e tem que aproveitar a oportunidade.
Amanhã vou embora de volta para Manaus (a equipe fica até o final do mês) e em breve estou indo para a fronteira.
Esta primeira experiência em área indígena está sendo extremamente enriquecedora. Porém, parado aqui dentro, com a chuva caindo lá fora, os pensamentos voam longe.
Sinto saudades da minha banda, dos ensaios, da minha guitarra. Num dia "morto" como este levar um som é tudo.
Sinto falta da minha ex-namorada também, chuva, vídeo, pipoca. Mas não posso me iludir.
Já abri mão de muita coisa para ficar me torturando, é verdade, estou passando um certo perrengue, tomando banho de rio com lata de suvunil se não quiser cair dentro dágua, ouvindo diariamente histórias de "visagens" e onças. O meu coração batendo junto com o da floresta, convivendo com os seus "donos de direito". Tenho muito para ver, para escrever então é demais, nem 10% do experimentado pode ser transformado em palavras. A mudança é interna e sensível...Mas o barulho deste motor de luz ao meu lado me "leva de volta" à Copacabana.
A chuva parou no inicio da tarde. Mas o povo não veio. Resolvemos pegar a voadeira e ir atrás dos indígenas, casa por casa, pelo menos para fazer a vacinação.
Isto levou a tarde inteira e o início da noite, estou um caco. As casas são muito simples, mas a maioria dos moradores é feliz, dá para ver no olhar de cada um deles. Não tem luxo nenhum, mas tem água, comida e o suficiente para a subsistênia. Em cada local agente encontra uma história mais interessante do que a outra. Descobri que o Cana é conhecido como "Ponta da Onça" pela intensa aparição destes animais por aqui (ainda bem que só acampo em cima do barco).
Pessoas alegres, outras desconfiadas (quiseram me vender uma ave chamada "Jacamim" (parente do mutum, uma ave grande terrestre parecida com um pavão mas com menos viadagem).
Vários "causos", mas passar a tarde ajudando no trabalho em equipe da COIAB foi muito legal...Só não gostei foi de ver pessoas tomando 3, as vezes 4 tipos diferentes de vacinas de uma vez só...entendo as razões e sei que a prática é um pouco diferente da teoria (por isto estou aqui) mas ainda retomarei o assunto, nem que seja com meus professores na UFRJ, gostaria de entender se realmente dá no mesmo. Sabemos que às vezes, vacinas podem causar pequenos efeitos colaterais e que não tem contra-indicação se tomadas separadamente.
Mas e se um índio deste tem uma reação adversa braba qualquer depois de tomar vacinas, para BCG, hepatite B, dupla-viral e febre amarela ao mesmo tempo. Como ele seria tratado? Como identificar a causa do mal estar? Sei não....
Nossa Senhora Aparecida do "Correntesa", 25 de março de 2001
Dia 7
"Voando" de volta para Itacoatiara
Neste último dia em área indígena (pelo menos para mim), fomos para a comunidade do "Correntesa", que se resume à casa do seu Apolônio.
Dizem que há maior fartura de peixes por aqui. Assim sendo, eu o seu Lauro e o Jânio (Rufião) que só nos direcionamos uns aos outros por apelidos, vamos mais uma vez colocar a malhadeira e garantir uma refeição fresquinha.
Não vou saber o resultado desta pescaria. Pois às 18:00 horas pego a voadeira junto com as enfermeiras que partem para fazer o vestibular da recém criada UEA (Universidade Estadual do Amazonas) para fazer vestibular para medicina.
Fico um pouco depressivo, não há o que fazer hoje, sinto uma mistura de tédio, frustração. Podia Ter feito mais coisas, vistos mais coisas. Mas em seguida me acalmo e me tranquiliso. Esta certamente não foi a última vez.
Me preocupo também um pouco com a minha situação no Hospital tropical. Saí meio fugido. Será que a minha batata assou?
Na hora marcada entramos na voadeira rumo à Itacoatiara. Que volta em grande estilo! É comparável a viajar de moto, pois há um contato muito mais íntimo com a Naureza, mistura de medo com plenitude. Muitos pássaros (araras em pleno vôo, garças morenas, "ciganas"), insetos, árvores...me sinto no globo repórter...mas no fundo eu sei que nem eles viram tanto assim.
Tendo me lembrar das coisas que mais me marcaram e não consigo dar preferência a nunhuma. A cabeça gira rápido. Tento lembrar se tive medo de algo e isolo dois eventos. O primeiro era tomar banho no rio à noite (ficava no barco "pescando água" com a latinha de suvinil, mas não tinha coragem de cair dentro dágua) e a segunda foi também quando ia me banhar (desta vez no final da tarde) e vi uma cobra muito grande (quem me conhece sabe que adoro répteis e inclusive já criei lagartos e afins dentro de casa lá no Rio) e aí me toquei que aquela grande "piscina" aonde eu vinha tomando banho há quase uma semana era VIVA.
O sol começa a se por e ainda estamos na voadeira, a viagem de volta é bem mais curta que a de ida quando demoramos o dia inteiro, mas passar 2 horas indo "varado" dentro daquela voadeira que pula o tempo inteiro, ainda mais se tratando do Rio Amazonas e suas bravias, foi no mínimo um baita exercício de abdominal. Seu Ralili (índio que nos levou de volta) de repente para ao passarmos por um igarapé, ele quer passar do "Aró-Ató" ainda de dia, ou senão a viagem passa de tranquila a muito arriscada instantanemente. A parada é para reabastecer o tanque de gasolina da voadeira e tirar alguns vegetais que se enrolaram na hélice da mesma.
Reparo em um pé de mári-mári do mato, ou seja, plantado por ninguém e provavelmente jamais degustado por nenhum ser humano. Nunca tinha pensado nisto, mas começo a me perguntar como o ser humano é forte em desviar a natureza em nosso favor, mas se ag ente derepente evaporasse pouquíssima coisa em termos de biosfera iria mudar (era capaz até de dar uma pequena melhorada).
Enfim coloco os pés em terra firme. Esta aventura acabou, as meninas já começam a combinar de ir num forró num clube chamado "Amazonight" em Itacoatiara.
A primeira coisa que faço ao pisar em terra firme é ligar para casa, meu pai atende: "Sua mãe já estava preocupada" (sei...como se ele não estivesse) digo que estou vivo e pronto para a próxima, ainda falta muito para voltar para casa...
Ps: Curei a micose mas fui picado ou "mijado" (segundo me falaram) por um inseto chamado "Potó", ao qual não fui apresentado pois estava dormindo quando se deu o ocorrido. Pelo visto o danado secreta uma substância que queima e irrita a pele, e como foi perto do olho, parece que estou com conjuntivite.
Entre mortos e feridos salvaram-se todos.
Ps2: Acabei de digitar minhas anotações e adianto que "a minha batata não assou!"
SELVA!
Na Virilha do Brasil
14/06/2001
Consegui até agora evitar ser devorado pelas feras e me encontro na fronteira do Brasil com a Colômbia, morando dentro da base da FUNASA (Fundação Nacional de Saúde) que provavelmente será minha casa nos próximos meses.
O andamento da tese está bom e espero mandar em breve fotos ainda mais interessantes pois agora vou conhecer a Amazônia Tripartita (Peru-Colômbia e Brasil) e certamente terei muitas outras lorotas para contar...
