VERDADE, PODER, ÉTICA:

FOUCAULT E A GENEALOGIA DA MODERNIDADE *


 

Nythamar de Oliveira

 

We must try to trace the genealogy, not so much of the notion of modernity, as of modernity as a question. (M. Foucault, “The Art of Telling the Truth”)

 

1 - A modernidade em questão

Quando Jean-Paul Sartre publicou, em 1960, um ensaio prefacial para a sua polêmica Crítica da Razão Dialética[1], a escolha do título, Question de Méthode, traduzia mais do que um interesse pessoal ou uma estratégia do existencialismo à la mode. Com efeito, vinte anos depois, um dos maiores rivais de Sartre, Michel Foucault, contribuía para um debate sobre os sistemas penitenciários da França com uma discussão estrategicamente intitulada “Questions de Méthode[2]. “Questões”, no plural, não apenas para caracterizar os diferentes níveis metodológicos (arqueológico, genealógico, analítico-interpretativo) da obra foucaultiana, mas ainda para distinguir suas análises multiformes e perspectivistas do projeto sartriano que visava uma única categoria histórica capaz de unificar indivíduos a partir de um interesse comum estrutural, o campo do “prático-inerte”. Apesar de todas as divergências conceituais, tanto Sartre quanto Foucault situam a questão do método no centro de suas investigações filosóficas sobre o conhecimento e a natureza humana. Foucault certamente não desenvolveu nenhum método no sentido de uma mathesis universalis que pudesse ser aplicada da mesma forma a domínios diferentes, na medida em que cada pesquisa histórico-política configurava objetos peculiares. Se Foucault rechaça os prolegômenos sartrianos a toda antropologia futura, suas releituras de Kant e Nietzsche o conduzem a reformular uma “história da verdade”, baseada nos modos de autoconstituição da subjetividade moderna. E é somente neste sentido preciso, de micro-análises locais que se desenvolvem de maneira imprevisível, que Foucault termina por divisar “métodos” em diferentes domínios de suas inacabadas investigações sobre o saber, o poder e a subjetivação. É assim que em Les mots et les choses (1966) Foucault critica tanto a transparêcia do sujeito sartriano quanto a subjetividade transcendental da fenomenologia husserliana num inventário da modernidade enquanto fenômeno epistêmico. Trata-se sobretudo de tecer uma análise discursiva das diferentes concepções de métodos usados na idade clássica, antes das “representações” serem substituídas pelo “homem” como episteme da filosofia moderna.

De resto, a recepção francesa da fenomenologia de Husserl e da analítica existencial de Heidegger constitui o pano-de-fundo comum para a elaboração de projetos originais como o existencialismo e a filosofia hermenêutica, em diálogo permanente com o estruturalismo e o marxismo dos anos 60. Para Foucault, que buscou incansavelmente distanciar-se de todas essas correntes, o problema do método não seria resolvido numa reformulação epistemológica do kantismo ou numa apropriação ontológica de Marx e Heidegger, pois tratava-se, acima de tudo, de rever toda a história de formações de saberes, nas relações entre sujeito e objeto. Mais tarde, às análises discursivas que caracterizam o seu projeto arqueológico, Foucault ainda acrescentaria o exame crítico das formações não-discursivas, institucionais, assim como uma hermenêutica do sujeito nas suas relações de subjetivação. Como o mostrou de maneira conclusiva o estudo de Gilles Deleuze sobre Foucault[3], o espaço foucaultiano é definido por três eixos (savoir, pouvoir, subjectivation) que determinam os campos não-homogêneos associados aos projetos originais da arqueologia, da genealogia e da analítica-hermenêutica.

Como “não há uma pré- e uma pós-arqueologia ou genealogia em Foucault”[4], os três eixos do saber, poder e subjetivação são articulados de maneira correlata, viabilizando uma concepção de genealogia que, por um lado, complementa o trabalho metodológico da arqueologia e, por outro lado, desvela esta mesma correlação através de uma complexa rede de significações inerentes a modos de subjetivação e seus regimes de verdade e poder.

Foucault adota a oposição clássico-moderno nos seus escritos arqueológicos, mas seu uso crítico desta periodização transparece em escritos posteriores, onde o sentido da oposição se refere mais a um modo de ser do que a um período propriamente dito da história. Assim, no famoso ensaio sobre a Aufklärung[5], Foucault retoma o conceito de “modernidade” adotado por Charles Baudelaire[6] para caracterizar o iluminismo kantiano como um ethos filosófico próprio à modernidade. A autoconsciência da ruptura com a tradição, a heroificação do presente, a auto-relação reflexiva e sua auto-realização através da arte fazem da modernidade um modo de ser adequado à “crítica permanente de nós mesmos”, capaz de romper com a “chantagem do Iluminismo”. Não se trata, portanto, de ser a favor ou contra a modernidade, nem mesmo de ser pós-moderno. Segundo Foucault, “devemos tentar delinear a genealogia, não tanto da noção de modernidade, mas da modernidade como questão”.[7] Se a aparente inflação da genealogia e do poder tem suscitado mal-entendidos e leituras distorcidas do propósito geral da obra foucaultiana, é precisamente porque a genealogia tem sido interpretada como uma panacéia metodológica ou como um princípio ontológico fundamental.

Assim, enquanto simpatizantes da pós-modernidade tendem a reduzi-la a um esteticismo apolítico de inspiração nietzschiana, os seus adversários a denunciam pela sua inconsistência metodológica na formulação quimérica de um historicismo transcendental.[8] O objetivo maior deste estudo é mostrar que uma genealogia da modernidade evita tais reducionismos na medida em que mantém a correlação metodológica dos três domínios aqui enfocados, sem nenhuma pretensão transcendental ou sistemática de universalização. Como o próprio Foucault já havia evocado, numa entrevista com Dreyfus e Rabinow, os três eixos possíveis na elaboração de uma interpretação genealógica-- verdade, poder e ética--, correspondem aos respectivos objetos de uma “ontologia histórica” na autoconstituição da subjetividade:

“Três domínios de genealogia são possíveis. Primeiro, uma ontologia histórica de nós mesmos com relação à verdade através da qual nos constituímos como sujeitos do conhecimento; segundo, uma ontologia histórica de nós mesmos com relação a um campo de poder através do qual nos constituímos como sujeitos agindo sobre outros; terceiro, uma ontologia histórica de nós mesmos com relação à ética, através da qual nos constituímos como agentes morais”.[9]

 

