Habemus Habermas
O Universalismo
Ético entre o Naturalismo e a Religião
Abstract: The article revisits Habermas’s recasting of
moral universalism, so as to avoid the aporias of naturalism and cultural
relativism, according to a pragmatic-formal perspective that does justice to
the complex phenomenon of religion in a postsecular, pluralist world, where
believers, atheists, and agnostics can coexist together and actively
participate in the construction of a more tolerant, just society.
Key words:
cultural relativism, moral universalism, naturalism, pluralism, religion,
secularization
Resumo: Trata-se de revisitar a formulação habermasiana do
universalismo moral de forma a evitar as aporias do naturalismo e do
relativismo cultural, segundo uma perspectiva pragmático-formal capaz de fazer
jus ao complexo fenômeno da religião em um mundo pós-secular pluralista, onde
crentes, ateus e agnósticos podem coexistir e participar ativamente da
construção de uma sociedade mais justa e tolerante.
Palavras-chave: naturalismo, pluralismo, relativismo cultural, religião,
secularização, universalismo moral
1.
Gostaria de propor aqui uma modesta contribuição para o debate ético-político
em filosofia da religião desde uma perspectiva habermasiana que poderia ser
caracterizada como a de um perspectivismo
pragmático-formal. Segundo Jürgen Habermas, ao
invés de partirmos de uma crítica materialista da ideologia ou da cultura como
propuseram expoentes da primeira geração da Escola de Frankfurt
(Adorno, Horkheimer, Marcuse), seria bem mais proveitoso para uma teoria
crítica (Kritische Theorie) da
sociedade e, neste caso, do complexo fenômeno religioso, se partíssemos de uma
teoria discursiva (Diskurstheorie)
capaz de dar conta da correlação das diferenciações sistêmicas e dos diferentes
aspectos culturais, societais e interpessoais do mundo da vida (Lebenswelt) compartilhado pelos membros
de uma sociedade. Habermas estaria, por um lado, evitando leituras
reducionistas dos materialistas e ateus que simplesmente esvaziam, desde uma
perspectiva naturalista, qualquer possibilidade de diálogo ou discussão pública
com autores religiosos ou até mesmo discursos que tematizem o problema da religião.
Por outro lado, Habermas estaria também respondendo às limitações e aporias que
julga insuperáveis nos modelos inspirados pelo pluralismo político de John Rawls, incluindo a
quase inevitável privatização da questão religiosa, na medida em que nada
poderia contribuir em debates públicos ou dentro dos limites da chamada “razão
pública”. O excelente trabalho de Daniel Dombrowski, Rawls and Religion, já nos forneceu o que seria uma defensável e
razoável resposta desde uma perspectiva rawlsiana, inclusive com suas variantes
católicas e protestantes, mais ou menos progressistas ou conservadoras.
[i] De acordo com uma recepção perspectivista pragmático-formal da monumental obra
de Habermas, todavia, não apenas o conceito de esfera pública ou publicidade (Öffentlichkeit) mereceria ser revisado
para corrigir possíveis déficits normativos, sociológicos e políticos (por
exemplo, quanto aos problemas da razão instrumental, do reconhecimento e da
alteridade, respectivamente tematizados por Horkheimer, Honneth e Derrida), mas
também o que haveria de comum entre a sua argumentação discursiva e a concepção
rawlsiana de razão pública quanto ao teor normativo de
processos deliberativos e decisórios numa sociedade democrática pluralista
mereceria um reexame quanto às premissas da secularização, racionalização e
modernização. A minha hipótese de trabalho consiste em manter a relação interna
entre tais premissas não apenas dentro do que o próprio Habermas entende como
uma “dialética da secularização” ou, nos termos de seu sucessor, Axel Honneth,
uma “dialética do reconhecimento” ou uma “dialética da Sittlichkeit”, histórica e linguisticamente integrantes de
complexos níveis de reprodução social e socialização, mas ainda como uma
correlação pragmático-formal (democratização, globalização, juridificação).
Esta poderia ser também caracterizada em outros termos de correlação,
notadamente, semântico-transcendental, desde uma perspectiva metódica de
correlação semântica (ontologia,
subjetividade, linguagem) ou paradigmática (fenomenologia,
hermenêutica, desconstrução). Uma correlação, em termos matemáticos ou
estatísticos, tende a ser tomada linearmente e mostra-se particularmente útil
para estabelecer relações causais (causa e efeito) entre variáveis em diversos
experimentos científicos, não apenas nas ciências da natureza e da vida
(física, química, medicina e biologia) mas também na economia e nas ciências
sociais. O termo Korrelation –que foi
interessantemente empregado por Hermann Cohen, Franz Rosenzweig e Edmund
Husserl –, não traduziria aqui nenhuma equivalência de espaços isomorfos ou
universos discursivos homogêneos, mas serviria apenas para assinalar as suas
possíveis transformações semântico-pragmáticas segundo os diferenciados
contextos de significação conceitual co-constitutivos (por exemplo, em termos
husserlianos, uma intersubjetividade transcendental seria co-constitutiva com
relação ao mundo e ao significado noético-noemático de ambos, i.e. não podemos
reconstruir semanticamente um desses pólos sem pressupor os outros). Decerto, o
problema do transcendental, particularmente vinculado a uma correlação
noético-noemático numa teoria da constituição de sentido, poderia ser
contraposto aos modelos genéticos e generativos de uma intersubjetividade
social, lingüística e historicamente co-constitutiva do mundo da vida (Lebenswelt) nos escritos tardios de
Husserl. Em parte, esta tem sido a justificativa habermasiana para rechaçar
modelos transcendentais que seriam supostamente inseparáveis do solipsismo
metodológico ou do dualismo ontológico.[ii]
Como Habermas tem mantido esse tipo de suspeita com relação a argumentos
transcendentais, ao longo de sua obra e em suas coletâneas de escritos mais
recentes --tais como Wahrheit und Rechtfertigung (1999) e Zwischen Naturalismus und Religion
(2005)--, creio que a sua explícita rejeição do conceito de fundamentação
última (Letztbegründung) de Karl-Otto
Apel e da sua versão pragmático-transcendental
mereceriam um reexame crítico, na medida em que Habermas busca saltar sobre a
sua sombra ao manter um papel “quase-transcendental” ou do tipo “fraco” (“weak transcendental”) em seus
meticulosos argumentos discursivos e incessantes esforços de reformulação. A
minha suspeita programática consiste precisamente em vincular o problema –a meu
ver, mal resolvido—do transcendental em Habermas a suas reapropriações da
fenomenologia, hermenêutica e desconstrução, sobretudo de Heidegger.