Aqui na FUNASA tem telefone (02192 412-2929) e, por conseqüência, eu, como bom nômade que sou, tenho acesso à internet.
Só peço para maneirarem no tamanho das mensagens enviadas a mim pois não tenho acesso direto a este telefone (ainda) e por causa disto pode ser que o congestionamento de mensagens trave minha caixa postal. Da mesma forma, me esforçarei para respondê-los o mais rápido possível.
Faço um curso intensivo de castelhano, usado e improvisado até para ir ao banheiro, mas apesar da familiaridade entre ambas as línguas, este lado do mundo é muito sinistro.
Quem já foi em Ponta Porã, em Mato Grosso do Sul, tem noção do que falo quando digo que Tabatinga parece a Bela Vista paraguaia (só que asfaltada e maior em tamanho, mas não em desenvolvimento) enquanto que Letícia é 10 vezes melhor que Pero Juan Caballero.
A malária urbana está pouca e vou ter que sair de barco em missões do Exército e da FUNASA para obter as amostras de sangue infectado que preciso. De qualquer forma estou tendo o apoio das Secretarias de Saúde dos municípios dos dois países, e, se tudo der certo, lá para setembro estou de volta... a Manaus!
Bom, inicia-se a última etapa dos trabalhos na Amazônia e sem dúvida alguma mais divertida de todas. Espero receber notícias de todos e um beijo ou um abraço muito especial para você.
Saudaciones Amazónicas,
foto 313
26/06/2001
Hoje fui colher sangue de um paciente de malária num igarapé perto de Tabatinga, dentro da reserva indígena dos Ticunas.
Foi o maior sacrifício para chegar lá de moto, atravessar um igarapé e chegar na casa do sujeito...
Vou ter que fazer isto mais 119 vezes antes de voltar para casa (isto, se tiver um por dia!).
28/06/2001
ACISO - Ação Cível e Social
É o nome dado às missões do Exército para atendimento à população ribeirinha carente, diferente das outras que estou acostumado a fazer.
Finalmente vi como fazem para pescar jacarés (um, quase levou o meu pé!), pirarucu e até mesmo (para quem gosta de bigodes) peixes muito esquisitos.
As fotos falam por si próprias!!!
Saudações da fronteira.
foto 318
Manaus, 10 de Abril de 2001
A saudade tá apertando.
Já faz muito tempo desde a última vez que escrevi. Continuo aqui no hospital em Manaus e já não vejo novidade em quase nada.
Recebi meus certificados para poder ir trabalhar no interior, mas o número de casos de malária na região do Alto Solimões no Estado do Amazonas está realmente muito mais baixo do que esperado.
A minha ida para Tabatinga (fronteira com a Colômbia) tá sendo repetidamente adiada e diversos são os motivos e especulações para isto ocorrer.
Certamente estes motivos enriquecerão em muito a minha tese posteriormente, mas por causa disso ainda não estou autorizado a fazer o que me propus quando cheguei aqui no começo de fevereiro.
Me deram uma sala, e a responsabilidade de tocar o setor de cultivo de plasmodium falciparum “in vitro”. Eu até gosto. Mas gostaria mesmo é de fazer isto no Rio de Janeiro.
Estou namorando uma médica residente aqui do hospital e os programas ecológicos já parecem coisa de “turista”. Saio à noite para ir a restaurantes ou ao cinema.
Estou me acostumando, ou então é saudade de casa mesmo. Acho que vou dar um jeito de passar uma semana ou duas no Rio de Janeiro.
Tenho mesmo alguns compromissos pendentes com a secretaria de Pós-Graduação do Instituto de Biofísica da UFRJ e isto é a desculpa perfeita para passar uns dias em casa e dar uma recarregada nas baterias.
Manaus, 17 de abril de 2001
E a Floresta chama novamente
Foi só eu reclamar de tédio e saudade que a sorte voltou. Há uma semana o Dr. Jorge Guerra, médico responsável pelas viagens de atendimento da SEMSA pelo Rio Negro me chamou para ficar 3 dias assistindo comunidades ribeirinhas. Eu ficaria encarregado de ajudar na realização de todos os procedimentos laboratoriais do barco (não só o exame de malária).
Na prática isto seria legal, pois dividiria a responsabilidade com a Andréia (farmacêutica da SEMSA) e poderia me dedicar aos procedimentos em que me garanto e acompanharia ela fazer os demais.
Topei. Foram 3 dias de muito trabalho. Trabalho até tarde e mergulho no Rio Negro só para higiene pessoal mesmo. Era realmente muito mais legal ir como curioso e ficar tirando fotos, e eu até comentei com uma das enfermeiras que da próxima vez iria cobrar.....mas era só brincadeira. Eles já me conhecem e sabem que eu faço estas coisas por OUTROS motivos.
Confirmei o diagnóstico de 2 casos de malária vivax, fiz muitos exames parasitológicos, mas interessante mesmo foi fazer o coagulograma de um ribeirinho que tinha acabado de ser picado por uma cobra venenosa. O sangue dele passou mais de 20 minutos dentro do tubo e não coagulou. A sorte é que ele tinha sido picado no pé e que tinha uma voadeira pronta para levar ele até Manaus, senão...um abraço!
Manaus, 22 de Abril de 2001
Onde Judas perdeu o Band-Aid
Neste momento estou dentro de um avião da RICO Airlines, um “Brasília” onde só cabem 15 pessoas. Estamos indo para Tefé, cidade que fica bem no meio do Estado do Amazonas, às margens do Solimões. Eu também não tive tempo de metabolizar os acontecimentos que se sucederam (sucessivamente sem cessar) para que eu chegasse até aqui. Mas vou tentar explicar.
Chegou no hospital a notícia de um surto de varicela numa tribo indígena que fica nos confins da Amazônia, nas redondezas de uma localidade chamada Eirunepé, perto da fronteira com o Peru.
A Fabiana foi a médica escolhida para ir nesta missão aérea. Quando fiquei sabendo disto, dei meu jeito, mexi todos os pauzinhos que pude, peguei o mesmo avião e vim junto.
A enfermeira Margarida, representante da FUNASA e responsável pela missão já tinha dito que a minha ida junto com a equipe não era garantida porque não haviam vagas no hidroavião que sai amanhã de Tefé, com destino à aldeia.
Eu resolvi arriscar (pra variar!) e perguntei para uma conhecida lá na FUNASA se era realmente impossível me juntar ao grupo. Ela falou que “impossível não era”. Então vim!
Contudo, apesar de estar “bem indicado”, minha presença tira um pouco da autoridade da enfermeira e eu estou sentindo que pela primeira vez a velha “boa vontade” não está sendo bem aceita.
A Fabiana chegou a inventar um papo de que além de trabalhar com malária eu era noivo dela, que a gente estava meses sem ser ver e tal. Isto tá bem diferente das outras viagens (E é disto mesmo que eu estou precisando!).
Saí meio fugido novamente, mas hoje é Sexta e voltaremos na Segunda, e com a malária em baixa eu ganhei um pouco de liberdade para andar por aí.