Do significado da expressão “uma ontologia histórica de nós mesmos” (an historical ontology of ourselves) dependerá nossa compreensão de toda a reflexão foucaultiana sobre verdade, poder e ética. A fim de elucidar tal significado, estamos assumindo que (1) a genealogia da subjetividade constitui o objeto por excelência das investigações foucaultianas; (2) a genealogia, segundo Foucault, não exclui a arqueologia e a hermenêutica, enquanto empreendimentos metódicos, mas as desvela como práticas de análise crítica em seus pressupostos históricos; (3) a genealogia da modernidade remete-nos à leitura crítica que Foucault nos oferece de Kant e Nietzsche. Este capítulo propõe-se mostrar como, através desses três domínios de genealogia, pode-se redefinir a modernidade como um projeto mais complexo do que um paradigma sistêmico de verdades, valores e normas associados à Aufklärung do idealismo alemão. Assim, Foucault não se oporia à qualificação da modernidade como “um projeto incompleto”, embora recuse-se a identificá-lo, como o faz Habermas, com um programa esclarecedor de emancipação. Afinal, verdade, valores e normas são constituídos como objetos epistêmicos, teorizados, precisamente porque são constitutivos de uma subjetividade ético-política. Esta tríplice problemática, que Habermas utiliza contra o projeto foucaultiano, longe de traduzir uma atitude anti-modernista ou antes de ser rotulada de pós-moderna, constitui na verdade a maior contribuição de Foucault para uma crítica permanente da modernidade.

 

2 - Genealogia, Arqueologia e Verdade

Segundo Gérard Lebrun, a arqueologia de Les mots et les choses logra mostrar como a fenomenologia fracassa na sua pretensa superação da dicotomia kantiana, na medida em que Husserl coloca Kant no mesmo solo racionalista do objetivismo próprio a Descartes, Leibniz e Galileu. Além de não ter feito justiça a Kant, a fenomenologia husserliana não foi capaz de compreender a natureza do discurso clássico e não pôde assim reconhecer o quanto devia a este mesmo projeto que pretendia superar.[10] Afinal, como assinala Lebrun, “o ponto essencial da Crítica é o advento de um sujeito que possui conhecimento a priori na proporção em que ele é privado de intuição intelectual; ou seja, na proporção em que ele é finito.”[11] Neste sentido, o sujeito cognoscente kantiano rompe com os paradigmas clássicos da concepção da verdade como adequação da coisa ao conhecimento (adaequatio rei ad intellectum) e vice-versa (intellectus ad rem), pelo menos numa perspectiva metafísica a ser dessubstanciada.[12] Foucault mostra ainda como a finitude do sujeito kantiano já preparava o terreno para a sua dissolução com o advento da morte de Deus, proclamada por Nietzsche. Foucault serve-se de uma concepção fenomenológica do “mundo da vida” (le vécu, aludindo à Lebenswelt husserliana) como pré-requisito do campo epistêmico e apropria-se da circularidade merleau-pontiana entre o transcendental e o empírico para reconstituir os limites da modernidade no seu pensamento representacional antes e depois da revolução kantiana. A estratégia foucaultiana visa, de resto, a dissolução do sujeito transcendental pela sua própria constituição teleológica e auto-consciente na história, e isto se dá pela divisa representação-antropologia que acompanha tentativas pós-kantianas de fundamentar o conhecimento a priori. Se a suspensão husserliana da tese do mundo não realiza as promessas de um método sem pressuposições, a dupla suspensão foucaultiana --i.e., a epoche da referência e do significado[13]--estabelece a historicidade de toda forma de cognição, ou seja, uma história da verdade. Trata-se, sem dúvida, de uma tentativa de radicalizar a fenomenologia a fim de preencher as lacunas deixadas pelas investidas estruturalistas contra o devir da natureza humana em sua subjetividade. Para Foucault, o estruturalismo emerge como a mais importante de todas as tentativas sistemáticas de “evacuar o conceito de evento”,[14] um caso extremo para a história. Anti-estruturalista polêmico e hermeneuta radical, Foucault procura reinterpretar a superação do idealismo alemão em diálogo permanente com a semiologia e a fenomenologia. O grande mérito de Husserl consiste, portanto, em haver denunciado as pretensões metodológicas do logicismo (Frege, Russell), do historicismo (Dilthey) e do psicologismo (Stuart Mill) na reformulação de uma filosofia como ciência rigorosa (Philosophie als strenge Wissenschaft). Todavia, segundo Foucault, a fenomenologia não conseguiria aplicar a redução transcendental (i.e., colocar entre parênteses a legitimidade de verdades supostamente livres de contexto) a seu próprio projeto de fundamentação, justamente por sua tácita pressuposição de uma “sujeição transcendental”.[15]

Ao enfocar questões de método a fim de estabelecer a historicidade de toda verdade, em particular de todo conhecimento objetivado pelas ciências humanas, a arqueologia foucaultiana se insere na mesma linha de combate da Methodenstreit opondo-se, por um lado, ao positivismo das ciências naturais (Naturwissenschaften) e, por outro lado, ao historicismo das ciências humanas (Geisteswissenschaften).[16] No prefácio à edição inglesa de As Palavras e as Coisas, Foucault assinala que a hipótese de que as “ciências empíricas” pudessem seguir regras de formação tão rigorosas como as que regem as chamadas “ciências exatas” seria um risco teórico-- que ele mesmo assumiria, sobretudo pelas constantes acusações de “estruturalismo”.[17] A alçada do projeto foucaultiano já visava então a um desmantelamento de métodos na história do pensamento moderno muito maior do que se poderia pensar. Segundo Foucault, é somente com a crítica à metafísica tradicional empreendida por Kant que se dá o verdadeiro limiar de nossa “modernidade”:

“Na época de Descartes ou de Leibniz, a transparência recíproca entre o saber e a filosofia era total, a ponto de a universalização do saber num pensamento filosófico não exigir um modo de reflexão específica. A partir de Kant, o problema é inteiramente diverso; o saber não pode mais desenvolver-se sobre o fundo unificado e unificador de uma mathêsis. Por um lado, coloca-se o problema das relações entre o campo formal e o campo transcendental (...) e, por outro lado, coloca-se o problema das relações entre o domínio da empiricidade e o fundamento transcendental do conhecimento”.[18]

 