Parafraseando o nosso crítico do filósofo de Messkirch, trata-se de repensar
Habermas contra Habermas.
[iii] O pano-de-fundo conceitual para melhor explicitar o sentido de tais correlações nos remeteria inevitavelmente a
uma fenomenologia da justiça e a um perspectivismo semântico-transcendental,
respectivamente tematizados em um Tractatus
practico-theoreticus e um Tractatus
politico-theologicus.[iv] No presente ensaio, limitar-me-ei ao perspectivismo pragmático-formal na
reformulação habermasiana de um universalismo moral capaz de evitar as aporias
do naturalismo e do relativismo cultural, onde poderia ser inserida a religião
enquanto mera representação social coletiva de um desideratum normativo (conforme um certo relativismo moral).
Interessantemente, a religião se constitui num dos melhores exemplos de
correlatos não-explicitados do mundo da vida, na medida em que mecanismos sutis
de internalização, assimilação, sublimação, repressão, castração, domesticação,
racionalização e auto-engano se justapõem e se complementam no complexo
processo de reprodução social. A pesquisa interdisciplinar do que seria uma
abordagem fenomenológico-hermenêutica da filosofia social da religião, esboçada
por Adorno e Horkheimer, foi aprofundada e aprimorada por Habermas, em suas
meticulosas articulações entre psicologia social, antropologia cultural,
história e evolução social de formas culturais do mundo da vida.
[v]
Por outro lado, seria totalmente enganoso e superficial reduzir a experiência
religiosa a qualquer um desses mecanismos, ignorando o potencial de
transformação e subversão sociocultural e política inerente a grupos religiosos
e movimentos sociais.
2. Embora abordagens científicas e materialistas da religião tenham sido freqüentemente tomadas como correlatas em modelos naturalistas, creio que a contribuição de Habermas, na esteira da filosofia prática kantiana, vem a colocar em xeque tais pseudo-correlações, analogamente a uma suposta correlação entre relativismo cultural e relativismo ético-moral. Com efeito, Habermas mostra-se seriamente interessado nas descobertas científicas e conjecturas plausíveis sobre a evolução natural e social, dentro da qual pode-se também estudar a religião através da “ciência da religião” (em alemão, Religionswissenschaft, em francês, sciences de la religion, em inglês, religious studies), “fenomenologia da religião” e “filosofia da religião” –diferentemente de abordagens teológicas confessionais— assim como o complexo fenômeno da formação de um ethos social, através de uma abordagem sistêmico-normativa da filosofia social. Segundo tal concepção dual de sociedade (i.e. tomada ao mesmo tempo como sistema e mundo da vida), parece-nos trivial ou superficial supor que o fenômeno da religião estaria apenas relegado à esfera privada como um fenômeno típico do mundo da vida em uma sociedade cada vez mais secularizada e racionalizada. Este, de resto, foi um dos graves erros da associação quase mecanicista entre esclarecimento (Aufklärung) e secularização, progresso da ciência e declínio da religião, como vaticinaram Adorno e Horkheimer com respeito às patologias sociais de um mundo cada vez mais desmistificado e desencantado com seus próprios processos de racionalização e modernização. Um dos intentos originais da reformulação habermasiana da normatividade moral (Diskursethik, ética do discurso) foi justamente articulá-la com a questão social e política da institucionalização de formas de vida, na própria concepção de um modelo integrado diferenciando o mundo sistêmico das instituições (definido pela capacidade de responder a exigências funcionais do meio social) do mundo da vida (i.e., das formas de reprodução cultural, societária e pessoal que são integradas através de normas consensualmente aceitas por todos os participantes). A grande questão que motiva tal modelo dual da sociedade é, para Habermas, dar conta dos complexos processos de reprodução social --material e simbólica-- em seus diversos níveis de integração social, reprodução cultural e socialização interpessoal em face de mecanismos estruturais de controle --notadamente, poder e dinheiro--, tais como os encontramos hoje na chamada globalização dos mercados econômicos e financeiros. Através das centenas de obras e autores citados nos dois volumes de sua Teoria do Agir Comunicativo (1981), os nomes de Marx, Weber, Durkheim, Mead e Parsons vêm ocupar um lugar destacado, sobretudo a concepção weberiana de “racionalização”, que é tomada como ponto de partida para compreendermos os complexos processos de modernização de nossas sociedades democrático-liberais. Em Direito e Democracia (1992), Habermas se propõe mostrar por que o medium do direito se apresenta como o melhor candidato para explicar, em nosso atual contexto efetivo de racionalização e modernização, como se dá o “nexo interno entre sociedade e razão”, ou entre as “circunscrições e coerções pelas quais transcorre a reprodução da vida social”. Assim, a facticidade do mundo da vida, em particular, expressa numa cultura política democrática pluralista, deve ser compreendida de maneira correlata à normatividade e validade da autonomia pública, de forma a superar a atual crise paradigmática da democracia, especialmente a crise de legitimação que caracteriza o Estado moderno secular, sem incorrer nas aporias de uma crítica da ideologia ou diferentes versões de relativismo, ceticismo e historicismo em filosofia moral e política. A fim de evitar a auto-referencialidade da razão prática kantiana (o “fato da razão”), Habermas reconcebe a “autonomia pública” como a disponibilidade de uma rede diferenciada de arranjos comunicativos para a formação discursiva da vontade e opinião pública, na medida em que um sistema de direitos individuais básicos fornece exatamente as condições para que as formas de comunicação necessárias para uma constituição do direito politicamente autônoma sejam assim institucionalizadas. Na medida em que busca resgatar uma concepção comunicativo-normativa de intersubjetividade inerente às estruturas performativas de nossas relações, vivências e práticas cotidianas, tanto em termos fáticos de aceitação social (soziale Geltung) quanto em termos contrafáticos de validade (Gültigkeit) ideal, Habermas parece não se contentar com uma solução simplista como a que seria oferecida pelo ateísmo marxista. Mesmo nos seus primeiros e seminais escritos que definem o programa reconstrutivo da pragmática formal, Habermas já mostrara que a posição de um filósofo agnóstico, enquanto investigador da autocompreensão das ciências sociais, deve manter em aberto as diferentes perspectivas de observadores e participantes num fenômeno que é atravessado, do princípio ao fim, pela questão da alteridade do outro. O seu ateísmo metodológico não poderia, todavia, ser confundido com uma profissão de descrença ou crença anti-religiosa.