A Juridificação da Liberdade: Os
Direitos Humanos
No Processo da Globalização
Hans-Georg Flickinger *
Universität Kassel
Como o título deixa transparecer, as
considerações a seguir alimentam-se de um certo ceticismo quanto ao papel
atribuído aos direitos humanos na defesa da legitimidade do processo de
globalização, hoje vivido em termos econômicos, sociais e culturais. A dinâmica
desenfreada, com a qual os ideais da razão instrumental (Horkheimer, Adorno),
nascidos no Ocidente, vêem-se espalhados pelo mundo inteiro, impõe-se sem
preocupação maior com a diversidade de tradições, costumes ou ideologias que
marcam as diferentes regiões. Mais ainda, parece que inúmeras vezes a mensagem
dos direitos humanos faz-se ouvir pela força, embora insistindo na suposta
missão de levar a liberdade a todos os que dela ainda não desfrutam. Entre
vários indicadores, vale destacar uns poucos exemplos para tornar plausível esta
minha suspeita. Lembro a atitude da União Européia ao vincular, no seu
discurso político, a futura integração da Turquia, um país predominantemente
muçulmano, à observação, por esta, do
respeito dos direitos humanos; ou a legitimação da invasão do Iraque pelos
Aliados que, sobrepondo-se à ONU, alegam restituir e defender os direitos
humanos da população daquela região; ou o condicionamento de meios financeiros
pelos órgãos internacionais para a reestruturação do Afganistão, à
implementação de um regime liberal-democrático. O próprio Brasil vem sofrendo, ao longo das últimas décadas, pressões neste sentido. Em todos estes casos, o
argumento em favor da implementação dos direitos humanos vê-se, em parte,
instrumentalizado para fins político-econômicos, criando-se assim a impressão
de um jogo hipócrita por parte daqueles que se consideram os defensores
ferrenhos dos direitos humanos, embora violando-os, muitas vezes, na própria
casa.[i]
Trata-se aí da tentativa de implementar, em termos globais, uma concepção de
democracia e de direitos humanos que, filha do mundo secularizado e praticada
nos Estados Unidos como “religião civil”, visa garantir, de modo abrangente, a
identificação dos direitos humanos com a base iluminista dos direitos liberais.
Pois, de fato, a discussão acerca da garantia de direitos humanos tem suas
raízes histórico-ideológicas no princípio da autonomia da razão humana.
Poder-se-ia falar também da tarefa de fazer do dever para com a liberdade
humana o princípio último da sociabilidade moderna; princípio este ao qual o
mundo desencantado (Max Weber) deveria submeter-se.
A meu ver, a identificação dos direitos humanos com os
direitos liberais esconde no bojo uma lógica responsável pelo mal-estar que se
sente frente ao atual cenário político-cultural. Por isso mesmo, escolhi como
enfoque de meus raciocínios, os riscos que me parecem acompanhar a visão
liberal dos direitos humanos. Tendo esta abordagem em vista, não me colocarei
a tarefa de discutir as referidas tendências político-culturais que, na minha
opinião, não podem ser entendidas sem referência à tradição ocidental-cristã e
seus impulsos missionários.[ii]
Quero tomá-las apenas como motivo para perguntar se a fundamentação filosófica
dos direitos humanos e, antes de tudo, sua legitimação argumentativa nos termos
liberais, podem dar-nos uma pista para a melhor compreensão das experiências
atualmente vividas. Perguntar-me-ei, portanto, se a gênese dos direitos humanos
na tradição iluminista oferece-nos aspectos importantes para explicar o perigo
de sua susceptibilidade ao poder político econômico.