Depois de 3 horas de vôo, chegamos em Tefé. Cidade pequena apesar de estratégica. É o Porto Seguro para reabastecimento de barcos que fazem a travessia do Rio Solimões transportando quase tudo aqui no interior da Amazônia (principalmente gasolina, comida e gente).
Me impressiona a quantidade de urubus andando pelos telhados e ruas. Tem tanto urubu que eu resolvi tirar fotos deles. E de tão acostumados com aquele número imenso de motocicletas e pessoas passando por ruas estreitas, nem voam mais e parecem galinhas pretas. Ficam andando ao nosso lado, as vezes sozinhos, outras vezes agrupados. Até esperam para atravessar a rua junto com a gente. É meio asqueroso.
Eu é que não vou comer “peito de frango” nesta cidade!
Minha “noiva” e eu estamos dando uma volta a pé quando vemos o hidroavião cruzar o céu. Muito bonito. Com aquelas duas grandes pranchas parece carregar dois mísseis. Nos dá uma sensação boa pois nós sabemos que ele está ali por nossa causa. Tomara que haja vaga para mim.
É hora do jantar. A equipe (e o penetra que vos fala) está em frente ao Hotel Paraíso, escutando o piloto do hidroavião, debruçado em cima de mapas e com um compasso na mão explicar o porque da impossibilidade de levar-nos até o nosso destino.
A aldeia dos “Kanamaris” fica longe do braço de um Igarapé (afluente do Rio Juruá) que serviria de “pista de pouso”. Contudo, “é uma curva e muito estreita, por consequência um pouso muito arriscado”, diz ele.
E mesmo que fosse possível pousar, uma vez no solo, a distância da margem do rio até a aldeia é equivalente a 12 horas andando em mata fechada carregando caixas e equipamentos. Completamente inviável.
Fabiana dá um sorriso e depois eu entendo o porque. Como não tem hidroavião não tem como NÃO TER VAGA para mim. A responsável da FUNASA (representante do Distrito Sanitário Especial Indígena do Médio Solimões) vem com a solução e a minha empolgação fica difícil de ser escondida.
“Então tá bom...diz a Rosana, o negócio vai ser o seguinte: Nós vamos alugar um bimotor para levar vocês amanhã até Eirunepé. De lá, só dá para chegar na aldeia de helicóptero. Vou ligar para a base da Aeronáutica lá em Manaus e solicitar um 1H-UH. O problema é que vocês vão ter que esperar até a Segunda-feira para ele chegar. E a missão vai se extender mais dias do que o planejado”.
Por mim tava tudo bem, a Fabiana também gostou pois gostava de andar de helicóptero (estava recebendo diárias e já tinha experiência com yanomames lá em Roraima). Com um telefonema, ambos demos satisfações para respectivos chefes e orientadora.
Esta viajem vai ficando mais interessante a cada instante.
Assim sendo, fomos dormir e a minha ida até Eirunepé estava garantida.
Tefé, 23 de abril de 2001
Partindo para a beirada da Amazônia
A enfermeira Margarida, apesar de visivelmente contrariada começa a tentar fazer amizade com os integrantes da missão que são: a Fabiana (médica), ela própria (enfermeira), o Cléber (recém formado em enfermagem e tão antipático quanto a Margarida) a Ritinha (auxiliar de enfermagem) e eu.
Vamos ao aeroporto. Andamos pela pista até um avião que, sem brincadeira, era um pouco maior que uma caminhonete D-20. Avistamos o hidroavião parado bem ao lado. Tiro uma foto e penso com meus botões (“Ainda vou viajar num troço destes”).
Depois de nós mesmos embarcarmos as caixas com vacinas e outros equipamentos, entramos no avião e levantamos vôo. O avião voa baixo e a viagem até Eirunepé demora mais umas duas horas e meia.
Voando baixo dá para acompanhar o zigue-zague de diversos rios e é interessante perceber que uma distância em linha reta de uns 10 km às vezes pode implicar em mais de 1 dia de viagem se o meio de transporte for fluvial. De dentro do barco é difícil perceber isto pois apesar de sinuosos, os rios também são, em sua maioria muito volumosos (com margens muito distantes) e dá a impressão de se andar sempre em linha reta.
Chegamos em Eirunepé. A cidade fica literalmente do outro lado da Amazônia brasileira (mais de 1000km de distância a oeste de Manaus).
Demoro a acreditar que tem dois dias que eu viajo de avião (apesar de pequenos e mais lentos) e ainda estou dentro do mesmo Estado. O aeroporto fica numa pista muito esburacada e percebo isto “de dentro” do avião. Avisto a Toyota da FUNASA, provavelmente esperando pela gente.
Chegamos e somos recebidos na pista pela responsável que agora é outra enfermeira chamada Izabel, chefe da Uni-Tefé, ONG que toma conta das áreas indígenas de Eirunepé.
Descarregamos o avião. O piloto está impaciente para voltar e o faz antes de fumar inteiramente o cigarro que acendeu logo depois do pouso.
Nunca vi coisa igual. Chegou, pousou e voltou. Pelo visto tinha autonomia de combustível, pois nem reabasteceu.
Para tentar esclarecer um pouco, a FUNASA (Fundação Nacional de Saúde, órgão Federal) faz parceria com ONG’s em toda a Amazônia no que diz respeito à saúde indígena.
Repassa verbas, dá assistência e supervisiona. Mas quem realiza o trabalho propriamente dito são as ONG’s, que em função do apoio que tem, contratam e pagam (muito bem diga-se de passagem) seus próprios funcionários.
Assim, apesar de ser a responsável geral pela missão, a Margarida vai tendo que se submeter à infraestrutura e autoridade das enfermeiras-chefe das ONG’s. Ela nitidamente não gosta disso.
Eirunepé, 24 de Abril de 2001
A cidade do Amazonino Mendes
Eirunepé, onde nasceu o Governador do Estado do Amazonas, se resume a um vilarejo, com uma rua principal onde se encontra o Hotel Aquarius e diversas lojas. (“Temos que comprar mosquiteiros para redes”, lembro eu já pensando no pernoite na aldeia).
Já percebi que a maioria das cidades (inclusive aldeias e comunidades) na Amazônia, incluindo a capital Manaus, localizam-se na beira dos Rios (No centro-oeste e sudeste, o mesmo ocorre no que diz respeito às estradas) e tem muito espaço para crescerem horizontalmente. Eirunepé não é diferente. Mas o lugar ainda está muito atrasado.
O helicóptero da Aeronáutica confirma a vinda para a Terça. A enfermeira Izabel calcula que devemos chegar na aldeia na Quarta (ficar lá até Sexta). Assim sendo só voltaremos a Manaus no Sábado.
Isto não é normal nas missões da FUNASA e começo a achar que este tipo de coisa (desde a questão do hidroavião até o tempo de execução da missão) demonstra uma grande desorganização que vai custar muito dinheiro. Mas pelo menos permite que eu esteja junto.
Assim, ficarei em “Lua-de-mel” por quase uma semana em Eirunepé (que fica às margens do Rio Eiru e significa “ovos de barata” em algum dialeto indígena).
Eirunepé, 25 de Abril de 2001
Em cima de ovos de barata
Os dias vão passando. O contato com os outros membros da equipe continua no superficial (o que também não é normal nestas missões). Não há nada para se fazer na cidade. Me interesso em passar os dias na matriz da UNI-tefé, pois a ONG presta atendimento a diversas tribos, muitas delas com quase nenhum contato com civilização.