[vi] Afinal, a questão da modernidade, com todas as suas implicações prático-teoréticas, subjaz ao problema da religião a ser enfocado desde uma perspectiva político-filosófica. [vii]
Assim como não se
trata de voltar a uma condição pré-moderna (onde a religião seria o cimento
social da normatividade ético-moral) ou de celebrar o pós-moderno (dada a
liquidez, crises e contradições da nossa própria modernidade), a terceira via
habermasiana favorece ainda uma interessante convivência com o relativismo
cultural, sua diversidade e irreversível globalização, sem no entanto
subscrever ao relativismo moral ou ceticismo ético. Para tanto, devemos sempre
retomar uma concepção sociocultural de modernidade, que não seria redutível a
um único paradigma (por exemplo, da subjetividade ou da consciência) ou
programa esclarecedor de racionalidade instrumental (técnico-científica,
utilitarista, orientada apenas para o sucesso). No Discurso
Filosófico da Modernidade, Habermas
observa:
O conceito de modernização
refere-se a um feixe de processos cumulativos que se reforçam mutuamente: à
formação de capital e mobilização de recursos, ao desenvolvimento das forças
produtivas e ao aumento da produtividade do trabalho, ao estabelecimento de
poderes políticos centralizados e à formação de identidades nacionais, à
expansão de direitos de participação política, de formas urbanas de vida e de
formação escolar formal, refere-se à secularização de valores e normas, etc.[ix]
Além de distinguir
entre uma modernização cultural e uma modernização social, respectivamente
vinculadas a uma concepção weberiana de racionalidade e a um processo de modernização das esferas
diferenciadas do direito, da política e da economia na sociedade, Habermas
reconhece que esses processos são hoje irreversíveis e inevitáveis --assim como
pensamos hoje sobre a globalização e a juridificação-- e, ademais, estão
desacoplados da modernização cultural, viabilizando inclusive uma
discursividade pós-moderna. Segundo Habermas,
Uma vez desfeitas,
porém, as conexões internas entre o conceito de modernidade e a autocompreensão
da modernidade adquirida dentro do horizonte da razão ocidental, torna-se então
possível relativizar os processos de modernização no seu curso, por assim
dizer, automático, adoptando a posição de distanciamento de um observador
pós-moderno. (...) Nesta perspectiva, dos impulsos de uma modernidade cultural
que se tornou aparentemente obsoleta, destacou-se uma modernização social que
progride de forma auto-suficiente; ela executa apenas as leis funcionais da
economia e do Estado, da técnica e da ciência, as quais parecem ter-se
conjugado num sistema imune a influências.
[x]
Os três temas weberianos de toda pesquisa interdisciplinar sobre a sociedade moderna –modernização, secularização e racionalização— nos remetem aos problemas correlatos da legitimação do Estado moderno, sua inerente juridificação e processos reificantes de institucionalização, democratização e globalização. Embora não possa desenvolver este ponto aqui, a minha hipótese de trabalho em torno da reconstrução habermasiana da teoria crítica tem enfocado a sua ambígua concepção do agir instrumental, por exemplo, quando demoniza a tecnicização das formas comunicativas da vida moderna ao mesmo tempo em que busca resgatar o potencial emancipatório de um procedimentalismo deliberativo em sua concepção de democracia radical. Tal ambiguidade é particularmente importante para melhor avaliarmos a condição pós-moderna, cuja análise sociocultural constatativa (por exemplo, desde um ponto de vista sociológico) Habermas distingue de uma fútil tentativa de filosofia prática, que ele rechaça, sobretudo em autores franceses, associados ao pós-estruturalismo, com forte influência de Nietzsche e Heidegger. Assim como em Adorno e Horkheimer, os pós-modernos acabam tomando um estado de coisas –o uso predominante da razão instrumental e a tecnicização da ciência e das esferas sistêmicas no século XX— como uma condição histórica para fazer implodir o projeto racional do Esclarecimento, como se fôssemos obrigados a jogar o bebê junto com a água a ser trocada da banheira. Todos os efeitos da reificação na modernidade podem ser tomados segundo tal modelo instrumentalizador e suas patologias sociais: o capitalismo fetichista, a sociedade de consumo, a cultura de massa, a dominação da natureza pela técnica a ponto de destruí-la e a juridificação que ameaça a própria liberdade humana. Com efeito, a juridificação, ora tomada em um sentido pejorativo reificante, ora tomada como dispositivo salutar de processos deliberativos democráticos, vem a constituir-se num dos melhores exemplos dentro do projeto habermasiano de uma modernidade ainda em vias de ser realizada. De resto, tanto Habermas quanto Heidegger seguem a intuição weberiana de que a modernidade operou uma diferenciação sistêmica entre a tecnologia e a arte, originariamente entendida como techne mas não redutível a um sistema científico de técnicas, resultante de uma reificação, objetificação ou coisificação do objeto da ação técnica --no caso de Heidegger, uma entificação do ser intramundano, no caso de Habermas, uma colonização sistêmica do mundo da vida e das relações intersubjetivas. Assim, a