Antes de entrar na temática
propriamente dita, devo esclarecer o uso que aqui faço do conceito
‘juridificação’. Com este conceito, quero apontar o fato de a sociedade liberal
moderna orgulhar-se da transformação abrangente das relações sociais e
institucionais em relações juridicamente determinadas, a fim de garantir o
reconhecimento da liberdade de todos seus membros. De fato, o status de membro
da sociedade define-se aí pela qualificação do indivíduo como ‘pessoa de
direito’, ou seja, por sua determinação jurídica. “O imperativo do direito é
portanto: sê uma pessoa e respeita. os outros como pessoas.”[iii]
Com esta indicação, Hegel expressa a base mais geral possível do reconhecimento
do ser social, dentro da visão liberal. Pois desde o nascimento até a morte, o
indivíduo é visto e interpretado a partir da perspectiva de sua existência
jurídica, mesmo sem ter consciência disto. Em outras palavras, a pertença à
sociedade vê-se vinculada à pertença ao sistema jurídico. Pergunta-se,
portanto, se esta transformação da pessoa humana em pessoa de direito, isto é, sua juridificação, modificaria sua
avaliação social. Colocada em forma de pergunta: quais as conseqüências
oriundas da determinação jurídico-liberal do homem?
Para dar uma resposta a essa
pergunta, aproveitar-me-ei de uma diferenciação sistemática, feita por Hegel na
obra acima citada. Aí, nos primeiros parágrafos, ele lembra a diferença entre a
‘Ciência do direito’ e a ‘Ciência filosófica do direito’. A primeira trataria
da sistematização do múltiplo dos fenômenos jurídicos --Direito civil, Direito
penal, etc-- ao passo que a segunda deveria organizar o mesmo material segundo
o desdobramento da idéia subjacente ao auto-entendimento da moderna sociedade
liberal; a saber, a idéia da liberdade como princípio da organização da
comunidade na sua íntegra. À ciência filosófica do direito caberia, portanto, a
exposição daquela racionalidade interna que se deve à concretização da
liberdade de todos. É nessas trilhas que espero poder descobrir, ainda que pelo
avesso, os motivos responsáveis pelo significado específico dos direitos
humanos e sua fundamentação liberal.
1.
A preocupação com os direitos
fundamentais na filosofia contemporânea vem de longa data. Na medida em que a
legitimação dos direitos do homem não mais consegue encontrar nem em Deus nem
na natureza uma firme âncora argumentativa, observa-se uma virada importante
nas tentativas de emprestar base racional ao status destes direitos. Às vezes,
sua dedução dá-se a partir de um suposto dever
das pessoas no sentido de reconhecer seus contemporâneos como parceiros do
convívio, possibilitando-se assim sua sociabilidade. Tanto Hugo Grotius quanto
Samuel Pufendorf devem ser mencionados como representantes desta corrente.
“Pacta sunt servanda”, eis o dever
primordial que subjaz à articulação dos direitos subjetivos, legitimando-os.
Acompanhando esta primeira concepção secularizada do direito moderno,
encontra-se a argumentaçao inversa que
em vez de deduzir os direitos fundamentais a partir de um dever
originário, atribui a função de
fundamento último a supostos direitos
naturais, visando assim sustentar a implementação da liberdade humana.
Nisso convergem as posições em si diferenciadas do jusnaturalismo.
Por mais aceitáveis que possam
parecer ao primeiro olhar, todas estas teorias sofrem de um defeito grave no
que diz respeito à lógica de suas deduções. Recentemente, Walter Jaeschke referiu-se
às falhas de todas as posições que procuram defender os direitos humanos
concebidos como algo já concedido desde sempre ao homem. Segundo ele, a maioria
esmagadora destes filósofos teria de pressupor os direitos fundamentais
enquanto condição de possibilidade para a garantia do livre agir do homem, ao
invés de fundamentar a sociabilidade moderna como conseqüência das decisões originalmente livres do ser humano.[iv]
Se o pensamento liberal quiser de fato tomar-se a sério, não deverá permitir o
condicionamento da própria liberdade a partir da pressuposição de direitos
naturais. Ao contrário, a fim de ser evitado o círculo argumentativo, a idéia
da liberdade terá de preceder a todas as determinações jurídicas.