Ouço histórias sobre os Tucanos. Tribo nômade e violenta que ao entrar em aldeias leva o que quiser e mata quem estiver na frente à marretadas.
A população indígena de aldeias inteiras vai parar em Eirunepé, algumas depois de mais de 10 dias andando na selva, para pedir ajuda e curar feridas quando estes índios aparecem em suas comunidades.
Os indígenas me fazem parecer vindo de outro país. São de estatura bem mais baixa (1,60m o mais alto) e descubro duas peculiaridades interessantes:
A primeira é a fraqueza que eles tem à bebidas alcóolicas e a segunda é que quando andando em grupo, mesmo quando estão na cidade, formam pequenas filas com os homens na frente e as mulheres atrás, como se estivessem andando em trilhas nas florestas.
Dizem que a nossa ida para a comunidade dos Kanamaris é arriscada. Izabel teme que os Tucanos apareçam. Ela nos conta que algumas vezes já chegou em aldeias vazias e só saiu do helicóptero guarnecida pelos militares.
Amanhã chega o helicóptero, mas é importante registrar como Eirunepé é um lugar escondido e desfavorecido estrategicamente. Seu povo sobrevive em condições bastante precárias.
A Fabiana finge que estamos em lua de mel, e até agora é o que está parecendo mesmo. Pois trabalhar mesmo, só depois que o helicóptero chegar.
26 de abril de 2001
Desta vez não funcionou.
Escrevo estas linhas depois do jantar e um pouco decepcionado. Os pilotos e mecânicos da aeronáutica já chegaram e acabo de ser informado que o meu nome não está na lista de vôo para a aldeia amanhã.
A Fabiana está muito aborrecida e acha que foi coisa da Margarida. O equipamento vai fazer 2 viagens até a aldeia e ficou claro que eu fiquei de fora não por falta de espaço, mas sim simplesmente por uma questão de “vamos ver quem manda aqui”. Tudo bem, haverá outras oportunidades.
27 de abril de 2001
Pelo menos um gostinho
A missão já partiu. O 1H-UH é exatamente igual áqueles helicópteros dos filmes do “RAMBO”. Meio quadrado e com várias metralhadoras. A tripulação é composta de um piloto, um co-piloto e dois mecânicos. O pessoal saiu cedo e eu começo a arrumar minhas coisas para voltar para Manaus ainda hoje.
Contudo, sem a Margarida por perto as coisas ficam mais fáceis. Começo a conversar com um funcionário da Uni-Tefé que acaba pedindo a minha ajuda para levar as caixas ao aeroporto para carregar o helicóptero para a Segunda ida até a aldeia. É interessante relatar que o helicóptero não fica na aldeia. Marca um dia e volta para buscar as pessoas.
Vamos de Toyota até o aeroporto. O helicóptero demora uns 20 minutos e aparece no horizonte. Pousa tão suavemente que nem parece pesar umas 2 ou 3 toneladas. Por mais “explicável” que seja, é sempre um espetáculo ver de perto este tipo de coisa.
Ajudo o pessoal a carregar as coisas, o grupo de pessoas que ingressará agora é composto totalmente de mulheres e o Pita (o sujeito que me chamou para ajudar e me confidenciou no caminho que morre de medo de helicóptero).
O piloto comenta que eles não chegaram nem a encostar o equipamento no solo. Ao chegarem ao local de pouso, o único terreno descampado perto da Aldeia perceberam que o solo era meio pantanoso (tipo charco, muito comum na Amazônia) enlameado e seria perigoso pousar totalmente com risco da aeronave afundar. Conta também que tiveram complicações para descarregar as coisas e as pessoas. Um dos mecânicos teve que descer na frente e eles precisariam de mais ajuda para retirar as mulheres e o resto dos equipamentos nesta Segunda vez.
O Pita falou que não ia de jeito nenhum. Me prontifiquei a ajudar. Eles disseram que era um vôo de 40 minutos, e que eu não poderia sair do helicóptero pois segundo a Margarida eu não tinha autorização para “pisar” em solo indígena (até parece que ia ser a primeira vez). Obviamente aceitei e fui com eles.
Quem já andou de helicóptero, sabe que a primeira vez que se entra num troço daqueles é como entrar num brinquedo de parque de diversões do interior. Tipo aqueles que tem em cabo frio, onde qualquer brinquedo é divertido por ser enferrujado e Ter um nível muito baixo de segurança. Senti a mesma coisa só que desta vez a “brincadeira demorou muito para acabar”. Foi espetacular. O vôo foi realmente muito baixo e dava até para diferenciar as copas das árvores. Um verdadeiro tapete verde por todas as direções até o horizonte.
De cima, ainda deu para avistar a aldeia e eu perguntei porque eles não pousavam no descampado que fica bem no centro, entre as malocas. O Rui (mecânico) me disse que é nestes locais que os índios realizam suas cerimônias sagradas e que além de ser desrespeito pode ser que o vento forte gerado pelas hélices ao levantar muita poeira, causando estragos nas malocas e deixando uma má impressão nos indígenas. E deixar um grupo de pessoas pernoitar numa aldeia onde os índios estão de “má vontade” pode implicar num longo período de fome, dormir na mata ou outros tipos de punição.
Finalmente, nos aproximamos do chão.
Um dos mecânicos abre a porta lateral e salta.
Estamos a pouco mais de 1 metro do solo. Me levanto, fico apoiado no canto da porta. Em seguida me sento no chão com as pernas para fora e apoiado com os pés em um dos suportes laterais do helicóptero, e ajudo as moças a sairem. Estamos flutuando e balançando muito. Apesar do pouco vento percebo que o piloto não tem uma tarefa fácil pois o equipamento treme muito e o solo realmente não dá impressão de ser muito firme. Me sinto num filme de guerra no Vietnão, as pessoas vão pulando e entrando até a canela na lama. Uma auxiliar de enfermagem não consegue ficar em pé após o pulo e caí apoiando as mão e os joelhos. Fica toda suja mas não se machuca. Começo a passar as caixas com equipamentos para o mecânico que vai repassando para as pessoas que acabaram de pousar. Elas se encaminham até perto das árvores. Lá avisto a Fabiana (meio surpresa, ela me confessaria depois, pois achou que eu tinha dado um jeito de me juntar à equipe) acenando para mim. A Lua-de-mel acabou.
Na volta para Eirunepé estou sozinho na parte de carga do helicóptero. Não ouço nada além dos milhares de barulhos diferentes que a engenhoca faz e meus próprios pensamentos ficam abafados. À tarde vou pegar o avião da RICO para Manaus (com escala em Tefé).
Tabatinga 5 de julho de 2001
Finalmente a Tripartita
Pois é. Desta vez assumo que exagerei. Nestes últimos meses quase não tive tempo de “sentar para escrever”. Continuo enviando fotos (que valem mais do que 1000 palavras!) e tenho certeza que muita gente continua acompanhando esta minha trajetória “selvagem”.
Principalmente a galera da Tatuzada, que consegue fazer a proeza de continuar unida até hoje. Inclusive, aproveito a oportunidade para informar que quem tiver o interesse de entrar na nossa movimentada lista de e-mails tem que mandar uma mensagem pedindo autorização para o Edison, que é o gerente da lista.