Apesar de marcar uma ruptura importante com relação ao sistema epistêmico das similitudes que caracterizaram o Renascimento, a chamada “idade clássica” e o seu paradigma de ordenação racional (mathêsis universalis) por representações não passam de um prelúdio a uma descontinuidade maior e mais radical, operada no início do século XIX, “o limiar de uma modernidade de que ainda não saímos”. Segundo Foucault, o que distingue esta segunda ruptura epistêmica é precisamente o nascimento do “homem”, um saber que torna possível a emergência das ciências empíricas (biologia, economia, filologia) no século XIX e, subseqüentemente, das ciências humanas (psicologia, sociologia, antropologia). E é Kant quem, ao articular o “duplo empírico-transcendental”, tematiza a natureza humana enquanto sujeito e objeto do conhecimento, distinguindo o caráter empírico da natureza humana de sua finalidade racional, o animal rationabile do animal rationale, aquilo que o ser humano é (um ser dotado de razão) daquilo que deve ser (um ser racional, isto é, que age livremente segundo a razão).[19] A passagem de um modo de ser a um outro, determinando a própria historicidade, moralidade e teleologia de uma natureza humana em processo de auto-realização, é a marca maior da filosofia prática kantiana como dever-ser da liberdade, esboçando o projeto iluminista de autonomia e emancipação política que seria reapropriado por Hegel e pelo jovem Marx.[20]

Com efeito, a revolução copernicana realizada pela crítica kantiana à metafísica muda, de uma vez por todas, sua configuração ontológica, na medida em que Deus, a liberdade e a imortalidade não podem mais ser tomados como objetos da experiência possível, mas como idéias transcendentais. Kant não destrói a metafísica (nem a mesmo a teologia), apenas limita as suas pretensões, denunciando o dogma e restaurando a dimensão prática da razão pura. Em suas próprias palavras, tratava-se de “suprimir o saber [das Wissen aufheben] para obter lugar para a ”.[21] Como Foucault observa, a revolução antropocêntrica operada pela crítica kantiana define os limites da representação, daquilo que pode ser pensado pelo homem, do que pode ser conhecido segundo domínios diferenciados do conhecimento. Segundo Foucault, o que funda e justifica a relação kantiana entre as representações, todavia, não está no mesmo nível das representações mas deve ser formulado como “condições que definem sua forma universalmente válida”, visto que “somente juízos de experiência ou constatação empírica podem fundar-se sobre os conteúdos da representação”.[22] A distinção kantiana entre o conhecimento de fenômenos pela experiência sensível--o “realismo empírico” de sua filosofia-- e o entendimento que o viabiliza--o seu “idealismo transcendental” -- e por outro lado, a impossibilidade de alcançarmos a “coisa em si” enquanto noumenon, o inteligível, o supra-sensível, são as marcas de um dualismo intrínseco à concepção moderna de humanidade. Ora, de acordo com a arqueologia das ciências humanas, é precisamente a fundamentação transcendental formulada por Kant que torna possível a formação de novas positividades --ciências da vida, da linguagem e da economia-- e de novos domínios de empiricidade --as ciências empíricas. As análises discursivas empreendidas por Foucault durante a sua “primeira fase” diferem, todavia, dos trabalhos em epistemologia[23], filosofia da ciência e história das idéias realizados por seus contemporâneos. Ao contrário desses projetos metodológicos, que pressupõem uma racionalidade ou uma teleologia de inspiração kantiana, Foucault questiona não apenas uma suposta neutralidade de valores (Wertfreiheit) nas ciências mas ainda a unidade da cientificidade assim como dos seus processos históricos, deslocando a produção de saberes a um nível epistêmico nas suas formações discursivas, no espaço próprio do método arqueológico[24] --sendo que toda valoração e todo sentido discursivo é, desde sempre, um efeito histórico de relações de poder e de constituição. É neste sentido que Foucault enfatiza a impossibilidade de formularmos uma produção de saberes numa exterioridade do espaço discursivo. O não-discursivo requer, assim, uma mudança de enfoque, de um campo arqueológico para um campo genealógico. Segundo Foucault,

“Enquanto a arqueologia é o método próprio à análise da discursividade local, a genealogia é a tática que, a partir da discursividade local assim descrita, ativa os saberes libertos da sujeição que emergem desta discursividade”.[25]

 

Todo saber resulta de relações de poder, assim como o poder se manifesta através de jogos enunciativos. A correlação entre saber e poder é precisamente o que viabiliza práticas discursivas e práticas não-discursivas. A conjugação da arqueologia e da genealogia, em Foucault, é paralela à articulação entre crítica e genealogia, num mesmo regime de “veridição”. Assim como regimes de jurisdição definem configurações de poder em relações sociais, os dispositivos de poder em toda sociedade produzem regimes de verdade (veridiction). Segundo Foucault,

“Há uma batalha ‘pela verdade’, ou pelo menos ‘acerca da verdade’--...por verdade eu não compreendo ‘o conjunto de verdades que estão por serem descobertas e aceites’, mas ‘o conjunto de regras de acordo com as quais o verdadeiro e o falso são separados, e efeitos específicos de poder são atribuídos ao verdadeiro’.”[26]

 

Graças ao trabalho arqueológico, descobrimos que a crítica e a genealogia se encontram precisamente onde tem sido operado um deslocamento metodológico da metafísica, em particular na região atribuída à problematização da natureza humana --antropologia filosófica, humanismo, subjetividade, etc. Correlato e complementar desse espaço discursivo (onde se dá a produção de enunciados), um outro espaço definirá as formações não-discursivas (instituições, processos, eventos políticos, práticas econômicas, etc.) de maneira co-originária com o saber. Uma concepção da história da modernidade que não levasse em consideração ambos aspectos (i.e., discursivos e não-discursivos) das práticas econômicas, culturais e políticas das sociedades estudadas fatalmente incorreria numa forma de historicismo. Como Foucault observa, com referência ao método em história,

“Analisar ‘regimes de práticas’ significa analisar programas de conduta que apresentam tanto efeitos prescritivos com relação ao que deve ser feito (efeitos de ‘jurisdição’) quanto efeitos de codificação com relação ao que pode ser conhecido (efeitos de ‘veridição’)”.[27]

 

 