Após rever, no ensaio acima
mencionado, as posições mais marcantes da fundamentação dos direitos humanos no
início dos tempos modernos, W. Jaeschke vê-se levado a uma conclusão
surpreendente, ainda que, ao que tudo indica, correta. Pois, segundo ele, teria
sido a argumentação de Th.Hobbes a única capaz de deduzir os direitos
fundamentais do homem a partir de um estado de liberdade anterior ao direito,
evitando, deste modo, o risco de cometer uma petição de princípio; petição esta que consistiria na pressuposição de um direito natural legitimador da fundamentação
dos direitos humanos enquanto direitos intransponíveis. Pois seria inadmissível
fazer depender os direitos humanos, enquanto direitos básicos, de um direito
que os precedesse. Hobbes, ele mesmo, teria desenvolvido uma argumentação
coerente ao recorrer à hipótese de um estado de natureza, no qual o homem
seguiria apenas seus impulsos de autoconservação e felicidade próprias, tomando
os próprios contemporâneos como mero meio à garantia de sua sobrevivência e de
seu bem-estar. Ora, um tal estado de natureza, uma vez aceito como meta
universal do agir e levado às suas últimas consequências, bloquearia qualquer
convívio social. Um beco sem saída, portanto, que motivaria Th. Hobbes a optar
por uma solução pragmática. Ao invés de os homens tentarem aniquilar seus
contemporâneos fazendo deles meros instrumentos na busca de objetivos pessoais,
o filósofo argumentaria em favor de um contrato
originário, através do qual cada indivíduo reconheceria aos demais o
direito à integridade pessoal. O direito nasceria assim de um consentimento
contratual baseado na livre consciência de cada um, enquanto única forma
racional de garantir a solução do impasse. O contrato originário serviria,
portanto, a Hobbes enquanto condição da sociabilidade.
A hipótese de um contrato
originário, porém, só faz sentido se se pressupõe a facticidade da liberdade do
homem, antes de ele assumir o compromisso de reconhecer os direitos básicos dos
demais. A idéia
do contrato não pode ser pensada
sem a pressuposição da liberdade dos contratantes, no sentido de estes terem a
capacidade de escolher a alternativa melhor. Isto significa que, antes de se
falar em direitos humanos, é necessário pensar-se nos fatores que os
condicionam e que, por isso mesmo, não podem depender de um direito natural originário.
O que leva W. Jaeschke a concluir que a convicção hobbesiana basear-se-ia na
hipótese de uma liberdade existencial do ser humano, cuja implementação poderia
vir a ser concretizada através do sistema do direito. Em outras palavras,
segundo Hobbes, os direitos humanos seriam produto de uma liberdade existencial
incondicionada, sendo que sua proposta aproxima-se da afirmação posteriormente
feita por Kant, ao falar do “fato da razão” autônoma. Fato este que, não sendo
pressuposto, impedir-nos-ia de pensar a sociabilidade moderna dentro da
perspectiva da concepção iluminista. Com tais raciocínios, continua W.
Jaeschke, Hobbes se estaria opondo à falange das teorias comprometidas com as
idéias jusnaturalistas, as quais -- como é o caso de Grotius, Pufendorf ou J.
Locke-- defendem um direito natural enquanto base legitimadora dos direitos
humanos.
Visto sob este ângulo, ao marcar a
diferença entre a liberdade existencial do homem e uma liberdade articulada
nos termos do direito liberal, Hobbes estaria apontando o fulcro principal no
debate atual sobre a fundamentação dos direitos humanos. Pois não há como se
pressupor direitos humanos como fato existencial; só pode haver o fato da
liberdade existencial a condicionar tais direitos. Uma vez aceito isso, pode
tampouco haver obrigação legal alguma para com a liberdade; há apenas, isto
sim, o dever para com a defesa de direitos
da liberdade. Por isto, aqueles que vêm instrumentalizando, hoje, os
direitos humanos com o objetivo de implantar a liberdade em nível global, não
somente correm o risco de defender apenas uma liberdade de antemão restrita à
lógica do direito liberal, mas de tornar-se também seus missionários fanáticos,
cegos frente à originária liberdade existencial do homem. Liberdade esta que
inclui, necessariamente, a decisão em favor de uma ou outra forma de
sociabilidade.
