Nythamar de
Oliveira, PUC-RS / CNPq
Abstract:
How might one say "adieu" so as to render Levinas's "à-Dieu" as a plausible account of a new way of saying (dire) the name of "God" (Dieu) without reducing its radical alterity to a mere dictum (dit)? I am here proposing the usage of the Portuguese word adeus as what might be perhaps the most felicitous way of doing justice to Levinas's radical subversion of onto-theo-logy. At first, it seems that adeus merely translates the French adieu into Portuguese, and it indeed does. However, as opposed to other possible equivalents in other European languages, such as goodbye, Lebewohl, adios, and others, the hyphenated term (a-deus) also allows for an important ambiguity, beyond its own polysemy and plays on words, namely, that not only one may think of the equivalent function of addressing the Wholly Other (à Dieu) and its negation by way of a privative alpha (a-Dieu) but also a tacit "there is," in Portuguese há, whose mute h functions like the Hebrew aleph, to designate what cannot be pronounced (as in God's name) and yet is there, the Levinasian il y a. To be sure, the Portuguese word adeus, just like the French adieu, stems obviously from the Latin formula ad deus, and its original usage to salute, greet or say farewell to someone is certainly an interjection that finds equivalent terms not only in any other language but even in other ways of more or less expressing the same sentiment or idea of greeting, farewell, encounter, separation or salvation (for instance, bonjour, salut, cheers, Grüße, ciao, shalom). On the other hand, the Portuguese adeus allows for a Derridian effect of différance to come into play in a way interestingly anticipated by Levinas, in his subversive radicalization of Heidegger's ontological difference, namely, in the forgetfulness of the Other of Being, not so much the Seinsvergessenheit as the oblivion of alterity, an ethic way that cannot be found in any mode of Being (Seinsart) insofar as it is always already otherwise than Being. Hence Levinas's il y a radically subverts Heidegger's es gibt, so as to allow for a new way of saying the name of God (Deus, Dieu) without naming it or even avoiding saying or writing it (D-us, G-d, Ha-Shem), beyond essence, by means of the encounter with the Other in the very withdrawing (a-deus) of the gods (deuses), and without resorting to a negative theology, mysticism, or any dialectical tricks.
A Ricardo Timm de Souza
Estou sempre dizendo adeus:
até a Deus
para o reencontrar em outra esquina
de adeuses.
Lya Luft, "Dizendo Adeus" (Para Não Dizer
Adeus, 2005)
1. "Adeus": o
enunciado de uma inconfundível ambigüidade nos remeteria decerto ao adieu proferido por Jacques Derrida
quando da cerimônia fúnebre do seu amigo, colega e maître à penser Emmanuel
Levinas, no dia 27 de dezembro de 1995, no cemitério de Pantin.[1]
O que há de inconfundível nesta ambigüidade nos remete não tanto à forma
singular ou ao plural em francês (adieu / adieux), mas antes aos adeuses de
duas grafias foneticamente possíveis em português: "adeus", forma
singular de todos os adeuses aqui tematizados (à teologia, à metafísica e à
ontologia), assim como um inconfundível "há Deus", cujo efeito de
diferensa (différance) seria todavia imperceptível
e intraduzível em francês, alemão ou inglês. "Há Deus":
il y a Dieu, es gibt Gott, there is a God,
onde o que há é o único Deus --do monoteísmo judaico-cristão-islâmico--
significando, de jure e de facto, desde sempre, o adeus a todos os
deuses. "Há Deus" justamente porque não há deuses. Em se tratando de
homenagear, hoje, aqui neste lugar, o pensamento tão inconfundível quanto
excelente de quem ousou marcar --com o traço e o rastro de um hífen-- o à-Dieu do Totalmente Outro que vem à idéia
mesma de sua absoluta alteridade, dada a impossibilidade de se pensar e dizer o
que lhe é próprio, na inefabilidade mesma de seu nome próprio.
"Adeus" nos remete, portanto, a vários adeuses, que por sua vez nos
remetem inevitavelmente a um "adeus" que não se deixa encerrar numa
negatividade ou num efeito conclusivo e definitivo como a morte de Deus. Se o
"adeus" à onto-teologia, assim como todos os adeuses à metafísica
celebrados desde Hume e Kant até Hegel e Nietzsche, pressupõem o "Deus"
que definitivamente partiu de nossa presença filosófica, o "a-Deus"
hifenado marca o seu eterno retorno, como na sua inesperada e pertubadora
irrupção no horizonte de uma humanidade marcada pela morte, cada vez um evento
único, o fim do mundo.