Mas vou logo avisando que segundo ele próprio, “é moderador com poder de veto” (entrem em contato comigo no homodio@uol.com.br que eu encaminho).
Mas enfim, como estava a dizer, nos últimos meses fiz algumas outras viagens interessantes, (captura de anofelinos transmissores de malária com um grupo de entomologistas de Manaus, Ação Cível e Social do Exército, passei 10 dias no Rio de Janeiro) mas não haveria como descrevê-las como gostaria. Desde que cheguei na Amazônia pela primeira vez há quase 1 ano, cada dia que passa tem sido diferente do anterior. E 365 vezes 24 é muito mais tempo do que se imagina quando se está realmente “livre”.
As interpretações do que vivencio vão sedimentando e assumo com um pouco de tristeza que já incorporei muita coisa da Amazônia ao meu ser, e por causa disto não consigo mais me deslumbrar com facilidade. Melhor para o trabalho que fica mais objetivo.
A verdade mesmo é que ultimamente não tenho conseguido fazer com que os novos tipos de deslumbre passem pela ponta dos meus dedos e fiquem gravados na tela do computador. O meu dom é outro.
Mas estou finalmente em Tabatinga. Região do Alto Solimões e fronteira com a Colômbia e o Peru (chamada por causa disto de fronteira “Tripartita”). Já consegui algumas amostras para esta Segunda fase do trabalho de campo do doutorado, mas não o suficiente para que possa ficar tranquilo.
A incidência de malária aqui este ano está realmente e atipicamente baixa. Para se ter uma idéia de onde estou agora, imagine a América do Sul sem as fronteiras. Sabe aquela parte verde que fica ao Norte, um pouquinho para Noroeste? Pois é, neste momento eu estou bem ali no meio. Era de se esperar que estivesse sendo devorado por mosquitos e que a malária estivesse comendo solta.
Mas para sorte dos habitantes locais (e minha por um lado), não é o que está acontecendo, pelo menos não nas áreas urbanas que me propuz a estudar. O que implica que em breve terei que “ir atrás” da malária por aqui.
Por causa disto, minha estadia aqui na fronteira vai ser determinada por: Coletar o sangue de pacientes de malária de um Pelotão de Selva (posto avançado do 8o BIS em Ipiranga), passar um tempo no vale do Rio Javari (município de Atalaia do Norte) e buscar amostras em Iquitos, no Peru.
Após isto pretendo voltar ao Brasil (não sem antes passar por Machu Picchu por questões “espirituais”) e fazer o resto do trabalho de volta em Manaus e no Rio de Janeiro, onde inclusive ainda estou devendo créditos na pós-graduação.
A chegada e aclimatação aqui em Tabatinga não foi fácil. Já estou aqui há duas semanas e já vi muita coisa, que inclusive ainda tenho que pensar na melhor maneira de relatar. Mas os motivos eu conto em seguida.
Vai começar a parte realmente divertida desta história e faço questão de dividir as experiências com vocês. A parte de Manaus já foi parcialmente publicada no “The Journal of Infectious Diseases” na edição de abril de 2001 na forma de “Letter”. Quem estiver interessado na contribuição científica do meu trabalho, pode dar uma olhada.
Saudações amazônicas e fronteiriças.
Pedro Paulo Ribeiro Vieira (“microbiologista em ação”)
Selva, guerreiro!
click no título e veja o artigo
foto 324
Redescobrindo os perrengues
19 Jul 2001
Senhoras e senhores,
Uma imagem vale mais do que mil palavras, então em anexo envio três fotos que tirei na minha estadia no 2.º Pelotão Especial de Fronteira de Ipiranga, unidade avançada do 8.º Batalhão de Infantaria do Selva do Exército Brasileiro (missão de reconhecimento da Polícia Federal).
Não dá para me isolar mais do que isto. A companhia pode até mudar de militares para indígenas mas a região amazônica não vai além disto. Nestas fotos fica evidenciada a curva do Rio Içá (Putumayo quando ultrapassada a fronteira com a Colômbia). Para se ter uma idéia a fronteira fica a 500 m a sudoeste do Pelotão e em duas fotos mais "altas" aparecem territórios brasileiros e colômbianos
Dá para se ter uma idéia de como este negócio de fronteira é a maior viagem por aqui.
A malária aqui estava com uma incidência de 1 caso por dia. As coletas foram legais. E o processo de obtenção de amostragem para a tese "engrenou".
Saudações amazônicas!
foto 329
Diminutas Criaturas
Ladies and Gentlemen,
Em anexo envio as "provas" de que nenhum inseto aqui na amazônia é grande o suficiente que não possa se tornar uma aberração...(ou refeição... ECA!!!)
Saudações amazônicas,
Pedro Paulo
foto 330
DE COSTAS PARA A JANELA
Pelotão de Fronteira em Ipiranga (PEF)
Terça-feira, 10 de julho de 2001
Ipiranga - 2o. PEF do exército Brasileiro na Amazônia
Fronteira com a Colômbia (pertinho de Tarapacá e da FARC)
Hoje saí de Tabatinga como “peixe” do coronel do 8.o Batalhão de Infantaria de Selva num Búfalo (avião de carga das forças armadas). Mais uma vez lá estava eu andando junto com uma porção de caixas contendo mantimentos e outras coisas. Mas desta vez não estava sozinho.
Eu, uma dezena de oficiais e duas dezenas de soldados (armados com os seus fuzis Para-FAO) estávamos todos de costas para a janela, sentados numas redinhas que fazem as vezes de bancos, um ao lado do outro e de frente para uma pilha de containers.
O vôo até Ipiranga foi curto (25 minutos) e bastante tranqüilo. Apesar de voar baixo, o “Búfalo” é muito pesado e dificilmente balança ao passar por turbulências.
Ipiranga fica ao norte de Tabatinga e é um vilarejo autônomo, tocado e mantido pelo Exército com o objetivo de colonizar a Amazônia Brasileira e defender seus limites.
O pelotão fica a 200 km ao Norte de Tabatinga, ao longo da fronteira do Brasil com a Colômbia, nas margens do Rio Içá.
Vou ficar 2 semanas aqui. Totalmente isolado de tudo. Do ambiente emana uma seriedade indescritível. Desta vez estou a morar dentro de um quartel.
O comandante do Pelotão me recebeu super bem. Apresentou-me aos outros como Biólogo e eu resolvi não tentar explicar o que é um microbiologista (e muito menos em corrigi-lo na frente de seus subordinados).
Assim sendo, cheguei. Prontamente me alojaram num quarto para oficiais (uma suíte com água quente). Mal posso acreditar. Estou bem melhor aqui do que estava em Tabatinga. Mas quando se pisa para fora do quarto, bem, se escorregar, cai diretamente dentro da floresta. Vai ser uma experiência única (além de um privilégio) pois até onde eu saiba é a PRIMEIRA VEZ QUE UM NÃO-MILITAR VEM AQUI ESTUDAR MALÁRIA.
Pioneirismo já esta quase virando meu nome do meio.
27 de agosto de 2001
Na fronteira da superação
Hoje é um dia especial. É especial porque internamente marca o fim de um sonho. Fazem exatamente 361 dias que eu botei meus pés aqui na Amazônia para trabalhar na parte de obtenção de amostras para a minha tese de doutorado.