Na sua função de princípio, a
liberdade é indivisível e impede sua diferenciação segundo determinada lógica
de sociabilidade. Infelizmente, o cenário político hodierno oferece-nos vários
exemplos desta imposição unilateral de uma idéia determinada de liberdade,
desde logo engatada nos trilhos da visão liberal. Tais exemplos fazem-nos cada
vez mais pensar numa nova forma de imperialismo que, em nome dos direitos
humanos, quer obrigar o mundo a comprometer-se com uma liberdade meramente
juridificada, ou seja, demarcada pela lógica do direito liberal. E torna-se,
com isto, impossível fazer jus à liberdade existencial originária, defendida,
com razão, por Th. Hobbes.
2.
Os direitos fundamentais,
legitimáveis única e exclusivamente pelo pressuposto da liberdade factual do
homem, eis o ponto de partida que subjaz
às considerações que se seguem. Conseqüentemente, tanto o exercício da vontade
particular que se expressa no agir pessoal, quanto também as instituições
sociais e políticas, deveriam ter compromisso incondicional com este fio
condutor. Não me parece possível duvidar da conclusividade teórica deste
raciocínio. O fato de a tradição dominante do jusnaturalismo ter invertido essa
lógica de fundamentação contra todas as
evidências fez com que decorrências
marcantes daí proviessem.
Lembro, como primeiro exemplo, as
experiências com o desdobramento objetivo da programática liberal-burguesa. Inicialmente,
as reivindicações revolucionárias de
Meu segundo exemplo deve confirmar
a suspeita acima referida. Trata se do debate que gira em torno da relação
mútua entre Estado de Direito e Estado de Bem-estar social.[vi]
Sem ater-me aos detalhes, vale lembrar que o crescimento espantoso das crises
sociais, vividas sobretudo em decorrência das duas Guerras Mundiais do século
XX, não conseguia respostas suficientes através dos instrumentos então
disponíveis e vinculados ao modelo de Seguro Social implantado por Bismarck,
nas últimas décadas do século XIX. Pois a internalização do manejo das crises
na sociedade civil, prevista por este modelo, atingia apenas os indivíduos
segurados quanto aos riscos oriundos do processo de trabalho, deixando
inteiramente desprotegidos aqueles que sofriam dos efeitos da Guerra. Ora,
contra os riscos da guerra não havia cobertura pelo Seguro Social. Aí, o
próprio Estado liberal via-se forçado a assumir parte da responsabilidade
social criando, em seguida, uma série de medidas com o objetivo de dar
condições básicas de sobrevivência aos menos favorecidos e de garantir, assim,
a paz social. Dá prova disto a Ajuda Social, à qual cada membro da sociedade
tem direito, tendo-se em vista sua incapacidade objetiva de conseguir
recursos de outras fontes. Porém, este engajamento do Estado, independentemente
de contribuições anteriores por parte dos beneficiados, foi visto, pelos
liberais mais ferrenhos, como intromissão inaceitável nos assuntos da sociedade
civil; intromissão essa considerada uma ameaça dos pilares do Estado liberal de
Direito. Os críticos insistiam no respeito incondicionado da supremacia do
direito de liberdade e igualdade, sem preocupar-se com suas consequências injustas
na esfera da sociabilidade material-econômica e cultural; ao passo que os que
combatiam em favor da idéia de uma justiça social passavam a defender a
validade suprema do princípio de uma sociedade solidária, com ênfase na justiça
distributiva da riqueza produzida em comum. Cada uma das duas correntes
considerava-se, em última instância, representante dos direitos humanos. E
trazem ambas, por certo, argumentos legítimos a uma discussao que não chega,
até hoje, a um resultado unívoco.