2. Chaque fois
unique, la fin du monde,
traduz e trai, segundo as políticas de amizade que ligam, de maneira tão inconfundível
quanto ambígua, Derrida a Levinas, os infindáveis e inumeráveis diálogos
que não se deixam interromper --"dialogues ininterrompus" -- em filosofia, como de resto na vida e na
arte. O discurso do adeus que Derrida denomina de "cogito de l’adieu, ce salut sans retour", essa saudação/salvação
sem retorno, se mostra, todavia, um adeus que nos convida ao pensamento do Outro,
até mesmo à sua epifania e ao infinito de sua alteridade para além de um fim,
de uma morte ou de um evento que se dá em nosso horizonte de ser e existir. O
adeus da despedida desvela, portanto, o "Há Deus" de encontros e
reencontros de poetas, profetas e filósofos como Levinas e Derrida: il y a, autrement que l'être,
l'Autre, Autrui, Dieu qui vient à l'idée -- há,
outramente que o ser, o Outro, outrem, Deus que vem à idéia. Segundo a glosa derridiana, além da saudação
e da despedida, o a-Deus levinasiano nos lembra o coram
deo kierkegaardiano, "para" e "perante" o Todo Outro em
todo outro adeus, toda relação ao Outro seria, antes e após tudo, um adeus:
"L’à-dieu, le pour Dieu ou le devant Dieu avant tout et en tout rapport à
l’autre, en tout autre adieu. Tout rapport à l’autre serait, avant et après
tout, un adieu".[2]
3. O a-Deus levinasiano
antecipa e efetiva, portanto, a idéia derridiana de desconstrução da metafísica
e da subjetividade moderna, para além dos adeuses à metafísica (não apenas em
projetos tão radicais quanto os que foram solenemente anunciados por Hegel,
Nietzsche e Heidegger), mas também no próprio glas (death knell,
die Sterbeglocke, dobre,
toque dos sinos a finados)[3]
que celebra a morte da metafísica da presença, pelo paradoxo da intraduzibilidade
e da impossibilidade de propriedade e autenticidade do texto original e do nome
próprio. No caso de Levinas, trata-se de dizer a-deus ao nome de Deus, ao nome
próprio inclassificável, do qual não se pode falar (comment ne pas parler), inominável e inefável, porque não pode ser
pronunciado, apagado, significado, sem pressupor, desde sempre, toujours déjà, immer schon, always already,
a sua indecidível e indizível irredutibilidade como rastro, como se o apensar
de um "a" nos levasse a pensar a sua ocultação, supressão ou até
mesmo a suprassunção do que efetivamente está aí, "há", il y a. Com efeito, no tetragrama
hebraico, YHWH, o passado, o presente e o futuro do verbo "ser"
desafiam quaisquer tentativas de redução ontológica: "ehyeh asher ehyeh", por exemplo, quando da epifania do Deus de
Abraão, Isaac e Jacó a Moisés (Êxodo / Shmot 3,14), revelando tal paradoxo da
intraduzibilidade e da impossibilidade de obter um suposto significado último
para um significante transcendental do nome divino ("Eu sou o que
sou", "O Senhor", "O Eterno", "Deus dos
Exércitos" e tantas traduções, vocalizações e transposições variantes).
Como bem observou Derrida em um de seus textos dedicados a Levinas, "sua
futura anterioridade terá sido irredutível à ontologia" (sa future antériorité aura été irreductible
à l'ontologie)[4].
Justamente essa operação de indecidível e
indizível irredutibilidade foi denominada "diferensa"(différance), para marcar o rastro inaudível, não-tematizado e não-dito na diferença (différence) ôntico-ontológica
heideggeriana. Lembramos, ao dizer a-Deus com Levinas, que este foi um ávido
leitor de Heidegger, que ele mesmo ajudou a introduzir na França ainda nos anos
30, em textos seminais sobre a fenomenologia de Husserl e o que viria a ser
apropriado por Sartre como existencialismo. A interlocução com Heidegger foi
decisiva, portanto, para repensar a ontologia fundamental, a história da
filosofia e o problema de Deus sem reduzi-lo ao ser ou ao nada, nem sucumbir
aos reducionismos ôntico-ontológicos da metafísica da presença.
4.