3 - Genealogia, história e poder

A discussão foucaultiana dos regimes de jurisdição e “veridição” renova, assim, a questão clássica opondo liberdade e necessidade no pensamento ocidental, em particular na articulação entre natureza humana e historicidade. De acordo com Foucault, a crítica kantiana possibilitou a emergência do homem moderno, baseado numa concepção de ética que segue o uso prático da razão pura. Todavia, o intento prático da metafísica da moral, paralela à metafísica da natureza, não deve ser confundido com o uso teorético da razão visto que sua fundamentação não se acha no nível natural dos fenômenos ou do ser humano (como na ética aristotélica, estóica ou epicurista) mas é o que dá origem à própria constitutição do homem como sujeito e agente moral. A ética universalizável do dever assinala, em Kant, a emergência das concepções modernas da liberdade, humanidade, personalidade, autonomia, autoconsciência e autodeterminação. Como ser dotado de razão que deve ser racional, o fim natural do homem é realizar na história (sociabilidade material, empírica) sua destinação moral (liberdade formal, transcendental). O “doublet empirico-transcendental” da antropologia kantiana só pode ser superado através de uma teleologia, segundo Foucault, mesmo que esta não possa ser reduzida a um finalismo metafísico ou a um utilitarismo moral. A concepção teleológica da história sustenta, portanto, o espaço de realização da nova metafísica, na medida em que o summum bonum kantiano exige um reino dos fins.[28] Por trás de uma concepção não-empírica de moralidade, o sentido teleológico de natureza humana termina por trair uma constituição do sujeito, histórica e socialmente condicionada. A liberdade, concebida por Kant como telos da natureza humana mostra-se inapta para assumir seu papel transcendental num universo onde reina a contingência. A filosofia do sujeito consciente, mais cedo ou mais tarde, descobriria “a noite da verdade”, a verdade de que não há afinal um “eu” verdadeiro, como origem transcendental de suas desventuras empíricas.[29] Seguindo uma diagnose nietzschiana, a crítica kantiana pode ser, assim, repensada como episteme da modernidade, inevitavelmente abalada pela crise da subjetividade e seus sistemas de verdade. Diga-se, de passagem, que nem Nietzsche nem Foucault questionam a verdade de jogos de linguagem e suas regras, tais como o modus ponens, ou deduzir ‘Q’ das premissas ‘P Q’ e ‘P’. Com efeito, a suspeita da verdade só emerge no horizonte da referencialidade e do sentido, a saber, o que é que ‘P’ significa. Visto que Nietzsche e Foucault recusam-se a reduzir a verdade a uma adaequatio ou a uma teoria de correspondência entre palavras e coisas, ou entre fatos e suas interpretações, a noção de “regimes de verdade” desempenha o papel sócio-político da “vontade de verdade”, na medida em que toda sociedade aceita certos tipos de discurso e os faz circular como verdadeiros. Mesmo assim, a historicidade da verdade ou o seu condicionamento a regimes de poder suscitará acusações de niilismo, irracionalismo e relativismo. De acordo com Habermas,

“Foucault não pode adequadamente lidar com problemas persistentes que aparecem em conexão com uma abordagem de interpretação do domínio objeto, uma negação auto-referencial de juízos de validade universal, e uma justificação normativa da crítica. As categorias do significado, validade, e valor são... eliminadas.”[30]

 

Como vemos, o problema da verdade nos remete aqui a outros problemas de teoria política, mas é sobretudo a questão ética da normatividade que preocupa Habermas. Foucault e Habermas concordam quanto à problemática conjunção da ética e da política na modernidade, mas divergem quanto à sua fundamentação. Como Habermas observa, a modernidade deve criar sua normatividade a partir de si mesma (sie muß ihre Normativität aus sich selber schöpfen).[31] Segundo Foucault, o Ocidente só conheceu duas formas de éticas, a saber, a antiga (estóica, epicurista), que se articulava com a ordem do mundo de onde eram deduzidas as leis da polis, e a moderna, a qual “não formula qualquer moral, na medida em que todo imperativo está alojado no interior do pensamento e de seu movimento para captar o impensado”.[32] Kant nos fornece, assim, o “ponto de juntura”, onde o sujeito moral se dá a si mesmo sua própria lei enquanto lei universal, enquanto Hegel inaugura a modernidade pela “cisão” (Entzweiung) da subjetividade nas suas incorporações da vida religiosa, do Estado e da sociedade. A crítica de Hegel a Kant constitui, com efeito, um importante componente da crítica de Habermas a Foucault --e ao “pós-estruturalismo francês” como um todo, de maneira análoga à apropriação neo-hegeliana das primeiras gerações da Escola de Frankfurt. Todavia, apesar de haver corretamente formulado seu criticismo em função dos três eixos genealógicos, Habermas nos oferece uma leitura caricata da genealogia nietzschiana e foucaultiana, omitindo toda uma dimensão crítica da história em Foucault e as conseqüências práticas da subjetividade moderna. Como Dominique Janicaud mostrou, “Habermas não compreendeu Nietzsche”[33] e na proporção em que ele aplica a mesma crítica do significado à verdade e ao valor, Habermas comete uma irreparável injustiça, citando Foucault apenas para descartá-lo pelas aporias da sua “teoria do poder”. Em primeiro lugar, devemos assinalar que o Nietzsche que interessa a Foucault não é exatamente o autor de Zarathustra mas do Nascimento da Tragédia, da Genealogia da Moral.[34] Também a apropriação foucaultiana da crítica de Kant parte da Aufklärung como um ideal regulador de racionalidade, preservando seu interesse de emancipação, ancorado não mais numa liberdade transcendental mas numa concepção empírica da liberdade, destranscendentalizada, a partir da complexa rede de contingências que determinam a subjetivação. Finalmente, como Foucault não buscou elaborar uma “teoria crítica”, Habermas erra ao sustentar que a “genealogia do saber” em Foucault está “fundamentada em uma teoria do poder”. À crítica de relativismo, presentismo e criptonormativismo, que trata das questões da verdade, do valor e da norma, respectivamente, Foucault já havia endereçado a concepção de um a priori histórico. Em As Palavras e as Coisas e na Arqueologia do Saber, a regularidade dos enunciados e as formações discursivas que eventualmente culminam em ciências e sistemas formalizados é analisada de modo a entender o “emaranhado de interpositividades” que caracterizam a episteme de uma época. Assim como o “enunciado”, unidade elementar do discurso, não pode ser confundido com um “princípio de individualização dos conjuntos significantes” (como as proposições elementares do Tractatus de Wittgenstein), o a priori histórico também não pode ser tomado num sentido lógico-transcendental:

“...quero designar um a priori que não seria condição de validade para juízos, mas condição de realidade para enunciados... A priori, não de verdades que poderiam nunca ser ditas, nem realmente apresentadas à experiência; mas de uma história determinada, já que é a das coisas efetivamente ditas...o a priori não escapa à historicidade: não constitui acima dos acontecimentos, e em um universo inalterável, uma estrutura intemporal; define-se como o conjunto das regras que caracterizam uma prática discursiva: ora, essas regras não se impõem do exterior aos elementos que elas correlacionam... O a priori das positividades não é somente o sistema de uma dispersão temporal; ele próprio é um conjunto transformável”.[35]

 