des-deificação de conceitos teológico-medievais tais como soberania e autoridade, segundo o modelo weberiano-habermasiano, prepara o terreno para a emergência de novas funções sociais a serem desempenhadas em um novo sistema de media entre complexas interações e arranjos institucionais exigidos pela sociedade moderna, a saber, um novo sistema de direitos inerente ao Estado moderno e a uma estruturalmente transformada esfera pública. Enquanto agente soberano por excelência pelo medium do direito, através de suas instituições sociais, econômicas e políticas, espera-se do Estado moderno que se legitime precisamente pelo processo de uma extensão cada vez maior de liberdades básicas e direitos fundamentais a um maior número de seus cidadãos e de maneira cada vez mais igualitária, numa concepção que tem sido caracterizada como o Estado democrático de direito (Rechtsstaat, rule of law), destacando cada vez mais a atuação da sociedade civil, ao ponto de muitas vezes minimizar o papel do Estado ou de se confundir com o mesmo. Com efeito, as mais recentes formulações de uma democracia deliberativo-participativa, em autores como Rawls e Habermas, só corroboram tal problemática correlação, na medida em que a juridificação acaba por trair a fundamentação secularizada da autoridade política, na própria busca de um ideal democrático normativo, que seja irredutível a quaisquer concepções particulares de uma tradição moral, cultural ou religiosa, sobretudo em modelos fundamentalistas. Para além dos intermináveis debates entre universalistas e comunitaristas, por um lado, e entre modernistas e pós-modernos, de outro lado, o problema da legitimação do Estado moderno frente a uma democratização cada vez mais comprometida com sua inevitável juridificação, parece questionar as conquistas da secularização, supostamente capazes de consolidar definitivamente a racionalização das mais variadas esferas e formas de vida sociais. Embora não possa desenvolver esse ponto aqui, o problema nelvrágico da soberania, de origem teológica e socialmente vinculado a concepções escravocratas do poder (dominação, subjugação, servidão, etc) –como Friedrich Nietzsche, Carl Schmitt, Leo Strauss e Michel Foucault o constataram através de registros diversos— não é resolvido de modo satisfatório com as teses emancipatórias da modernidade em busca de autolegitimação. Com efeito, segundo uma concepção sociocultural da modernidade, partimos da constatação histórico-cultural da emergência do Estado moderno à luz de processos secularizantes, desde as primeiras formulações de teorias contratualistas e do direito natural, culminando com o liberalismo clássico e as revoluções dos séculos XVII e XVIII (notavelmente, a Revolução Gloriosa na Inglaterra em 1688, a Independência das colônias americanas em 1776, e a Revolução Francesa em 1789). As guerras religiosas, coincidindo com o impacto causado pela Reforma protestante e subsequente Contra-Reforma na Alemanha, Suíça, França, Holanda e Grã-Bretanha, assim como as lutas emancipatórias de inúmeros povos e grupos sociais acentuam o desenvolvimento de processos democratizantes constitucionais (muitas vezes sem necessariamente comprometer um regime monárquico, como se deu com o parlamentarismo britânico) de maneira paralela ao processo secularizante, que se observa inicialmente nos países que aderem ao princípio luterano de separação entre Igreja e Estado e a uma nova suposta forma de religião civil, já antecipada pelo deísmo e pelos adeptos do Esclarecimento. No caso de nosso continente latino-americano e mais particularmente de nosso País, é interessante assinalar o desenvolvimento do positivismo, justamente durante as lutas pela independência quando da emergência dos novos Estados nacionais. Em todos esses eventos, observa-se um esforço sistemático em se justificar o governo e as instituições sociais, políticas, jurídicas e econômicas sem recorrer explicitamente ao “fundamento místico da autoridade”, segundo a formulação lapidar de Pascal e Montaigne revisitada pela desconstrução da teoria política moderna. [xi]
4. Desde uma perspectiva sistemático-conceitual da secularização, podemos divisar o processo de democratização, partindo das diferentes teorias sobre a modernidade. Vemos, por exemplo, como em sua Vorlesung de 1940 sobre Nietzsche, Heidegger buscou discernir o "novo" da nova época (das Neue der neuen Zeit), ou seja, qual seria afinal a especificidade da modernidade, e rejeitou a escolha de Maquiavel ou da secularização (Säkularisierung) da religião cristã para definir o “problema da modernidade”. Ora, segundo o pensador da Floresta Negra, para que haja secularização ou mundanização (Verweltlichung), é mister desde sempre (immer schon, toujours déjà) um mundo (Welt), em vista do qual e no interior do qual se mundanizar. Se descontarmos o intuito programático de denunciar a relação entre humanismo e secularização, na medida em que o mundo cristão, tanto para Heidegger como para Nietzsche, teria sido preparado pelo humanismo metafísico, podemos mesmo assim reconhecer que a imbricação entre a concepção greco-romana da metafísica e a interpretação cristã do mundo, mediatizada pela latinização do cristianismo, faz jus ao que tem sido comumente identificado como mundo ocidental secularizado ou civilização judaico-cristã ocidental. A constatação empírica das conquistas da modernidade pela civilização ocidental (avanço científico, progresso tecnológico, democratização e direitos humanos) é problematizada pelas tremendas contradições de seus próprios processos (genocídios, imperialismo, colonialismo, totalitarismo, exploração do ser humano e exclusão social). Num outro registro, seria possível mostrar em que sentido também o Islamismo e outras culturas não-européias participam de tal processo civilizatório ocidental, ao contrário do que parece sustentar a idéia de um “choque civilizatório” (clash of civilizations). Por outro lado, antes mesmo da Seinsgeschichte heideggeriana, podemos seguir Karl Löwith, quando buscou mostrar em que sentido