Levinas tematiza o "il y a"
num ensaio com o mesmo título, que foi publicado no primeiro número da revista Deucalion de 1946 (p. 141-154), e que
seria depois incluído em sua primeira obra exprimindo seu próprio pensamento, De l’existence à l’existant, em 1947.
Para nomear o fenômeno do impessoal, através do "il" em francês, por
exemplo, quando chove, "il pleut", Levinas evoca uma consumação
anônima do ser: "Cette ‘consumation’ impersonnelle, anonyme, mais
inextinguible de l’être, celle qui murmure au fond du néant lui-même, nous la
fixons par le terme d’il y a, l’être en général."(EE 93-94; cf.
TI 115s.)[5]
O "há" impessoal de uma existência anterior ao existente e a toda
subjetividade, para além do es gibt heideggeriano,
não advém da nadificação do nada contraposto ao ser, desvelando não tanto a
angústia existencial (Angst) quanto o
horror que evade da própria impossibilidade de morrer: "Horreur de l’être
opposée à l’angoisse du néant; peur d’être et non point pour l’être ...
l’horreur exécute la condamnation à la réalité perpétuelle" (EE 102) Em se
tratando de aproximar il y a e o nome
de Deus, vemos logo que não poderíamos atribuir à divindade uma existência ou
uma modalidade ôntico-ontológica, mas seremos compelidos a uma dimensão ética
que lhes é anterior. Esta será de resto a grande lição que nos será legada das
leituras que Levinas nos oferece da Bíblia hebraica e do Talmud. Assim como
Kant já a formulara em termos de antinomias da razão, a indecidibilidade de
afirmar ou negar a tese da existência de um ser supremo passa pelas limitações
de nossa linguagem e de nossas categorias semântico-transcendentais: um tal
ente não seria digno de adoração, na medida em que sua existência não poderia
ser um atributo fenomênico e toda especulação a seu respeito transgrediria o
uso legítimo da razão teórica. Levinas vai mais longe ainda ao radicalizar a
crítica deísta ao teísmo, assumindo o ateísmo de quem procura ser fiel ao tema
bíblico da separação dos céus e da terra, da total alteridade da santidade
divina: "L’âme ...accomplissement de la séparation, est naturellement
athée". (TI 29) O a-deus levinasiano logra problematizar, portanto, as
duas leituras já anunciadas pelo "a-deus" de um alfa privativo (a do
ateísmo e da crítica filosófica à metafísica) e pelo "há Deus" do
"il y a", cuja positividade ética se dá justamente na radicalidade de
sua alteridade, a de um tácito alef divino. Assim como Derrida evocaria a
operação de desconstrução já presente na teologia luterana do deus absconditus e do deus revelatus, Levinas recorre à revelação do totaliter aliter (Todo-Outro) na comunidade judaica, que se desvela
eminentemente pela epifania do rosto como linguagem: "L’épiphanie du
visage est tout entière langage".[6]
Com efeito, a Torah está repleta de ensinamentos, estórias e metáforas que
relatam o exílio do Outro, a visita do Outro, o Outro como hóspede e o rosto do
Outro, culminando com a regra de ouro (amar a outrem como a si mesmo) e com a
minha descoberta como refém do Outro, emblematicamente identificado como o
pobre, o órfão, a viúva e o estrangeiro. Assim, o a-Deus levinasiano deve
realizar a promessa do alef (o "há Deus" do primeiro mandamento da
Lei mosaica) através de uma verdadeira odisséia que exila, hospeda e visita a
alteridade do Outro pelos inúmeros adeuses dos que não a recebem, percebem ou
aceitam (os a-deuses do alfa). Todavia, não se trata de simplesmente contrapor
uma visão ético-judaica a uma cosmovisão greco-ontológica, pois Levinas recusa
qualquer privilégio a um povo escolhido ou a uma forma de religiosidade
supostamente superior ou mais profunda. Assim como Derrida, Levinas radicaliza
o legado greco-ontológico da hermenêutica heideggeriana pela sua inerente
subversão profético-judaica.[7]
Uma fórmula
de Mark Taylor, segundo a qual a "desconstrução é a hermenêutica da morte