Como Foucault o indicou, o conceito de um a priori histórico é de inspiração tão nietzschiana quanto kantiana. Devemos, portanto, conjugar o binômio crítica-genealogia com o triângulo saber-poder-subjetivação de forma a abordar o problema do poder sem reduzi-lo a uma categoria ôntica, nem mesmo a um conceito ontológico, visto que relações de poder, como relações materiais de produção, sempre ocorrem na “eventalização” de práticas sociais. Se o interesse de Foucault por Kant manifestou-se desde cedo com a tradução da Antropologia kantiana para o francês e com a redação de uma tese sobre o mesmo tema[36], foi no filólogo Nietzsche que Foucault encontrou sua maior fonte de inspiração. A sua tese de doutoramento, segundo relato do próprio Foucault, foi escrita “sob o sol da grande pesquisa nietzschiana” (sous le soleil de la grande recherche nietzschéenne).[37] Na sua última entrevista, Foucault confessou que se toda a sua evolução filosófica fôra determinada por sua leitura de Heidegger, foi Nietzsche quem preponderou (c’est Nietzsche qui l’a emporté).[38] Em um de seus primeiros ensaios filosóficos publicados, Foucault examina as similitudes e divergências nos projetos de três grandes “mestres da suspeita”: “Nietzsche, Freud, Marx”.[39] O que une o trabalho de interpretação destes pensadores é a denúncia do que é tomado como real, a ser desmascarado, respectivamente, como falsa representação do ressentimento, da sublimação e da ideologia. Foi do esforço crítico destes hermeneutas que emergiram os conceitos, outrora ocultos, de vontade de poder, do inconsciente e da luta de classes. Por outro lado, enquanto Freud e Marx podem fornecer os elementos interpretativos para uma semiologia estruturalista (leia-se Lacan e Althusser), Nietzsche impossibilita a própria inversão de dominação entre significado e significante ao suspeitar “quem”, afinal, propõe a interpretação. Trata-se de uma hermenêutica radical, onde tudo é toujours déjà interpretação, tendo como princípio de interpretação o próprio intérprete que não cessa de questionar interpretações e a si mesmo. É a partir desta leitura nietzschiana da subjetividade moderna que Foucault vai desenvolver, mais tarde, uma hermenêutica do sujeito na sua analítica da subjetivação humana, isto é, na análise interpretativa das formações do sujeito.

O nome de Nietzsche figura em quase todos os escritos de Foucault e não foi por acaso que o conceito nietzschiano de “genealogia” foi escolhido pelo próprio Foucault para designar o torso metodológico da sua obra. A maneira como genealogia e crítica são articuladas por Foucault, em particular, na sua aula inaugural no Collège de France em 1970[40], revela a pertinência metodológica de tais análises, próprias ao contexto teórico de uma “História dos Sistemas de Pensamento”. A genealogia foucaultiana deve ser, portanto, compreendida como uma radicalização da Kritik empreendida por Kant e retomada pela filosofia da história de Hegel e do jovem Marx (Die Kritik der Kritik). Esta foi, com efeito, a leitura que Nietzsche fez do idealismo alemão, em relação à modernidade que deveria ser superada pelo Übermensch, ou seja, na concepção moderna e antropocêntrica de “humanidade” (Menschlichkeit).[41]

 

4 - Modernidade, hermenêutica e subjetivação

Desde a publicação de seus primeiros escritos sobre psicologia, psicanálise e psiquiatria,[42] Foucault já havia articulado a análise da formação de saberes com o espaço genealógico do poder e com a questão da subjetivação sem, no entanto, explicitar tais distinções metodológicas. Pouco antes de sua morte, Foucault afirmara que o propósito geral de sua obra não era “analisar fenômenos de poder nem elaborar os fundamentos de tal análise”, mas “criar uma história dos diferentes modos pelos quais, na nossa cultura, seres humanos são constituídos como sujeitos”.[43] Um de seus últimos cursos no Collège de France (1982) se intitula L’herméneutique du sujet” e todos os demais seminários assim como as suas últimas publicações e entrevistas versam sobre o tema do sujeito, da subjetivação, do souci de soi ou do assujetissemnt.[44] Embora a noção de hermenêutica pareça comprometer o trabalho de um autor que tem sido aclamado como pós-estruturalista e pós-hermenêutico, o próprio Foucault nunca endorsou nenhum destes rótulos --o mais problemático de todos, sem dúvida, seria o de “pós-moderno”, que Foucault enfaticamente renunciou.[45] Assim, o termo “hermenêutica” deve ser entendido aqui lato sensu, no sentido de uma “hermenêutica radical”, que busca romper com o método fenomenológico sem se perder nos labirintos aporéticos de uma “desconstrução” pós-heideggeriana.[46] A hermenêutica do sujeito trata do destino da natureza humana, uma vez que todos os recursos de fundamentação metafísica foram esgotados, seguindo a tresvaloração de todos os valores capazes de determinar o que faz do ser humano um ser racional, sociável e moral. “Destino” traduz aqui o termo grego daimon, que tem sido diversamente concebido como “felicidade” ou bem-estar humano (eudaimonia), fim terminal (Endzweck), e auto-superação (Selbstüberwindung) nas concepções aristotélica, kantiana e nietzschiana do ethos humano. O destino da natureza humana implica portanto uma “ontologia histórica de nós mesmos” como sujeitos de verdade, poder e ética nos modos de ser que caracterizam, por exemplo, o ethos moderno em oposição a seus homólogos antigos e medievais. Como não há uma essência humana comum a todos os seres humanos em épocas e contextos diferentes, a própria historicidade que os caracteriza como seres racionais e sociáveis é determinada por estes modos de constituição. Sem dúvida, o projeto de formular uma ética (ou uma filosofia política) sem aludir a uma concepção metafísica de natureza humana ou a um conceito fundamental de racionalidade parece solapar qualquer possibilidade de normatividade. Para Foucault, todavia, o rapport à soi é precisamente o que ele chama de ética, idêntica à normatividade que “determina como o indivíduo deve se constituir a si mesmo enquanto sujeito moral de suas próprias ações”.[47] Tanto o segundo quanto o terceiro volumes da História da Sexualidade exploram as techniques de soi e technologies de soi a fim de tematizar tais rapports de soi à soi, relações que devemos ter com nós mesmos na nossa autoconstituição como sujeitos. Valores e normas são portanto inerentes à própria subjetivação e suas correlações de saber e poder. É assim que no primeiro volume da História da Sexualidade, a vontade de saber institui o dispositivo de sexualidade como poder normativo, nas interrelações entre Estado e sociedade. O termo dispositif, em Foucault, engloba todas as complexas relações de poder e suas configurações de saber e subjetivação, de modo a compreender também a própria episteme, que deve ser entendida como “um dispositivo especificamente discursivo”.[48] Assim, em L’usage des plaisirs o dispositivo da sexualidade é examinado de forma a determinar como padrões de comportamento sexual se tornam objeto de interesse moral (“problematização moral”) no Cristianismo tardio, em oposição, por exemplo, às práticas sexuais na Grécia Antiga que definiam uma askesis e um estilo de liberdade. O cuidado de si (le souci de soi, a epimeleia heautou) define o campo de historicidade da ética foucaultiana, que ele mesmo denomina uma “estética da existência”.[49]