Ao que tudo indica, as experiências recentes
na maioria dos Estados liberais do Ocidente evidenciam a complementariedade
constitutiva entre a concepção do Estado de Direito e aquela do Estado de
Bem-estar social. Pois, na medida em que o Estado liberal de Direito vê a lealdade
da população para com seu próprio sistema e, com isso, a paz social ameaçada,
ele se vê obrigado a intervir na área social, no intuito de amenizar o
descontentamento com sua lógica de ação. Enquanto, porém, o Estado de Direito
não considerar essa lealdade colocada em risco, ele não hesitará em reduzir
suas atividades sociais. Caso este, no qual parece nos encontrarmos atualmente.[vii]
Frente a este cenário, confirma-se
que a solidariedade como possível fio para tecer a sociedade vê-se sacrificada
no altar da liberdade e da igualdade, tal como se vêem articuladas pelo
espírito do Direito liberal. Repito, portanto, minha dúvida: será que a
eliminação do princípio de solidariedade e, de justiça social deve-se ao fato
de aos direitos humanos ter sido atribuída a tarefa de condicionar a
implementação da liberdade? Como se explica esta lógica que denomino a juridificação da liberdade?
3.
Meu ceticismo referente aos
direitos humanos como instrumento na luta pelo desdobramento da visão liberal
em nível mundial, alimenta-se de considerações encontradas na reconstrução do
sistema do direito moderno, apresentada por G.W.F. Hegel.[viii]
Uma leitura sua ‘pelo avesso’ dar-nos-á argumentos fortes para esclarecer a
pretensão de fazer da liberdade o princípio universal da sociabilidade, e suas
conseqüências para a idéia de uma sociedade solidária.
Na sua ‘Filosofia do Direito’
(FdD), Hegel revela as condições sob as quais a liberdade chega a impor-se à
sociedade, tornando-se o fio condutor exclusivo de sua textura. E o filósofo atribui
ao sistema do direito a função de implantar “o reino da liberdade objetivada.”
(§ 4 FdD) No centro de sua atenção está portanto o asseguramento do
reconhecimento abrangente da livre vontade humana em todos os contextos
sociais, a saber, tanto naqueles em que se determinam as relações
interpessoais, quanto naqueles institucionais da sociedade civil e do espaço
político. No entanto, enquanto impulso exclusivo da estruturação da comunidade,
o reconhecimento abrangente da vontade livre deixa-se delimitar no seu alcance
pela validade do próprio direito já que, garantida pelos termos jurídicos, a
liberdade alcança facilmente seus objetivos sem preocupação com outros aspectos.
Aspectos estes que, por sua vez, não traduzidos em termos jurídicos, escapam
da consideração. Esta minha afirmação legitima-se através da própria exposição
hegeliana da objetivação da idéia de liberdade pelo direito. Explico.
Na dita exposição de Hegel, o
Direito civil, a primeira parte da
Filosofia do Direito, organiza as relações
recíprocas entre as pessoas à base de consensos entre os parceiros. Trata-se
do que os juristas denominam “o direito de relações voluntárias” (Recht der Willensverhältnisse, no Código
Civil alemão). Objeto do Direito civil, tal direito é, antes de tudo, a
proteção do livre exercício das vontades particulares na negociação
interpessoal, sendo que seu instrumento preferido é o contrato civil. Essa
tarefa de garantir o exercício livre da vontade não inclui, porém, a
preocupação com o possível desequilíbrio material ou social que daí possa
resultar. Só aquele que quiser impedir ou limitar a liberdade do outro terá de
contar com sanções legais, já que somente a articulação livre das intenções e
dos interesses egoísticos vê-se aí considerada. Vantagens individuais que
motivem os negociantes não são levadas em conta por parte das regras jurídicas.
Estas últimas fixam-se única e exclusivamente no objetivo de dar garantia à
livre expressão da vontade.
Algo semelhante vale também em
relação às exigências morais que o Direito liberal impõe, ao que, na segunda
parte de sua obra, Hegel designa enquanto “o direito da vontade subjetiva”.