de Deus", pode ajudar-nos a melhor entender a desconstrução do conceito
metafísico-teológico de Deus na escrita da filosofia ocidental correlato ao de
sua desconstrução na escritura da própria tradição judaico-cristã. Assim como
Derrida, Levinas contribui para a definitiva desmitologização de Heidegger e de
sua História do Ser (Seinsgeschichte),
pela reabilitação dos elementos judaicos (e "gregojudeus", segundo o
termo joyceano-derridiano, greekjew) silenciados e excisados pela
suposta purificação do pensamento filosófico ocidental. Segundo John Caputo,
"o gregojudeu é o estado miscigenado de alguém que não é puramente grego
nem puramente judeu, que é demasiadamente filosófico para ser puramente judeu e
demasiadamente bíblico para ser puramente grego, que está ligado quer a
filósofos quer a profetas. Este é o estatuto que Derrida considera convir ao
próprio Levinas, cujo projecto não era suplantar a filosofia, mas sim chocá-la,
expondo-a a algo diferente dela própria. É exatamente desta forma que a
desmitologização de Heidegger procura expor o mito do Ser ao choque do mito
greco-judeu da justiça, opor um mito greco-judeu e uma imaginação greco-judaica
a um mito puramente grego. Desmitologizar Heidegger," continua Caputo,
"significa destruir este mito greco-alemão da pureza grega, o mito dos
Gregos nativos e incipientes (anfänglich) de Heidegger, dos Gregos
privados de Heidegger, que alimentaram as chamas do seu nacional-socialismo
privado".[8] O adeus
do alfa privativo é, portanto, compelido ao reencontro de seu Outro, o a-Deus
do alef assertivo.
5. Il y a Dieu, há Deus, não
apenas como absolutamente Outro mas pela epifania do rosto de Outrem, como nos
ensina o Talmud. Antes de mais nada, Levinas nos
lembra que o Talmud não realiza efetivamente, no sentido hegeliano de aufheben, a Bíblia hebraica (Tanach) no sentido em que o Novo
Testamento pretende fazê-lo com relação ao Antigo.[9]
O Talmud nos ensina, acima de tudo, que o significado último da Palavra de Deus
só pode ser compreendido a partir e através da própria vida humana. Assim como Deus não poderia ser reduzido a um ser supremo ou
a uma essência, a experiência religiosa é antes de mais nada uma experiência
moral: "L'expérience religieuse ne peut pas --du moins pour le Talmud-- ne
pas être au préalable une expérience morale". (QLT 34) A primeira lição
talmúdica trata precisamente do movimento do Outro em direção a Outrem:
"Envers autrui". Segundo Levinas, "Dieu est en un sens l'autre
par excellence, l'autre en tant qu'autre, l'absolument autre --et cependant mon
arrangement avec ce Dieu-là ne dépend que de moi ...Par contre, le prochain,
mon frère, l'homme, infiniment moins autre que l'absolument autre, est, en un
certain sens, plus autre que Dieu". (QLT 36) Elohim, um dos nomes divinos,
segundo várias interpretações talmúdicas, deve ser traduzido como juiz, aquele
que arbitra entre os humanos e faz prevalecer a justiça, na medida em que o
Outro sempre nos revela Outrem. A segunda lição, "La tentation de la
tentation", nos remete ao problema do conhecimento do bem e do mal, em
particular do saber solipsista, alheio ao escutar e aos apelos da voz do Outro.[10]
Como nos lembra Derrida, a interpretação talmúdica de Levinas nos mostra como a
retidão (droiture, uprightness) extrema do rosto do Outro,
mais forte do que a morte ("plus fort que la mort"), desvela a
irredutibilidade do a-Deus em seu movimento em direção ao Outro, desarmado e
desnudado de quaisquer subterfúgios racionalizantes, em sua total retidão como
sinceridade de transcedência, temimut: "Mouvement vers l’autre qui ne revient pas à son point
d’origine comme y revient le divertissement incapable de transcendance. Mouvement
par-delà le souci et plus fort que la mort. Droiture qui s’appelle Temimouth, essence de Jacob".