Na verdade, este lugar maravilhoso me deu uma amostra do que a vida pode realmente ser. E hoje eu posso dizer que eu tenho uma vaga noção.
No começo do meu relato, por pedido de nosso âncora, eu tentei criar algo como um diário. Que tivesse seqüência e desta forma ajudasse as pessoas a seguir o mesmo caminho que eu estou trilhando. Fazer com que diversas mentes viajassem junto comigo pelos confins desta Brasileira Amazônia. Admirá-la com estes olhos neófitos de quem chega no paraíso e se deixa misturar.
Mas a tarefa ficou muito árdua. Porque a intensidade dos momentos não pode ser mais medida em horas ou dias. Creio que grande parte dos principais aspectos (a primeira viagem de barco, o primeiro contato com os indígenas, as belezas naturais etc) puderam ser relatados exatamente no momento em que aconteciam. E me sinto feliz por isso.
Mas creio que cheguei num novo instante de estaca zero. É uma sensação incrível Ter a consciência de que realmente conheço esta parte tão valiosa de nosso território. Que precisei andar milhares de quilômetros para curar minha miopia concretada pelo dia-a-dia de “menino metropolitano”.
Contudo, acredito que seja um novo começo porque não preciso mais confrontar realidades diferentes, lugares diferentes, pessoas diferentes....Não! Virou tudo uma coisa só. E o que posso dizer para você que neste momento perde (ou ganha, sei lá!) minutos preciosos do seu tempo lendo estas linhas, é que neste exato momento existem pessoas trabalhando para que nossa população tenha uma real melhora em sua qualidade de vida. E infelizmente, assim como você não tem noção que elas existem, muitas delas não tem noção da importância do próprio trabalho.
Sou um profissional da área de saúde. Mas poderia ser um engenheiro, advogado, designer ou fotógrafo. Não importa o que faço. Descobri com minhas andanças que a vida tem muito mais aspectos do que se pode imaginar. E que muitos não se apresentam assim de graça. São o resultado de uma busca...e hoje eu sei que tem gente que encontra
Sei o que falo pois vivo em uma casta da sociedade que tem acesso à informação e à grande maioria dos “privilégios”
Principalmente no que diz respeito à formação profissional e pessoal (do “curso de inglês ao carro do ano”).
Contudo, geralmente nossas ambições são um retrato das necessidades do meio em que vivemos, seja ele familiar ou não. Mas normalmente são uma adaptação aos desafios que a vida nos coloca a cada dia. Contudo, temos uma certa tendência a querer (ou somos induzidos a pensar assim) que devemos sempre dar uma passo à frente.
Tive a oportunidade de vivenciar o que acredito ser um aspecto REAL da vida. Meus padrões mudaram muito. E uma vez que aceito estes novos padrões como integrantes de uma nova pessoa. Já não me sinto mais sozinho e consigo literalmente VER outras pessoas que também enxergam o mundo sob este prisma (até porque algumas delas, graças ao Paim, se fazem presentes até virtualmente).
O resultado prático de tudo isto pode ser resumido em uma única frase: “Desenvolva a força do seu sorriso!”. E isto não é um conselho para a formação de legiões de palhaços.
Nós somos seres interativos. Mas por incrível que pareça, palavras são a maneira mais pobre de nos relacionarmos. Façamos de nosso sorriso e olhar um espelho de nossas almas.
Foi isto o que eu fiz nesta primeira etapa da minha tese. Um verdadeiro “exército de um homem só” apoiado por diversos órgãos federais, outros não governamentais e pela família.
Contudo sei que só consegui realizar algo porque (graças aos genes da minha mãe e pai) tenho a capacidade de me relacionar e a mentalidade pragmática para andar para frente na direção de um objetivo.
Na verdade atingi metas demais, e vou precisar de um pouco de tempo para metabolizar todas as experiências.
Gostaria de agradecer ao Paim por esta oportunidade de poder “pagar meu dízimo” à comunidade Inaciana. Temos todos a mesma formação básica e portanto a teórica capacidade de nos entendermos bem.
Vou terminando minhas histórias com uma seqüência de fatos e idéias que se formaram durante o último ano. Juntamente com os resultados parciais desta minha “Odisséia Amazônica” e torcendo para que todos os anos da minha vida sejam tão intensos quanto este último:
Imagem: A vida (além de não ser nada do que você está pensando) parece ser como uma apresentação circense de equilíbrio utilizando-se varas de bambu e pratos que ficam rodando em suas extremidades. Cada prato pode representar um aspecto de nossas vidas (trabalho, família, amor, dinheiro, espiritualidade, saúde). A idéia é Ter o maior número de pratos girando simultaneamente e sempre se lembrar que
a) se um prato for esquecido sem atendimento, ele parará de rodar e cairá, quebrando-se. O bonito, é que sempre nos será dado um novo prato, mas o momento da quebra é sempre seguido de dor;
b) existe um máximo de energia que se deve acrescentar a cada prato (se rodar demais ele também pode cair e quebrar).
Principais localidades e meios de transporte em 361 dias: Rio de Janeiro (avião) Manaus (Hospital Tropical) (barcos) 9 comunidades ribeirinhas (barcos) Manaus (avião) Rio de Janeiro/natal e ano novo (avião) Manaus (barcos e carros) Cacau Pireira, Iranduba e Manacapuru (carro) Presidente Figueiredo e Itacoatiara (barco) comunidades indígenas do Distrito de Manaus (COIAB/Muras) (carro) Manaus (avião) Tefé (avião) Eirunepé (helicóptero) Aldeia Kanamari (Uni-Tefé) (helicóptero) Eirunepé (avião) Manaus (passando por Tefé) (barco) Comunidade Nossa Senhora de Fátima (avião) Rio de Janeiro/ Dia das mães (avião) Manaus (avião) Tabatinga/Letícia (fronteira do Brasil com a Colômbia e Peru) (barco) Terezina III (aciso com o exército Brasileiro) (barco) Tabatinga (avião/Búfalo do EB) 2o PEF de Ipiranga (Rio Içá- fronteira do Brasil com a Colômbia) (avião/Bandeirante da COMARA) Tabatinga (voadeira hp115/13 horas) Tribos indígenas (Rio Novo e Aurélio) do Vale do Javari (CIVAJA/Marubos, Matis e Korubos) (voadeira/12 horas) Tabatinga (barcos e voadeiras) Benjamin Constant e Atalaia do Norte (barcos e voadeiras) Tabatinga (hidroavião/Exército Peruano) Iquitos (ônibus lotado) Comunidades de Zungarococha, Puerto Almedra e Llanchamma (ônibus) Iquitos (avião) Lima (avião) Cuzco (ônibus) Ollantaytampu (caminhada pela trilha Inca /4 dias) Machu Picchu (ônibus) Águas Calientes (trem) Cuzco (ônibus/ 25 horas) Lima (avião) Iquitos (hidroavião) Santa Rosa (voadeira) Tabatinga (avião) Manaus ...e continua....