a origem da secularização pode ser encontrada na filosofia da história de Hegel e mais tarde na teologia ou filosofia da secularização de Feuerbach. Ernst Bloch e sobretudo Hans Blumenberg seguem também tal direção, mas com intentos diferenciados, notavelmente quanto às concepções desenvolvidas por Schmitt e Strauss. A obra de Blumenberg Die Legitimität der Neuzeit (1966), compreendendo os três volumes revisados e reintegrados numa nova edição de 1988 (“Säkularisierung und Selbstbehauptung,” “Der Prozess der theoretischen Neugierde” e “Aspekte der Epochenswelle”), é de particular importância para esse eixo teórico-conceitual. Finalmente, em seu aspecto propriamente sociopolítico, seguindo a crítica de Hegel a Kant, autores como Luhmann, Rawls e Habermas têm priviligiado uma análise institucional da sociedade em detrimento do atomismo ou individualismo metodológico clássicos, mas comprometendo o papel do Estado moderno em favor da juridificação enquanto mecanismo procedimental moderno de fundamentação do político. Poder-se-ia mostrar que esse problema da legitimação do Estado é refletido também num nível de relações internacionais, quando se trata da justiça global. Com efeito, os desafios do direito internacional com relação a diferentes concepções de valores culturais e religiosos parecem inviabilizar uma concepção auto-reguladora e inexorável da secularização, sobretudo em sociedade islâmicas e em várias culturas para as quais a democracia ainda permanece um modelo a ser imposto violentamente. O presente fenômeno da globalização e seus desafios normativos, assim como a questão hodierna do multiculturalismo, são portanto objeto de uma investigação, tanto em Rawls quanto em Habermas, sobre o complexo processo da secularização e sua relação com o destino da democracia no século XXI, problematizada no sentido de assumir o laicismo implícito em sua emergência política assim como no sentido de questionar novamente uma tal correlação. De resto, Rawls e Habermas se propõem a revisitar o pragmatismo cosmopolita kantiano como uma alternativa a versões otimistas à la Fukuyama e apocalípticas à la Huntington: nem fim da história nem guerra de civilizações, o fim da modernidade é o seu próprio princípio de autonomia pública, razoável e pluralista. [xii] É corroborada, assim, a tese weberiana:
Sempre que o conhecimento empírico-analítico levou conseqüentemente a termo o desencantamento do mundo e a transformação deste num mecanismo causal, surge definitivamente a tensão contra as pretensões do postulado religioso de que o mundo é um cosmo ordenado por Deus e que, em conseqüência, possui algum tipo de orientação e de sentido éticos. [xiii]
O
problema da fundamentação teológica da moral e da cultura é apenas parcialmente
resolvido com a secularização e a modernização, na medida em que a razão
moderna celebra um ideal universal de liberdade que não se deixa reduzir a um
efeito de superfície, uma ilusão ou um novo mito de representações coletivas.
Há, como já foi assinalado, uma visível ambiguidade no uso habermasiano da
juridificação, assim como em suas investigações sobre a reificação e a
globalização, que nos remetem ao chamado “paradoxo da racionalização”. Segundo
Albrecht Wellmer, tal paradoxo consistiria em conceber a racionalização do mundo
da vida enquanto precondição e ponto de partida de um processo de
racionalização e diferenciação sistêmicas, tornando-os cada vez mais autônomos
com relação a limitações arraigadas no mundo da vida, culminando nos
“imperativos sistêmicos”, instrumentalizando e ameaçando o próprio mundo da
vida.
[xiv] Justamente porque não podemos opor razão comunicativa e razão instrumental
segundo uma proporcional contraposição entre mundo da vida e sistema,
poder-se-ia pensar aqui em uma formulação paradoxal. Por outro lado, como
observa Wellmer, não teríamos ainda um paradoxo, na medida em que a
auto-referencialidade da razão moderna se propõe precisamente a evitar, a todo
custo, que nos tornemos reféns da tecnicização ou instrumentalização da ação
humana simplesmente porque somos, enquanto humanos,
irredutíveis a meios ou outros fins –na linguagem kantiana, somos um fim
terminal (Endzweck), que contrapõe
pessoas humanas a coisas e entes em geral. Essa é, com efeito, a aposta
habermasiana quanto à inevitabilidade de revisitarmos o universalismo moral.
Para muitos, a aposta seria, em última análise, como a de Pascal, uma confissão
de fé –na razão moderna e suas premissas universalizantes. Para outros, no
entanto, a proposta ético-política de inspiração kantiana ainda seria altamente
defensável, razoável e pragmática. Nas palavras de um de seus mais importantes
interlocutores americanos, Richard Bernstein,
Can we still, in our time, provide a rational justification
for universal normative standards? Or are we faced with relativism,
decisionism, or emotivism which hold that ultimate norms are arbitrary and
beyond rational warrantability? These became primary questions for Habermas.
The fate –indeed, the very possibility— of human emancipation depends on giving
an affirmative answer to the first question and a negative answer to the
second.
[xv]
Habermas
procura destarte resgatar o fundamento normativo da vida social moderna, em
particular, de nossas sociedades democráticas, sem recorrer ao absolutismo
moral de concepções religiosas e teológicas, nem incorrer em relativismo.
Habermas decerto não publicou nenhuma obra intitulada Grundprobleme der Ethik. Todavia, em sua monumental produção em
filosofia social é possível destacar os dois problemas fundamentais da ética
moderna, a saber, o problema da liberdade humana e o problema da fundamentação
da moral. Com efeito, estes foram precisamente os dois problemas fundamentais
tematizados em dois tratados de Arthur Schopenhauer, curiosamente intitulados Über die Freiheit des menschlichen Willens e Über die Grundlage der Moral, aludindo a dois ensaios
respectivamente submetidos às sociedades científicas da Noruega (1839) e da
Dinamarca (1840), reunidos em Die beiden
Grundprobleme der Ethik.