(QLT 105) A Torah nos aparece então como signo judaico por excelência da
difícil liberdade que precede todo saber, segundo uma verdadeira
"pedagogia da libertação". (QLT 86) Segundo o comentário levinasiano,
"L'être a un sens. Le sens de l'être, le sens de la création --c'est la
réalisation de
6. Em Du sacré
au saint,[11] Levinas
nos oferece mais cinco leituras talmúdicas --ater-me-ei apenas às três primeiras--
para marcar o movimento de transcendência do a-Deus com relação a concepções
imanentes do sagrado, desde as religiões animistas e politeístas até as versões
idólatras, panteístas e encantadas mais próximas do judaísmo. Neste sentido, o
adeus do alfa privativo, assim como no ateísmo, desempenha um papel análogo ao
das chamadas teologias negativas que recusam-se a falar de Deus como se fosse
redutível a uma coisa, substância ou objeto do pensamento humano. Na primeira
lição, "Judaïsme et révolution", Levinas lembra que Abraão recebe os
três estrangeiros --que teriam vindo ao seu encontro como beduínos ou árabes
nômades do Negev, e não como anjos-- para assinalar a epifania do rosto do
Outro. Na medida em que todos nós somos da descendência de Abraão, todos nós
somos responsáveis pelo destino social dos menos favorecidos e dos excluídos,
até mesmo quando corremos o risco de sermos perseguidos ou mal-compreendidos. A
segunda interpretação, "Jeunesse d'Israël", discorre sobre o
nazirato, instituição de santificação ritual segundo a qual os cabelos do
nazireu não podiam ser cortados. Os nazireus eram os filhos de Israel que se
dedicavam ao estudo da Torah, como sábios e juízes --dentre os mais famosos,
figuravam Samuel e Sansão. Sua missão consagrada era a de construir a paz no
mundo: "Apaiser le monde en le renouvelant constructivement, voilà la
jeunesse du nazirat, voilà la jeunesse".(SS 80) Finalmente, na terceira
lição, "Désacralisation et désensorcellement", como já foi
antecipado, Levinas procura explicar em que sentido a Mishnah --como a Torah e
o judaísmo em geral-- não tem nada a ver com o sagrado, na medida em que este
se confunde com todas as práticas e aspirações pagãs de uma falsa divindade, em
particular da feitiçaria que tenta provocar ilusões e --pior ainda-- tenta
tirar proveito ou lucrar, como charlatanismo religioso. O il y a do a-Deus levinasiano --il
y a Dieu, há Deus-- se revela aqui contra toda falsa pretensão de
reivindicação do sagrado: "Il n'y a pas d'autre Dieu; il n'y a pas d'autre
de Dieu... en dehors de Dieu, il n'y a rien d'autre..."(SS 100) Levinas
cita o Rabbi Hanina, que por sua vez evoca o quinto livro da Torah
(Deuteronômio / D'varim 4, 35), ecoando o credo mais fundamental do monoteísmo
judaico: "Shma' Yisrael, Adonai
Elohenu Adonai Ehad" ("Ouve Israel, o Eterno nosso Deus é o único
Senhor", D'varim 6, 4). Como lembrou Elie Wiesel na homenagem dos
intelectuais judeus a Levinas em 1996, a Haggadah de Pessach nos ensina
repetidamente, assim como o livro de Êxodo e o próprio Decálogo, antes mesmo do
Talmud e seus comentadores, que foi Deus, o Eterno, e nenhum outro que libertou
o povo de Israel da servidão no Egito: ani
velo aher, "moi, et non un autre", "Eu [Sou, o Eterno], e
não um outro [deus]".[12] O a-Deus do alef inefável, como sugeriu
Wiesel, vincula o "il y a" do único Deus que há a uma alteridade
exclusiva, anterior a todo Outro. Esta santidade é que O separa de todos os
outros deuses: " Kadosh Kadosh Kadosh" ("Santo, Santo, Santo é o
Senhor dos Exércitos: toda a terra está cheia da Sua Glória", Isaías 6, 3)
Justiça seja feita, como diria mais tarde Derrida em sua fórmula lapidar:
"tout autre est tout autre". A assimetria radical da alteridade de
cada Outro é garantida pela singular revelação do Todo Outro que se manifesta
pela separação entre o Ser dos entes e o não-ser irredutível ao nada,
outramente que ser, do próprio a-Deus: "Há Deus". Num de seus mais
conhecidos textos sobre "Dieu et la philosophie" (publicado em De Dieu qui vient à l'idée, Vrin, 1982),
Levinas lembra-nos do compromisso ontológico com a teologia que permeia toda a
história da filosofia ocidental: as aporias inerentes a tentativas de pensar