Principais órgãos Nacionais ou Internacionais, de Ensino e Pesquisa ou Assistenciais, Governamentais ou não, que de maneira direta ou indireta suportaram a etapa inicial do projeto (em qualquer aspecto, seja ele na coleta direta de amostras ou me capacitando para fazer as mesmas na “realidade Amazônica”):
1) Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
2) Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho - IBCCF
3) Fundação de Medicina Tropical do Amazonas - FMT/IMT-AM
4) Hospital Tropical de Manaus
5) Cnpq
6) Fundação Nacional de Saúde (FUNASA- MAO, TBT, BC e ATN)
7) Secretaria Municipal de Saúde de Manaus (SEMSA)
8) World health Organization (WHO)
9) CIDEIM (Cali - Colômbia)
10) Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB - Manaus)
11) União das Nações Indígenas (UNI-Tefé)
12) Organização T’oru m’aru (OTN - Benjamin Constant e Tabatinga)
13) Coordenação Indígena do Vale do Javari (CIVAJA - Atalaia do Norte)
14) Ministério da Defesa, Exército Brasileiro, Comando Maior da Amazônia,16o Batalhão de Infantaria de Selva,FSOL/ 8o Batalhão de Infantaria de Selva:
a) Hospital de Guarnição do Exército em Tabatinga
b) 2o Pelotão Especial de Fronteira - Ipiranga
15) Ministerio de Salud del Peru, Dirección Regional de Salud de Loretto (Iquitos), Division de Salud, Programa de Malária Centro de Salud de San Juan, Puesto de Salud de Zungarococha, Puerto Almendras e Llanchama
“Uma visão do Inferno” - Peru, Iquitos (Agosto de 2001)
(15:57 pm. Estrada de terra completamente esburacada, voltando de Puerto Almendras com destino a Iquitos.)
“Depois de passarmos toda a manhã e o começo da tarde fazendo Busca Ativa de pacientes de malária (nota: B.A. é o nome que se dá à estratégia de ir até os pacientes febris em suas casas e não esperar até que os mesmos procurem o posto de saúde para atendimento médico. A estratégia de Busca Ativa é extremamente útil em comunidades localizadas em áreas de alto risco de transmissão de malária) eu, Moisés (médico) e o Jei (auxiliar de enfermagem) finalmente conseguimos condução para voltar até o Centro de Salud de San Juan para processarmos as amostras obtidas.
Está um dia infernalmente quente e nós conseguimos entrar juntamente com todo o material que transportávamos (apesar de contrariar todas as leis da física sobre matéria e espaço) numa van com lugar para uns 12 passageiros, mas que neste momento já tinha uns 25 (muito bem contados!).
O calor, o excesso de pessoas o cheiro de suor e comida além da estrada esburacada já seriam suficientes de tirar qualquer ser humano do sério. Ainda mais se este ser humano tivesse trabalhado durante todo o dia e está se dirigindo para outro local para continuar trabalhando....Um daqueles dias que simplesmente não termina!
O teto da van é muito baixo, o que me impede de manter uma postura ereta e minhas costas começam a doer. Além disto, meu pé esquerdo “adormeceu” e eu não consigo me movimentar nem mesmo para fazer o sangue voltar a circular. Eu penso: “Tudo bem, um pouquinho de sacrifício acaba virando uma boa história, dá para agüentar”. Mas como que lendo meus pensamentos uma criança com malária (do tipo vivax, eu saberia instantes depois) começa a passar mal e vomitar a cada 5 minutos, devido a todos os motivos supracitados associados a seu estado de saúde. A situação torna-se insuportável para mim, mas sofro em silêncio.
A partir deste momento, o clima dentro da van é como se todos estivessem num “banheiro de Maracanã” ambulante. Algumas janelas são abertas (as outras simplesmente NÃO ABRIAM) e a precária condição dos passageiros se estabiliza.
Mas como nada é tão ruim que não possa piorar, havia dentro do ônibus um passageiro que transportava uma galinha (porque sempre tem que Ter um animal dentro de um coletivo aqui no Peru?).
Provavelmente devido à “todas as condições supracitadas” e somando o cheiro de vômito, o animal começou a se debater e finalmente conseguiu se desvencilhar do abraço de seu dono (provável futuro carrasco) e começou a voar por dentro da van, entre as cabeças dos passageiros. Certamente foi o único animal entre todos nós a tomar uma postura decente.
Fato é, que o motorista foi obrigado a parar para ver o que estava acontecendo e todos os passageiros saíram (UFA!!! AR PURO!!!). O “co-piloto” após rápida observação falou que a culpa de toda aquela situação era da criança com malária que estava passando mal. E por causa disto não iria deixar que ela retornasse ao veículo.
Eu e o Moisés apesar de sabermos que certamente ela tinha um pouco de culpa, protestamos e foi iniciada uma grande argumentação recheada com tópicos como: superlotação, animais, clima, doentes, direitos, deveres e etc.
Contudo, uns 5 minutos depois, a própria mãe da criança (que por estar do lado de fora já não passava mal) aceitou que estava insuportável viajar daquele jeito e disse estar perto o suficiente para caminhar o resto do seu caminho.
A galinha e seu dono voltaram para dentro da van. O “co-piloto” jogou um pouco de terra no “chão vomitado” e o mesmo fez com suas vestes o passageiro que viajava ao lado da menina com malária. A van continuou seu trajeto rumo a San Juan...SINISTRO!
Experiência Profissional mais marcante:
Nos últimos 3 meses estive alojado num baita “Hotel 5 estrelas” (quem viu a foto sabe) aqui em Tabatinga. A cidade é realmente pequena e os casos de malária são insuficientes para que eu “espere os pacientes”.
De maneira que tenho que ficar o tempo todo fazendo contatos para me meter em missões de qualquer tipo (Borrifação de comunidades afastadas, vacinação e etc) e uma vez que levo comigo todo o material necessário das coletas, além de realizar todo o trabalho eu mesmo e “não cobrar diárias”, digamos que seja muito difícil levar um “Não” como resposta.
Mesmo assim, as missões não são muito freqüentes e eu tive muito trabalho para poder concatenar as atividades de maneira a nunca ficar sem fazer nada e além do mais, uma vez “em missão” eu não pago nada, o que na prática me garante uma merreca para sobreviver e poder tomar algum tipo de decisão ativa. Nisso, obtive bastante sucesso até o fim dos trabalhos por aqui.
Mas em um dado momento, a minha estratégia de trabalho era a seguinte: “Vou ficar 14 dias com os militares lá no Pelotão de Fronteira, onde ouvi dizer que tem bastante casos de malária e em seguida vou para o Peru fechar o trabalho analisando isolados da Amazônia Peruana”.
Estas amostras somadas às do Brasil e Colômbia vão servir de material para perguntas muito interessantes no que diz respeito ao perfil de resistência do
P.falciparum aqui na América do Sul (E quem sabe eu não aproveito e dou um pulinho em Machu Picchu para realizar uma cruzada espiritual também?.)
Pois bem. Dito e feito. Fiquei lá com o exército enfiado no meio da floresta amazônica em um dos locais mais isolados que se pode imaginar (apenas um passo menos do que uma tribo indígena). Experiência muito importante. Momentos muito difíceis mas que serviram para criar uma “casca” necessária para quem é brasileiro e trabalha na Amazônia.