Também aí, o sistema do Direito liberal contenta-se meramente com o cumprimento
dos deveres legais, fazendo deste o único critério da aceitabilidade moral do
agir das pessoas. E o faz independentemente das conseqüências materiais,
inúmeras vezes “injustas” da perspectiva da idéia da justiça social. Em outra
oportunidade, caraterizei esta experiência da delimitação jurídica dos deveres
e das responsabilidades enquanto uma “lógica da desresponsabilização” ou
“legalidade da moral.”[ix]
A falta de respaldo à idéia da justiça social
ou seja, à velha opção pela fraternidade e a solidariedade evidencia-se, mais uma vez, dentro do sistema
liberal-burguês no campo da organização jurídica da Sociedade civil, vendo-se
qualificado por Hegel como “Estado da necessidade e do entendimento.” (§ 183
FdD) Segundo o próprio Hegel, a Sociedade civil, na sua essência dedicada à
reprodução econômica e sociocultural da comunidade, “oferece em suas oposições
e complica ções. ..o espectáculo da devassidão bem como o da corrupção e
miséria.” § 185 FdD) E no § 195 FdD, sublinhando a incapacidade da Sociedade
civil de dar voz ao princípio da solidariedade, afirma: “Daí provém o luxo que
é, ao mesmo tempo, um aumento infinito da dependência e da miséria. O
espectáculo descrito por Hegel, além de apontar tais aspectos enquanto
intrínsecos à Sociedade civil, denuncia a sua origem na própria construção
jurídica que a sustenta. Pois nela, os indivíduos só buscam seu lugar de
enredamento social no intúito de garantir sua subsistência material, sendo que
sua fortuna depende muito mais das condições econômicas do mercado de
trabalho, do que de sua habilidade e engajamento individuais. Nem mesmo o
máximo desempenho pessoal pode garantir o sucesso de alguem nesse mercado. Do
que nos dá prova o crescimento também da força de trabalho qualificada sem
emprego, em tempos de recessão ou de racionalização tecnológica da produção.
Como se trata de um sistema em si
coerente, não pode surpreender que os efeitos problemáticos da juridificação da
liberdade encontrem-se também no campo do agir do Estado. Segundo a exposição
hegeliana, a eticidade, alvo principal do Estado liberal de Direito, baseia-se
na mesma relação já caraterizada entre a liberdade como princípio da
sociabilidade, e a idéia da justiça social. Pois é justamente o fato de as
instituições jurídicas da Sociedade civil e do Estado de Direito renunciarem a
intervir na estrutura material do relacionamento social, que garante a
manifestação livre do homem. O Estado, diz Hegel, tem “a sua força na
unidade do seu último fim universal e dos interesses particulares do indivíduo;
esta unidade exprimese em terem aqueles domínios deveres para com o Estado na
medida em que também têm direitos.” (§ 261 FdD) Fazendo esta referência
explícita ao § 155 FdD, Hegel aponta ao verdadeiro mistério da ética do Estado
liberal. Pois esta delimitação recíproca de direitos e deveres exige a
compatibilização entre o egoísmo particular e o bem comum. É daí que nasce a
lógica caraterística do Estado liberal de Direito. A saber, a condição
suficiente da legitimidade das decisões político-institucionais nada mais é do
que aceitação das regras legalmente instauradas. Com isso, o Estado ele mesmo
vê-se em concordância com o princípio da liberdade geral a ser por ele
assegurado. O que significa que o sentido enfático da eticidade, concretizado
na idéia do bem comum e de valores reconhecidos, não encontra mais espaço no
discurso político. Ou, o que é o mesmo, perde-se o espaço autêntico do
político oportunizando a negociata de interesses particulares disfarçados de
interesses comuns.
Como vemos, estes poucos indícios,
extraídos a partir de implicações críticas da Filosofia do Direito de Hegel,
dão-nos a entender que a juridificação da liberdade, desencadeada pela lógica
do Direito liberal, leva à subtração da pergunta pela solidariedade e justiça
social. A força organizadora do direito passa a restringir-se obviamente à
garantia da livre expressão da vontade, sem operar nas condições materiais e
valorativas de suas manifestações. Foi aliás Karl Marx, quem no ensaio de 1843 sobre “A Questão Judaica” daí concluiu: “O direito humano da liberdade
não se fundamenta no entrelaçamento do homem com o homem senão, antes, da
segregação do homem do homem. Trata-se do direito dessa segregação, do Direito
do indivíduo limitado, reduzido a si mesmo.”[x]
E acrescentou: “A aplicação prática do direito humano da liberdade é o direito
humano da propriedade privada.”(ibidem) Marx retomava, assim, o fio condutor
que, ao avesso da argumentação de Hegel, encontrava-se inscrito na ordem jurídico-liberal.