[xvi]
A concepção moderna de liberdade, segundo Habermas, é o grande divisor de águas
não apenas para melhor entendermos a nossa própria condição sociocultural em uma
modernidade tardia, mas também para fazermos jus ao nosso desenvolvimento
humano como espécie, em nossa complexa evolução natural e social. A filosofia
social busca tematizar precisamente como se articulam os elementos empíricos de
pesquisas sociais sobre estruturas de comportamento e instituições humanas com
as diferentes teorias e concepções filosóficas resultantes de nossa
autocompreensão através dos séculos, a fim de melhor entendermos os complexos
mecanismos de repodução social, socialização e a nossa própria sociabilidade.
De resto, a idéia de liberdade –que não é certamente uma invenção alemã
moderna— acompanha todo o desenvolvimento da história da ética ocidental,
embora só tenha sido explicitamente concebida através das reflexões modernas
sobre o livre arbítrio (especialmente, após a querela entre Erasmo e Lutero no
século XVI) e as liberdades individuais, sobretudo a partir do Esclarecimento,
quando a liberdade adquiriu o significado efetivo de realização humana em seu
sentido social, cultural, político e jurídico mais pleno. Assim como Heidegger,
Ricoeur e Rawls, Habermas acredita que a idéia moderna de liberdade seja
resultante de complexos processos civilizatórios, notadamente marcados pela
interseção decisiva de grandes tradições como a greco-romana e a
judaico-cristã. Mas foi somente com o Iluminismo, enquanto movimento cultural
transnacional (Enlightenment, Lumières, Aufklärung), que a idéia de liberdade foi mais explicitamente articulada
com uma autocompreensão emancipadora e suas implicações culturais e políticas.
Neste sentido, pode-se investigar em que medida a idéia de liberdade viabiliza
uma articulação defensável entre o universalismo ético e concepções de
racionalidade prática que levam a sério os desafios hodiernos do naturalismo
técnico-científico, da globalização econômica, da juridificação e da
democratização em um mundo pós-secular, de forma a elucidar e reformular em
termos contemporâneos o problema da fundamentação da moral. Com efeito, o
grande problema da moral em nossos dias consiste em defender uma concepção
razoável de moral que possa evitar o relativismo ético, ao mesmo tempo em que
subscreva ao relativismo cultural contemporâneo. Por relativismo cultural entende-se,
desde as suas primeiras formulações nos escritos antropológicos do início do
século XX, que não há nenhuma cultura particular superior a outras. Nas
palavras de Ruth Benedict, a mais renomada discípula de Franz Boas, a moral é
algo que difere de uma sociedade a outra, de acordo com as normas socialmente e
culturalmente aceitas (“Morality differs in every
society and is a convenient term for socially approved habits... culturally accepted social norms”)
[xvii]
Todavia, ao contrário de Benedict, para quem o relativismo cultural implica
desde sempre um relativismo moral, autores como James Rachels e todos os que
argumentam em favor de premissas ético-morais universalizáveis, seria possível
subscrever a um pluralismo sociopolítico e cultural sem, no entanto, sucumbir a
um relativismo moral.
[xviii] Se, como argumenta Benedict, o conceito de normalidade (normality) é culturalmente definido (culturally defined) em contraposição ao conceito correlato de
anormalidade, assim como o conceito de bem moral varia de uma cultura para
outra, seria menos observável ou empiricamente evidente que os padrões de
normalidade não passariam de cultural
patterns, relativos a cada sociedade e a seu respectivo ethos social. Aqui jaz o punctum dolens de nossa problemática,
tão brilhantemente articulado pelas pesquisas habermasianas: embora não
possamos falar de princípios e normas ético-morais sem levarmos em conta seus
correlatos socioculturais, aqueles não seriam redutíveis a estes, se quisermos
evitar um determinismo causal. Já Aristóteles observara esta interessante
aproximação semântica entre o hábito (ethos,
com epsilon) e o caráter (êthos, com êta) da sabedoria pré-socrática, no Capítulo 1 do Livro II da sua Ética a Nicômaco. Todavia, embora seja incontestável que a ética
deva desenvolver-se dentro de um contexto de socialidade que em muito se
aproxima de um habitat animal
qualquer (como se dá entre lobos, abelhas e baleias), a emergência de uma
autocompreensão e racionalidade prática torna o modo de ser dessa espécie
humana peculiar quanto ao seu caráter e destinação que lhes são próprios. O
universalismo moral ressurge, de acordo com Habermas, enquanto resposta aos
desafios contemporâneos do naturalismo e do relativismo cultural em suas
respectivas tendências reducionistas em direção a um neopositivismo científico
e a um relativismo moral. O chamado naturalismo forte, seguindo os trabalhos de
Quine e mais recentemente das ciências cognitivas (esp. neurociências), tem
implicações reducionistas não apenas para a filosofia da mente e para a
filosofia da linguagem, mas também para a psicologia moral e concepções
ético-normativas. O que aqui denominamos de universalismo ético, segundo
Habermas, visa buscar uma fundamentação ético-moral entre o universalismo
abstrato kantiano (conforme Habermas, o próprio Rawls ainda se enquadraria
nesta classificação) e o relativismo inerente a concepções contextualistas e
comunitaristas em autores neo-aristotélicos (MacIntyre et al.) e neo-hegelianos
(Taylor et al.). A ética do discurso (Diskursethik)
se propõe precisamente a restabelecer esta justificativa através de argumentos
reconstrutivos, não mais “transcendentais”, de uma normatividade comprometida
pelo anti-realismo moral (na medida em que tende a modelos não-cognitivistas,
expressivistas e decisionistas) e pelo realismo platônico (pseudocientífico ou
fundacionista). Assim como a ética kantiana, a ética do discurso mantém-se
cognitivista, deontológica, formalista e universalista; para além das
formulações de inspiração kantiana (Hare, Rawls, Apel), a ética do discurso se autodenomina
intersubjetiva, não-transcendental e voltada para situações concretas de
justiça, reconhecimento e alteridade. De resto, o ponto de partida da filosofia
social habermasiana sempre foi reconstruir uma teoria crítica da sociedade
moderna, à luz das diagnoses oferecidas por pensadores críticos como Marx,
Weber, Durkheim, Lukács, Adorno e Horkheimer, de forma a dar conta das
análises de suas patologias sociais sem, no entanto, incorrer nos aporéticos prognósticos de uma
utopia revolucionária, de uma gaiola de ferro burocrático-administrativa, de
uma inevitável anomia social, de uma reificação intransponível ou de uma
enigmática dialética do Esclarecimento. O conceito ético-moral de liberdade a
ser resgatado pela teoria social habermasiana visa a uma alternativa defensável
em face da dominação da natureza e da exploração sistêmica de humanos por
outros humanos, de forma a evitar os impasses de uma racionalidade instrumental
e de uma tecnicização cada vez maior das relações humanas. Desta forma, Habermas
procura dar continuidade ao desafio de uma teoria crítica capaz de responder
aos desafios modernos do capitalismo tardio e globalizado em seus processos de
reificação e uso acrítico e não-ético da razão instrumental. O ponto de partida
da chamada Escola de Frankfurt da primeira geração, como tem sido comumente
evocado através do famoso artigo de Horkheimer, consistia na contraposição de
uma “teoria crítica” (kritische Theorie)
a uma teoria tradicional que ainda instrumentaliza o objeto de sua investigação
como se fosse um mero dado a ser dissecado pelo cientista social, segundo um
modelo positivista.