A questão da subjetividade moderna, isto é, “quem somos nós, modernos?” é uma questão filosófica que se articula na historicidade deste ser indeterminado, em constante superação de si mesmo. De resto, a modernidade é que torna historicamente possível a hermenêutica e a própria subjetividade, no sentido de se poder pensar reflexivamente, ou em termos kantianos e hegelianos, a possibilidade de autodeterminação e autoconsciência a partir de uma normatividade objetivada pelo sujeito. A subversão da metafísica da subjetividade e do controle do inteligível sobre o sensível é tematizada em Vigiar e Punir, onde o tema nietzschiano do corpo como agente na formação de sujeitos é enfocado de forma incisiva na análise das complexas relações de poder embricadas nos dispositivos de encarceramento da sociedade moderna. Como Deleuze mostrou num estudo seminal sobre o conceito foucaultiano de dispositif[50], não seria justo deduzir uma “teoria do poder” em Foucault, pois não há lugar para uma “vontade de verdade” constante, universal, na sua obra. Tudo que podemos obter são os dispositivos de saber, de poder e de subjetivação nas suas formações não-homogêneas de sistemas complexos, como variáveis que interagem entre si. Podemos analisar as configurações destes dispositivos --por exemplo, numa análise localizada das relações de poder. Através dos dispositivos de poder discernimos apenas linhas de variação, sem jamais sermos conduzidos a um foco originário. Foucault não propõe nenhuma solução alternativa às análises liberais e marxistas que ele critica, por exemplo, na genealogia de sistemas de poder judiciário, disciplinar e normalizante. Como François Ewald o mostrou, a norma em Foucault não é universalizável ou uma mera valoração padronizável que se opõe ao anormal, ao patológico, ao desvio. A norma é a referência institucionalizada para o grupo social que é objetivado como indivíduo, ela define uma comunicação sem origem e sem sujeito, ela é a própria medida que individualiza e viabiliza toda comparação, sem exterioridade.[51] Assim, Foucault não reduz a sociedade disciplinar a um internamento generalizado, mas, ao contrário, mostra como os sistemas de poder disciplinar são integrados numa sociedade punitiva, homogeneizando o espaço social. A normatividade é relativizada na medida em que determina e é determinada por complexos processos de subjetivação, visto que o indivíduo é toujours déjà normalizado.

Embora Habermas dê muitas razões convincentes para seu criticismo da ambigüidade sistemática em Foucault, isto é, entre o que ele interpreta como as reinvindicações críticas e meta-críticas da genealogia, Habermas comete uma injustiça contra o pensador francês ao impor-lhe um aparato teórico-crítico inadequado, sobretudo se atentarmos para o fato de que Foucault não procurou elaborar uma teoria social, como a Escola de Frankfurt. O chamado “debate” entre Habermas e Foucault, que na verdade nunca foi concretizado devido à morte prematura do segundo, oferece-nos sua maior contribuição teórica no duplo papel exercido pela concepção foucaultiana do poder, através da crítica ao ideal de uma síntese transcendental e aos pressupostos de uma ontologia empírica. Enquanto a pesquisa empírica do genealogista mantém os interesses documentários de um positiviste heureux nos seus arquivos escavados, Habermas condena a “sociologia funcionalista do conhecimento” em Foucault pela sua implícita concepção transcendental-historicista do poder.[52] Nas palavras do próprio Foucault, “as forças operando na história não são controladas pelo destino ou por mecanismos reguladores, mas resultam de conflitos aleatórios”.[53] A crítica nietzschiana de Kant emerge precisamente onde os limites da representação nos conduzem a uma visão moral do mundo, comprometendo o ímpeto antidogmático do seu projeto original, lá mesmo onde a razão prática negou a autoridade da transgressão teórica. Assim, o embate de Nietzsche contra a teleologia idealista é articulado em termos de uma tríplice crítica à religião, à moral e à filosofia. A genealogia da moral desmascara, portanto, a pretensão à verdade do homem religioso e do homem científico-filosófico, na medida em que o sentido e o valor de sua existência histórica são tacitamente pressupostos --segundo Nietzsche, numa valoração moral. Para Foucault, o maior legado da genealogia consiste na descrença em um passado glorioso e num futuro promissor, na medida em que a história do presente desmantela o historicismo e toda narrativa que se pretenda verdade histórica. Por isso mesmo, o destino da liberdade humana, segundo Foucault, estará sempre inserido em jogos estratégicos de saber e poder, sem que as especificidades empíricas de contextos localizados possam resultar em alguma forma de libertação universal. Neste sentido, podemos apenas falar de uma ética não-cognitivista, não-universalizável e contextualista em Foucault, onde as práticas de resistência e as lutas pela liberdade desautorizam qualquer pretensão humanista.

O que é, afinal, tão radical na hermenêutica do sujeito esboçada nos escritos foucauldianos? A aproximação teórica entre ética e política, no exterior da filosofia, radicaliza a hermenêutica na sua ruptura com o modo de filosofar próprio da metafísica, em particular, na sua ruptura com uma concepção de natureza humana (antropologia filosófica) capaz de fundamentar o dever-ser, as virtudes, o fim moral da humanidade. Em L'usage des plaisirs, Foucault articula sexo e ética numa intrigante análise de padrões de comportamento sexual, enquanto objetos da moral (Grécia Antiga). Tratava-se então de uma liberdade de estilo (p. 111), antes da problematização moral no cristianismo tardio, ou seja, como construtos históricos de sexualidade e sexo podem ser melhor compreendidos à luz de tecnologias confissionais na disciplina e controle de corpos.(HS3) Foucault discorre sobre pelo menos três modos distintos de interpretar a moralidade:

1. A moral (morale) pode denotar um conjunto de valores e regras de ação que são propostos a indivíduos ou grupos sociais através de dispositivos prescritivos tais como a família, instituições educacionais, igrejas, etc. A moralidade é, neste caso, tomada como um código;

2. também pode ser compreendida como “o comportamento real do indivíduo na sua relação a regras e valores que lhe são propostos”, isto é, como um conjunto de práticas;

3. e finalmente --e esta é a definição que interessa a Foucault-- pode ser compreendida como o modo de se conduzir adotado por alguém, “o modo como alguém deve se constituir como sujeito moral agindo com relação aos elementos prescritivos que constituem o código [la manière dont on doit “se conduire,” c'est-à-dire la manière dont on doit se constituer soi-même comme sujet moral agissant en référence aux éléments prescriptifs qui constituent le code]”.[54] Este campo de historicidade onde seres humanos se constituem sujeitos da moralidade, através da relação do eu consigo próprio (rapports de soi à soi), é precisamente o que determina o campo da ética do cuidado de si em Michel Foucault. Este campo emerge como resposta ao desafio nietzschiano do niilismo:

“Quando todos os costumes e a moral dos quais dependem o poder dos deuses, sacerdotes e messias forem finalmente reduzidos a nada, quando, portanto a moralidade no sentido antiquado da palavra estiver morta: o que virá, então, o que exatamente virá?” (Morgenröte I § 96)

 

Foucault afirma numa entrevista que considera a política uma ética[55], num sentido que resiste à normatividade ético-descriptiva, ou seja, como ethos filosófico e estética da existência. De todo modo, Foucault tematiza o caráter autoconstitutivo da subjetividade moral sem formular uma teoria ética. Foucault concebe, assim, um tetraedro da subjetividade, ou as quatro causas da interioridade em sua relação consigo mesma.(HS2 33-35) A primeira “causa” é a “substância ética” (substance éthique), como paixões, sentimentos, desejo sexual; para os gregos, a susbstância ética não era sexualidade (modernidade) ou a carne (la chair, cristianismo), mas a aphrodisia, as obras de Vênus, ao mesmo tempo atos, desejo e prazer.(FR 353) A segunda “causa” é o mode d'assujettissement (modo de sujeição) do sujeito moral, modo pelo qual indivíduos têm de reconhecer obrigações morais que lhes são impostas. Na estética grega da existência, baseada na livre escolha, nossa obra é nossa vida e nós mesmos--em oposição a um objeto, um texto, uma fortuna, uma invenção, ou uma instituição. A terceira causa, análoga à aristotélica, é a eficiente: o trabalho ético que alguém efetua sobre si mesmo a fim de tentar transformar a si próprio em sujeito moral da sua consuta (“[le] travail éthique qu'on effectue sur soi-même...pour essayer de se transformer soi-même en sujet moral de sa conduite,” HS2 34). Em uma palavra, uma autopraxis ou auto-estética da existência moral. O ascetismo é assim visto como techne (um conjunto de técnicas, tais como as tecnologias do corpo, o casamento, a corte amorosa). Finalmente, a quarta causa, a teleologia do sujeito moral (la téléologie du sujet moral) que se questiona: que tipo de ser deve-se tornar? Procede-se assim à questão da askesis, das técnicas ascéticas, e da enkrateia, o domínio de si. A ética e a filosofia política exigem que hábitos e modalidades das relações humanas sejam codificadas. No entanto, devem estas fundamentar-se numa metafísica dos costumes? Em que proporção o pensamento hermenêutico radical articula o ético e o político de forma a prescindir da metafísica na própria concepção deste ser que se auto-interpreta nas suas relações de subjetivação? A hermenêutica radical em Foucault mantém em suspenso uma resposta conclusiva a questões como estas. Segundo Foucault, é este mesmo “ceticismo que nos diz respeito a nós mesmos e ao que somos, nosso aqui e agora, que nos proíbe assumir que o que somos hoje é melhor ou mais do que o que éramos no passado”.[56]

 

NOTAS

* Versão original publicada no Tractatus ethico-politicus. Porto Alegre: Edipucrs, 1999. Cap. 6.



[1] J.-P. SARTRE, “Question de Méthode”, in Critique de la Raison Dialectique. Paris: Gallimard, 1960.

[2] M. FOUCAULT, “Questions de méthode”, in PERROT, Michelle (org). L’impossible prison. Paris: Seuil, 1980. Ver a entrevista de Foucault sobre Sartre e a questão do método, conduzida por J.-P. El Kabbach, para La Quinzaine littéraire de 1-15 de março de 1968. Cf. Dits et Écrits, 1954-1988. 4 vols. Paris: Gallimard, 1994.

[3] Gilles DELEUZE, Foucault. Paris: Minuit, 1986. Cf. R. MACHADO, Deleuze e a filosofia. Rio: Graal, 1990.

[4] Cf. Hubert DREYFUS e Paul RABINOW, Michel Foucault: Beyond Structuralism and Hermeneutics. Chicago: University of Chicago Press, 1983, p. 104.

[5] Cf. M. FOUCAULT, “Qu’est-ce que les lumières?,” Magazine littéraire 207 (maio 1984) e a versão em inglês no Foucault Reader, org. Paul RABINOW. Nova York: Pantheon, 1984, p. 32-50. Doravante abreviado FR.

[6] Foucault refere-se sobretudo aos ensaios críticos “De l’héroïsme de la vie moderne” e “Le peintre de la vie moderne”, in C. BAUDELAIRE, Écrits sur l’art, 2 vols., org. Yves FLORENNE. Paris: Gallimard/Librairie Générale Française, 1971.

[7] M. FOUCAULT, “The Art of Telling the Truth”. In Politics, Philosophy, Culture: Interview and Other Writings, 1977-1984, org. Lawrence KRITZMAN, New York: Routledge, 1990, p. 89. Este texto é, na verdade, uma versão revisada pelo próprio Foucault da sua primeira palestra, no Collège de France, em 1983, sobre a questão kantiana “Was ist Aufklärung?”

[8] Posicionamentos respectivamente assumidos nas interpretações de Alan MEGILL, Prophets of Extremity: Nietzsche, Heidegger, Foucault, Derrida, Berkeley: University of California Press, 1985, e Jürgen HABERMAS, Der philosophische Diskurs der Moderne. Frankfurt: Suhrkamp, 1988, caps. IX e X.

[9] M. FOUCAULT, “On the Genealogy of Ethics”. In DREYFUS, Hubert L., e RABINOW, Paul, op. cit., p. 229-252.

[10] Cf. G. LEBRUN, “Note sur la phénoménologie dans Les mots et les choses,” in Michel Foucault Philosophe, Rencontre Internationale, Janvier 1988. Paris: Seuil, 1989, p. 33-53; E. HUSSERL, The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology. Evanston: Northwestern University Press, 1970, § 25, 30-32.

[11] G. LEBRUN, ibid., p. 44.

[12] Neste sentido, a leitura que Foucault faz de Kant segue a interpretação heideggeriana. Cf. M. HEIDEGGER, Sobre a Essência da Verdade. Trad. Ernildo Stein. Col. “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 133-135.

[13] Cf. Beyond Structuralism and Hermeneutics, op. cit., p. 49.

[14] Cf. M. FOUCAULT, Power/Knowledge, org. Collin GORDON. Nova York: Pantheon, 1980, p. 114.

[15] Cf. M. FOUCAULT, A Arqueologia do Saber, trad. Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987, p. 230.