Percebia que a construção jurídica da liberdade, tal como o fazia o sistema do
direito moderno, haveria de levá-lo, simultaneamente, à própria
desresponsabilização quanto às condições concreto-materiais da sociabilidade
vigente. Hoje sabemos que a garantia universal da liberdade, tal como
objetivada pela lógica jurídica, leva ao mesmo tempo ao desdobramento de uma
racionalidade coisificadora, tal como a que se inscreve no sistema da economia
capitalista. Assim sendo, temos que a juridificação da liberdade e a inclusão
do homem no mercado coisificador representam os dois lados da mesma moeda.
Esta a chave de compreensão para aquele conluio aparentemente estranho entre a
ordem liberal, condicionada pelo direito, e a dinâmica da economia
capitalista. Conluio este já detectado por Max Weber, em seu esboço de 1920, sob
o título “A Ética do Protestantismo e o Espírito do Capitalismo.”[xi]
4.
Minhas considerações partiram da
hipótese de que seria possível identificarmos, no debate sobre a fundamentação
dos direitos humanos, alguns argumentos capazes de fazer entender sua
susceptibilidade ao poder e , por conseguinte, ao risco de sua
instrumentalização. Um olhar rápido, lançado às falhas do jusnaturalismo e seus
efeitos, por mim denominados a ‘juridificação da liberdade’, revelaria a
surpreendente falta de consciência quanto à fundamentação correta dos direitos
humanos. Como se viu, estes só podem ser legitimados a partir do reconhecimento
da liberdade enquanto condição existencial do ser humano. Impossível,
portanto, fazer dos direitos humanos o meio à implementação da liberdade. Quem
quiser recalcar esta sua verdadeira proveniência na ordem da razao ligará, de
antemão, a idéia da liberdade àquele marco infeliz, delimitado pela lógica
jurídica. E perderá de vista a relevância do condicionamento material,
decisivo para a construção de uma sociedade justa. Foi a Filosofia do Direito
de Hegel que nos levou a esta conclusão devido a ter atribuído ao sistema do
direito, enquanto finalidade última, a tarefa de garantir a livre expressão da
vontade humana. Tarefa esta que se cumpre na esfera social, ou seja, na
construção voluntária das relações, esquecendo-se de todo o campo dominado pela
lógica econômica, isto é, pela lógica do cálculo quantificador tal como ocorre
no espaço econômico dirigido pelas necessidades do capital. Esta uma das
conseqüências desastrosas da concepção liberal do direito que, ao invés de
fazer da liberdade existencial do homem o seu pressuposto próprio, condiciona-a
ao seu legislar. Vistos nas trilhas do jusnaturalismo e assim destituídos de
seu fundamento verdadeiro, os direitos humanos tornam-se facilmente
manipuláveis na reivindicação de uma ordem liberal, que abre caminho à
imposição juridicamente incontrolável de interesses e poderes legitimados na
(ir)razão econômica vigente.
O discurso sobre os direitos humanos, que hoje
subjaz à política internacional e à argumentação legitimadora dos países mais
avançados frente ao resto do mundo, aproveita-se destas implicações da
juridificação da liberdade. Ao reproduzir neles os equívocos de sua concepção jusnaturalista,
este discurso permite, ao menos de modo implícito, o desdobramento global da
lógica econômica do capital. E o projeto da implementação dos direitos
humanos, em nível mundial, provoca uma instrumentalização em nome do
reconhecimento de uma liberdade que, meramente juridificada, recebe, ainda
assim, o nome de ‘liberdade’. Difícil, por isso, desacreditar o discurso que o
utiliza com tanta ênfase. Desejo, por isso mesmo, insistir em que os riscos que
acompanham a juridificação da liberdade, no sentido acima exposto, deveriam
levar-nos a repensar aquela função de fundamento e instância legitimadora que
os direitos humanos adquirem no processo da globa1ização política, econômica e
cultural. Pois, emersa na tradição iluminista ocidental, a idéia de liberdade
remete, originalmente, à instância existencial do homem e de sua razão.