[xix]
Sem dúvida, tal postura é traduzida pelo
intento ético-moral de inspiração kantiana, como foi apropriado pela leitura de
Habermas, em seu programa original de
filosofia social como ciência reconstrutiva, auto-reflexiva, capaz de uma
reformulação dos fundamentos normativos da teoria crítica. Ademais, a grande
lição hermenêutica que Habermas herda, nolens
volens, de Heidegger e de Gadamer é que a compreensão e o compreender (Verstehen) precedem todo processo
epistêmico-enunciativo ou cognitivo mental do pensamento e daquilo que chamamos
conhecimento. Neste sentido, o nível comunicativo proposto pela ética
discursiva antecede toda articulação teórica na medida em que coincide com as
práticas e processos inerentes aos horizontes constitutivos do mundo da vida ou
de nosso mundo circundante cotidiano. A universalidade ético-normativa poderia,
assim, ser articulada com a historicidade e linguisticalidade de horizontes
co-constitutivos de diferentes tradições e culturas. A experiência religiosa, for the better or the worse, é parte
integrante de tais fusões de horizontes hermenêuticos de autocompreensão e de
infindáveis processos de aprendizagem entre diferentes grupos sociais e etnias.
5. Ora, toda pesquisa
interdisciplinar sobre a religião, numa verdadeira fenomenologia hermenêutica
da religião, deveria ser capaz de dar conta da questão “o que significa,
afinal, ‘religião’?”, envolvendo abordagens empíricas da antropologia cultural,
da sociologia, da psicologia e da história da religiões, para além de estudos
teológicos e da filosofia da religião. Para limitar-me apenas a esta última,
tratar-se-ia programaticamente de responder às seguintes questões:
1. Como lidar com o
conflito de interpretações religiosas enquanto doutrinas abrangentes,
conflitantes e incompatíveis entre si, segundo a formulação rawlsiana, capazes
de subscrever a um consenso político de sobreposição (overlapping consensus)?
Seria plausível limitarmos o uso público do discurso religioso a um uso
político qualificado como sugere Rawls? É o universalismo compatível com o
comunitarismo? Como responder ao desafio hodierno do pluralismo e do
relativismo cultural, sem sucumbir ao relativismo moral, ceticismo,
historicismo ou niilismo? Este primeiro conjunto de questionamentos e problemas
(que poderia ser resumido na fórmula lapidar do “fato do pluralismo razoável”)
é, na verdade, o ponto de partida da análise habermasiana da religião na esfera
pública.
2. Seria o realismo teológico defensável? Pode-se falar da objetividade da
realidade divina do mesmo modo como falamos de fenômenos físicos e naturais?
Aqui voltamos ao problema fundamental da metafísica de opor realismo e
anti-realismo e suas implicações para o naturalismo e a religião, em termos de
dualismo e monismo. Embora os chamados argumentos transcendentais ainda me
pareçam os mais plausíveis para substituir os tradicionais argumentos
metafísicos, ontológicos, cosmológicos e teleológicos em uma abordagem
pós-metafísica da filosofia da religião, Habermas insiste em
destranscendentalizar a crítica ao naturalismo e ao fisicalismo.
3. Afinal, podemos recorrer a concepções de ontologia, subjetividade e
linguagem que seriam racionalmente articuladas com uma concepção de metafísica
defensável? Ainda faz sentido recorrer a argumentos filosóficos para justificar
a fé em Deus ou crenças religiosas? Desde uma perspectiva pragmático-formal,
Habermas pretende superar o recurso à metafísica (algo que o aproximaria de uma
atitude naturalista) e evitar a tomada de posição entre o teísmo e o ateísmo,
mantendo sua ambígua skepsis de
terceira via --a meu ver, uma postura estratégico-política para evitar posições
mais ou menos liberais, republicanas ou comunitaristas.
4. É possível falar sobre o inefável? sobre Deus enquanto Totalmente Outro?
como falar de uma experiência que efetivamente transcende nossa existência
humana? Habermas não tematiza esse tipo de questionamento, embora sua tese
doutoral tenha versado sobre Schelling: “Das Absolute in der
Geschichte”. Em
vários de seus escritos sobre autores como Kierkegaard, Benjamin e Bloch,
Habermas parece deliberadamente afastar-se de questões teológicas, ao mesmo
tempo em que reconhece a grande contribuição dos temas judaico-cristãos da
transcendência, do exílio e da alteridade do outro para o pensamento
ético-político ocidental.