Conviver com pessoas dispostas a morrer por este lugar (mesmo que muitas delas sejam treinadas para isso) me fez rever princípios de patriotismo e nacionalidade que eu jamais faria de outra forma, uma vez que “sobrei” no que diz respeito às minhas obrigações militares.
Mas finalmente quando boto os pés em Tabatinga novamente (cidade que naquele momento e aos meus olhos de “bicho” que ficou 2 semanas na selva é tão grande quanto Nova Iorque) sinto que posso começar a planejar minha ida ao Peru e iniciar a parte final do trabalho aqui.
Quando estava tudo pronto, faltando apenas comprar a passagem de Hidroavião (Eu sabia que ainda ia voar num troço destes!) recebo um telefonema do alto escalão da Fundação de Medicina Tropical de Manaus dizendo para eu “largar o que está fazendo e pegar uma voadeira até Atalaia do Norte, porque tem uns índios que estão morrendo ninguém sabe muito bem de que e vamos mandar um médico residente aqui do hospital tropical para averiguar a situação e já que você está na área, vai ajudar no processo de obtenção, armazenamento e transporte das amostras, alguma pergunta?”
Por mim estava tudo tranqüilo. Me inteirei da situação com mais detalhes falando direto com o pessoal da ONG de Atalaia do Norte, que é a responsável por esta área indígena.
O pessoal da CIVAJA foi muito profissional e objetivo. É uma pena que a saúde dos povos ribeirinhos não receba tanto investimento e preocupação quanto a saúde indígena aqui na Amazônia.
Mas para encurtar uma longa história, obviamente que a saída para aldeia atrasou (o médico demorou para chegar, a voadeira que serviria de transporte quebrou etc).
Mas um fato curioso é que a enfermeira que veio de Manaus e iria fazer parte da missão achou o processo todo muito “perigoso” e desistiu. Disseram para ela em Manaus que ela iria chegar de helicóptero na tribo dos Marubos (quando na verdade íamos mesmo é de voadeira e mesmo assim só chegaríamos depois de 13 horas de viagem).
Além do mais ela veio junto com um time da polícia federal que foi destacado para vir exatamente para a mesma região pois acabava de ocorrer um incidente entre os índios korubos (caceteiros) e alguns ribeirinhos que foram pescar em seu território (incidente = korubos encheram ribeirinhos de cacetadas e mantiveram um ou dois como reféns por alguns dias). O pessoal da FUNAI e da Frente de Contato Indígena estava muito preocupado. Nosso time passaria exatamente pelo meio deste “Oriente Médio Amazonense”. A enfermeira não agüentou e “amarelou”.
A situação real na aldeia dos Marubos por sua vez era a seguinte: 3 indígenas morreram num período muito curto de tempo com sintomas muito parecidos (febre hemorrágica), sendo que um deles além disto ainda estava com malária vivax.
Como a distância era muito grande, a história clínica dos pacientes ficou muito comprometida. E os exames que foram feitos em Atalaia do Norte também não foram muito conclusivos.
Assim sendo, foi destacada uma equipe para fazer um levantamento epidemiológico e tentar Ter alguma boa idéia da real causa que estava levando aquele indígenas à morte.
Mas a explicação “indígena” para o ocorrido é realmente muito interessante. A enfermeira da CIVAJA nos falou então que na Aldeia Rio Novo (etnia: Marubos) existem atualmente 110 pessoas que estão muito tristes pois acreditam estar vivendo em uma condição de “feitiço”.
Tudo aconteceu porque a primeira indígena que faleceu era Marubo e tinha um marido de outra etnia (Kanamary). Mas depois de um tempo ela arrumou um amante de sua própria tribo e o marido traído foi até um pajé Kanamary e “encomendou” 6 mortes e uma pessoa cega na aldeia de sua ex-mulher.
Isto tudo foi “descoberto” por pajés marubos no momento em que a primeira indígena agonizava (em rituais de pajelança regados a “vegetal” e rapé).
A realidade é que os indígenas da etnia Marubo são muito alegres e exímios artesãos mas que tivéssemos cuidado ao ingerir água e outros alimentos oferecidos por eles, pois estavam muito revoltados e tristes com a situação.
Além do mais não acreditavam que fosse “doença de branco” e portanto que não haveria nada que nós poderíamos fazer para realmente ajudá-los. E como não falam português (um tradutor integrava a equipe) havia inclusive a possibilidade de nós chegarmos na aldeia e sermos totalmente ignorados.
A ida até a Rio Novo foi estupenda. Não há nada como andar de barco nesta nossa Amazônia. Um verdadeiro “Easy Rider” de rios, igarapés e igapós. Com direito a aprender a procurar ovos de tracajá em praias (planícies de maré) formadas pela vazante dos rios nesta época do ano e carne de cujumin (pássaro grande, tipo garça só que mais colorido).
O caminho até a aldeia foi interessante por 2 motivos. O primeiro é que pude conhecer pessoas que trabalham com etnias muito afastadas da civilização (diferente dos Muras que são assistidos pela COIAB) e ouvir histórias muito interessantes sobre Mayrunas, Matiz, Kanamarys e Korubos. Suas interações, brigas e alianças. Realmente fascinante (Alguém pode me dizer onde arrumo um mestrado em antropologia?)
Os korubos por exemplo (os famosos “caceteiros”) são componentes de uma tribo nômade e liderados por uma mulher (“Mayá”). São bastante violentos quando sentem que seu território foi invadido para caça ou pesca. Andam com os cacetes amarrados no tornozelo por uma longa corda e são conhecidos por serem muito traiçoeiros. A Lilian (enfermeira da missão) disse já Ter participado de uma missão de vacinação deste grupo, e que foi bastante arriscado.
Há uma notória rivalidade entre Korubos e Matiz. Ambos grupos étnicos falam um idioma com a mesma raiz. Entretanto os Matiz (que só tem 20 anos de contato com o “branco”) são flecheiros e hoje em dia também possuem armas de fogo. Estes fatos são traduzidos na mentalidade korubo como “ataque à distância”. Um Matiz é facilmente reconhecido pois tem a cara tatuada e enfeitada (piercing natural) como se fossem onças.
Mayrunas são um grupo também bastante bravo que tem a boca tatuada (imitando a de um jacaré), mas meu contato com eles foi praticamente nulo (vi uma família desta etnia na “Casa do Índio” de Atalaia do Norte).
Os Kanamaris daqui são os mesmos da missão de Eirunepé e entre todos estes grupos étnicos são os que mais se relacionam com o homem branco, o que os torna praticamente aculturados hoje em dia.
O segundo aspecto é que o barco quebrou durante o caminho e tivemos que pernoitar amarrados num barranco perto de uma pequena praia. Durante a noite, outro barco apareceu e obviamente que o piloto da nossa voadeira conhecia o piloto do barco (mais do que conhecer, eram parentes) e tudo virou festa. O problema mecânico (a tal da “aranha”) foi resolvido e ficamos até altas horas tocando violão (eu tocando é claro!).
A descrição deste outro barco tem muito em comum com as caravelas pré-coloniais, uma vez que eles transportam animais vivos embaixo do estrado que serve de chão. De maneira que esta “grande gaiola” com o fundo cheio de galinhas e porcos viaja lentamente pelos rios a levar pessoas, animais, combustível e frutas por comunidades realmente muito distantes do interior da Amazônia.
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