Instância esta, na qual a liberdade humana de optar também pelo sistema social
e constitucional que deseje implantar como modelo de sua sociabilidade está
desde sempre incluída. Isto vale ainda mais para o campo cultural e religioso,
que deveria incentivar um máximo de tolerância mútua, em vez de praticar
atividades missionárias. Em consequência disso, o processo de globalização não
legitima fazer da liberdade juridificada, tal como esta se vem desdobrando nas
trilhas do liberalismo, o modelo supremo a ser universalmente imposto. Ao
contrário, seria necessário transformá-lo num processo de conscientização
quanto a esta instância existencial da liberdade humana, aquilo a que
W.Jaeschke chama “a facticidade da liberdade humana”.
O alvo preferencial dos esforços
culturais e políticos deveria ser justamente essa formação de uma consciência
livre, bem antes de se perguntar pelo sistema econômicosocial mais adequado a
ser escolhido pelas comunidades. Vale lembrar, neste contexto, a concepção da
Política defendida por Platão. Sua ‘Politéia’ vive do saber da phrónesis, isto
é, de um saber conquistado pela experiência prática que subjaz e antecede
qualquer institucionalização de direitos e deveres. A meu ver, cabe lembrar os
princípios desta tradição à política de globalização a fim de evitar os erros
dominantes no discurso missionário dos direitos humanos juridificados.
NOTAS
[i] Os relatórios anuais de Amnesty International dão inúmeras provas deste fato.
[ii] Ver,
entre outros, a caraterização encontrada em S.P.Huntington, The clash of civilizations and the remaking
of the world order (New York, 1996).
[iii] G.W.F.Hegel, Filosofia do Direito, § 36. Embora mal feita, refiro-me à tradução de Orlando Vitorino, na edição dos Guimarães Editores, Lisboa (3.edição 1986), por se tratar da tradução mais usada. Doravante, abreviada como FdD.
[iv] Ver Walter Jaeschke, "Zur Begründung der Menschenrechte in der frühen Neuzeit". In: Strukturen der Macht. Hrsg. Konrad Wegmann u.a. Münster, 2001.
[v] Compare H.-G. Flickinger, “Sete Teses acerca do Comunitarismo”, in Justiça e Política, org. Nythamar F.de Oliveira e Draiton G. de Souza (Porto Alegre: Edipucrs, 2003), p. 157.
[vi] Este debate tem sua origem nos anos 20, do século XX. Retomado depois da 2a Guerra Mundial na Alemanha destacam-se E.Forsthoff e W.Abendroth, enquanto representantes das duas correntes principais; o conflito culminaria, nos anos 70, na rivalidade entre as concepções defendidas por John Rawls e Robert Nozick.
[vii] Observa-se, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos e até no Brasil, a redução contínua dos recursos investidos na área social, desde os anos 80. Ver, por exemplo, Friedrich Ortmann, “Problemas de Institucionalização das Políticas Sociais na Alemanha atual”, in Entre Caridade, Solidariedade e Cidadania, org. H.-G.Flickinger (Edipucrs, Porto Alegre 2000), p. 98.
[viii] Refiro-me, em parte, a considerações por mim
publicadas
[ix] Idem, p. 39.
[x] Karl Marx, “Manuscritos econômico-filosóficos” (Lisboa: Edições 70, 1993), p. 56.
[xi] Entretanto, M.Weber não conseguiu, ainda, revelar a
complementariedade entre as lógicas do direito liberal e a economia
capitalista.
VOLTAR AO WEBSITE “FENOMENOLOGIA DA JUSTIÇA” / NYTHAMAR DE OLIVEIRA