[16] Cf. J. HABERMAS, J. Knowledge and Human Interests. Boston: Beacon Press, 1989; The New Conservatism: Cultural Criticism and the Historians’ Debate. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1989.

[17] Cf. M. FOUCAULT, The Order of Things. Nova York: Vintage, 1973, Foreword to the English edition, p. ix-x.

[18] M. FOUCAULT, As Palavras e as Coisas. 6a. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 262.

[19] Cf. I. KANT, Anthropologie in pragmatischer Hinsicht B IV. Frankfurt a. Main: Suhrkamp, 1989, p. 673.

[20] Cf. I. KANT, Idéia de um Ponto de Vista Cosmopolita, org. Ricardo TERRA. São Paulo: Brasiliense, 1987.

[21] I. KANT, Prefácio à 2a. ed. da Crítica da Razão Pura, B xxx, trad. Valério Rohden, col. “Os Pensadores”. São Paulo: Abril, 1983.

[22] M. FOUCAULT, As Palavras e as Coisas, trad. Salma Muchail, São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 255-9. Cf., sobre a leitura que Foucault faz de Kant, p. 177s, 262, 272, 323, 339, 341, 357.

[23] A palavra epistemologia (épistémologie) é usada aqui no sentido adotado por Bachelard e Canguilhem, como uma filosofia histórica das ciências, entre uma Wissenschaftslehre e uma “história das ciências”.

[24] Sobre a arqueologia de Foucault, ver o excelente estudo de Roberto MACHADO, Ciência e Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1981.

[25] FOUCAULT, M. Genealogia e poder. Curso no Collège de France, 7 de jan. 1976. In Microfísica do Poder, org. R. MACHADO. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 172.

[26] FOUCAULT, M. Power/Knowledge, op. cit., p. 132.

[27] M. FOUCAULT, “Questions of Method”. In The Foucault Effect: Studies in Governmentality, org. Collin GORDON et al., Chicago: The University of Chicago Press, 1991, p. 75.

[28] Cf. I. KANT, Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. São Paulo: Abril, 1974, Segunda Seção; Crítica da Faculdade do Juízo. Trad. Valério Rohden e António Marques. Rio de Janeiro: Forense, 1993, § 83-84, 86.

[29] Cf. M. FOUCAULT, Mental Illness and Psychology. Berkeley: University of California Press, 1987, p. 74; John CAPUTO, “On not Knowing Who We Are: Madness, Hermeneutics, and the Night of Truth”, in J. CAPUTO e M. YOUNT (org.), Foucault and the Critique of Institutions. University Park: Pennsylvania State University Press, 1993.

[30] J. HABERMAS, The Philosophical Discourse of Modernity. Boston: MIT Press, 1987, p. 286.

[31] J. HABERMAS, J. Der philosophische Diskurs der Moderne, op. cit., p. 16.

[32] Cf. M. FOUCAULT, As Palavras e as Coisas, op. cit., p. 343-4.

[33] Cf. D. JANICAUD, “Rationalité, puissance et pouvoir”, in Michel Foucault Philosophe, op. cit., p. 341.

[34] Entrevista com Giulio Preti, “Un dibattito Foucault-Preti” in Bimestre 22-23 (1972) 2.

[35] M. FOUCAULT, Arqueologia do Saber, op. cit., p. 147.

[36] “Introduction à l’Anthropologie de Kant”, 128 p. O título escolhido por Foucault para a versão inglesa de Les mots et les choses, The Order of Things (“A Ordem das Coisas”), é uma tradução literal da expressão kantiana Die Ordnung der Dinge, para designar o espaço noumênico das coisas em si, oposto aos fenômenos e suas representações (“ordem das palavras”).

[37] M. FOUCAULT, Folie et déraison. Histoire de la folie à l’âge classique. Paris: Plon, 1961, p. iv-v.

[38] Cf. “The Return of Morality”, in Politics, Philosophy, Culture, op. cit., p. 242-247.

[39] M. FOUCAULT, “Nietzsche, Freud, Marx” (1964). In: Nietzsche, Cahiers de Royaumont, Paris: Minuit, 1967, p. 183-200.

[40] M. FOUCAULT, L’ordre du discours. Paris: Gallimard, 1971.

[41] Cf. Capítulo 5 supra.

 

[42] Cf. M. FOUCAULT, Prefácio à trad. francesa de Ludwig Binswanger, Le rêve et l’existence (1954); Maladie mentale et personnalité (1954); Folie et déraison (1961); Naissance de la clinique (1963).

[43] Beyond Structuralism and Hermeneutics, op. cit., p. 208.

[44] Cf. M. FOUCAULT, Histoire de la sexualité (doravante abreviado HS), vol. 3: Le souci de soi. Paris: Gallimard, 1984; Technologies of the Self, org. Luther Martin. Amherst: University of Massachusetts Press, 1988; About the Beginning of the Hermeneutics of the Self (Two Lectures at Dartmouth), in Political Theory 21 (1993): 198-227.

[45] Cf. M. FOUCAULT, “Qu’est-ce que les lumières?” in Le Magazine Littéraire 207 (maio de 1984); Critical Theory/Intellectual History in Politics, Philosophy, Culture: Interviews and Other Writings (1977-1984). Nova York: Routledge, 1988.

 

[46] Cf. John CAPUTO, Radical Hermeneutics: Repetition, Deconstruction, and the Hermeneutic Project. Bloomington: Indiana University Press, 1987.

 

[47] FOUCAULT, M. “On the Genealogy of Ethics”, in Foucault Reader, op. cit., p. 352.

[48] Cf. FOUCAULT, M. “Sobre a História da Sexualidade”. In Microfísica do Poder, op. cit., p. 246.

[49] Cf. FOUCAULT, M. An Aesthetics of Existence, in Politics, Philosophy, Culture, op. cit., 47-53; The Ethic of Care for the Self as a Practice of Freedom, in The Final Foucault, org. James BERNAUER e David RASMUSSEN. Cambridge: MIT Press, 1988, p. 1-20.

[50] G. DELEUZE, “Qu’est-ce qu’un dispositif?” In Michel Foucault Philosophe, op. cit.

[51] Cf. F. EWALD, “Michel Foucault et la norme”. In Luce GIARD (org.), Michel Foucault: Lire l’oeuvre. Grenoble: Jérôme Millon, 1992, p. 201-221.

[52] The Philosophical Discourse of Modernity, op. cit., p. 269.

[53] The Foucault Reader, op. cit., p. 88.

[54] Histoire de la sexualité, vol. 2, op. cit., p. 32-33.

[55]Foucault Reader, op. cit., p. 375.

[56]Cf. Power/Knowledge, op. cit., p. 49.

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