racionalmente o que faz de Deus o Deus em que judeus, cristãos e islâmicos
crêem nos remetem sempre ao problema da equivalência entre sentido e essência,
"gesta do ser, ao ser enquanto ser".(DVI 96)[13]
Interessantemente, como sugere Levinas, nem a teologia negativa nem as
diferentes versões de uma teologia fideísta (como a luterana, notavelmente em
autores como Kierkegaard, Tillich e Barth) logram esquivar-se de tais aporias:
"Perguntar-se, como tentamos fazê-lo aqui, se Deus pode ser enunciado num
discurso sensato (raisonnable), que
não seria nem ontologia nem fé, é implicitamente duvidar da oposição formal
estabelecida por Yehuda Halévi e retomada por Pascal, entre o Deus de Abraão,
de Isaac e de Jacó, invocado sem filosofia na fé, por um lado, e o deus dos
filósofos, por outro; é duvidar que esta oposição constitua uma
alternativa". (DVI 96s./88) Seguindo sua intuição original de que toda
ontologia é atéia, Levinas afirma que a filosofia "não é somente
conhecimento da imanência, mas é a própria imanência": "La
philosophie n'est pas seulement connaissance de l'immanence, elle est
l'immanence même".(DVI 101/92) Neste sentido, todo pensamento religioso
inevitavelmente passa pelo desvelamento filosófico, que é imanente e, portanto,
comprometido com a ordem dos entes e das essências. Levinas propõe, então, o
choque da consciência e subjetividade imanentes com um Infinito que as precede,
irredutível a todo pensamento ou idéia de negação do finito. Esse Infinito é
introduzido em uma subjetividade finita pelo desejo do Infinito, já tendo
pressuposto o a-deus do alfa privativo, do ateísmo ontológico, tendo diferido e
diferenciado, portanto, tanto a objetivação quanto a participação evocadas na
diferença ontológica heideggeriana. "La dimension du divin s’ouvre à partir
du visage humain. Une relation avec le Transcendant –cependant libre de toute
emprise du Transcendant, infiniment Autre, nous sollicite et en appelle à nous.
La proximité d'Autrui, la proximité du prochain, est dans l'être un moment
inéluctable de la révélation, d'une présence absolue (c'est-à-dire dégagée de
toute relation) qui s'exprime. Son épiphanie même consiste à nous solliciter
par sa misère dans le visage de l'Etranger, de la veuve ou de l'orphelin".
(TI 75) Como bem
colocou Luiz Carlos Susin, "Enquanto
NOTAS
* Texto apresentado na PUC do Rio de Janeiro em 8 de novembro de 2005. Publicado na Revista Filosofazer 28 (2006): 11-21. Não é permitida a reprodução parcial ou integral do texto aqui disponibilizado. Citações devem ser feitas de acordo com a publicação impressa.
[1] Jacques Derrida, Adieu. Paris: Galilée, 1997.
[2] J. Derrida, Adieu, p. 28 n.1.
[3] Cf. J. Derrida, Glas. Paris: Galilée, 1974.
[4] J. Derrida, "En ce moment même dans cet ouvrage me
voici", in Psyché, Paris:
Galilée, 1987, p. 190.
[5] Estou me servindo das abreviaturas das seguintes obras de E. Levinas: EE = De l’existence à l’existant, Vrin, 1947; TI = Totalité et Infini, M. Nijhoff, 1980; DDV = De Dieu qui vient à l'idée, Vrin, 1982.
[6] E. Levinas, En découvrant l’existence avec Husserl et Heidegger. Paris:
Vrin, 1967, p. 173.
[7] Cf. Marlène Zarader, La dette impensée: Heidegger et l'héritage hébraïque. Paris: Seuil, 1990.
[8] J. Caputo, Desmitificando Heidegger. Lisboa: Piaget, 1998, p. 24.
[9] E. Levinas, Quatre Lectures Talmudiques. Paris: Minuit, 1968, p. 19. Doravante, QLT.
[10] "N’avons-nous pas commis l’imprudence d’affirmer que le premier mot, celui qui rend possibles tous les autres et jusqu’au non de la négativité et à 1’'entre-les-deux' qu’est “la tentation de la tentation”, est un oui inconditionné?" QLT 106.
[11] E. Levinas, Du sacré au saint. Paris: Minuit, 1977. Doravante, SS.
[12] J. Halpérin e N. Hansson (eds), Difficile
justice: Dans la trace d'Emmanuel Levinas.
[13] Cf. trad. Pergentino Pivatto et al. De Deus que vem à idéia. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 87. Doravante citada após DVI.
[14] L. C. Susin, O Homem
Messiânico: Uma Introdução ao Pensamento de Emmanuel Levinas. Porto Alegre
e Petrópolis: EST/Vozes, 1984, p. 248 n. 186.
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