5. Como relacionar, afinal, fé e razão?
6. Seria a religião redutível a um fenômeno social?
7. Seria a religião redutível a uma dimensão moral ou a uma ética? Pode a
religião dar uma resposta satisfatória ao problema do mal?
Para responder a essas três problemáticas, Habermas recorre explicitamente à filosofia kantiana da religião. Fé e razão não se deixam reduzir reciprocamente, assim como não se fundamentam relacionalmente. Todavia, na medida em que a razão se mostra prática, a religião concebida em termos racionais acaba por reduzir-se essencialmente a princípios morais e estes, segundo Habermas, só podem ser articulados em relações intersubjetivas, social e culturalmente mediadas através de processos de socialização, internalização, assimilação e aculturação, ou seja, através de processos de aprendizagem (Lernenprozesse) pelos quais as crenças, atitudes e valores morais, religiosos e políticos são compartilhados por atores e agentes em diferentes formas de vida social (Lebensformen, i.e. formas de vida que dão sentido à nossa linguagem sobre a realidade social em que vivemos, o nosso mundo da vida, Lebenswelt).
8.
Em que sentido seria plausível relativizar, reinterpretar ou desconstruir uma
dada tradição ou compreensão de conceitos religiosos de forma a torná-los mais
defensáveis ou aceitáveis em termos de razoabilidade? Se a secularização e
outros movimentos culturais parecem exitosos ao relativizar certas tradições
religiosas, como as religiões mantêm uma identidade ortodoxa sem cismas,
divisões ou desvios doutrinários?
9. Como procedemos a uma divisão disciplinar entre a filosofia da religião, a
teologia e as abordagens empíricas das ciências da religião?
10. Existe alguma diferença entre religião e misticismo?
11. Crentes, agnósticos ou ateus podem ter a última palavra?
Habermas
não parece interessar-se por essas últimas questões, na medida em que escreve
como filósofo social e não como teólogo ou cientista da religião. A meu ver,
essas questões, conjuntos de problemas e teses diretrizes sobre a filosofia da
religião permanecem de certo modo indecidíveis --assim como os argumentos e
conclusões de ateus, agnósticos e crentes-- mas podem nos ajudar a definir uma
certa metodologia em uma pesquisa interdisciplinar em filosofia da religião.
Decerto, quanto à última questão, numa perspectiva hermenêutica consistente,
crentes, agnósticos ou ateus jamais poderiam reivindicar qualquer pretensão à
última palavra em tais assuntos. É precisamente neste sentido de abertura
dialógica liberal que poderíamos seguir uma intuição habermasiana quanto à
filosofia kantiana da religião e propor um perspectivismo pragmático-formal,
cuja tese central corrige e reconstrói a semântica
transcendental inerente a concepções liberais, podendo ser provisoriamente
reformulada nos seguintes termos: as relações possíveis de se articular entre a
ontologia social e a intersubjetividade inerentes a uma fenomenologia do mundo
da vida nos remetem a três perspectivas epistêmicas ou paradigmas defensáveis
quanto à relação entre teoria e práxis, sem serem exaustivas nem excludentes
quanto aos outros dois paradigmas, mas inevitavelmente pressupondo uma
correlação entre ontologia, subjetividade e linguagem. Seguindo Foucault, Apel
e Habermas, os três paradigmas em questão poderiam ser respectivamente
denominados de paradigma ontológico, paradigma da subjetividade e paradigma da
linguagem, na medida em que buscam dar conta do problema da reprodução social
do mundo da vida em três modelos diferenciados de uma fenomenologia sociológica
descritiva, de uma hermenêutica da intersubjetividade e de uma teoria
pragmático-formal do discurso. Podemos observar en passant que o próprio Husserl teria antecipado tal abordagem
perspectivista ao propor a correlação entre objetividade (ontologias
regionais), subjetividade (teoria da constituição) e intersubjetividade (mundo
da vida e formas culturais em abordagens genético-generativas da fenomenologia
social), embora se mantivesse atrelado a uma concepção metafísica de presença
temporal, a ser desconstruída.
[xx]
O perspectivismo pragmático-formal, assim como sua variante
semântico-transcendental, se propõe, portanto, a reformular a problemática da
articulação entre ontologia, subjetividade e linguagem sem pressupor nenhuma
relação fundamental entre sujeito e objeto, nenhum dualismo ontológico ou tese
de dois mundos. Trata-se de reconstruir em termos hermenêutico-formais o que
seria um pragmatismo ético-político que lança mão das transformações semióticas
da filosofia transcendental e da semântica analítica, sem incorrer num tipo de
idealismo, psicologismo, logicismo ou positivismo lógico, e sem sucumbir aos
reducionismos decorrentes da polarização entre filosofia analítica e filosofia
continental. A hipótese de trabalho do perspectivismo pragmático-formal é de
operar um retorno pós-hermenêutico à crítica de Hegel a Kant, tal como
encontramos nos trabalhos seminais de Habermas. De resto, o problema de
diferenciar entre uma argumentação transcendental, quase-transcendental e
destranscendentalizada termina por nos remeter ao problema central da
modernidade, a saber, se a justificativa de seu conteúdo normativo, uma vez
deslocado da subjetividade transcendental em direção a uma intersubjetividade
histórica e linguisticamente socializada, situada e contextualizada, não seria
redutível a um pseudoproblema naturalista ou cairia sutilmente em outra forma
de argumentação transcendental (ou quase). A partir de tal perspectivismo, torna-se defensável uma reformulação do Paradoxo Fundamental da Religião através das duas
premissas:
(1) Toda religião reivindica ser absolutamente verdadeira.
(2) Na medida em que não podem ser todas igualmente verdadeiras, as religiões
estão fadadas a algum tipo de contradição performativa e estão todas sob
suspeita.
Assim, muitos crentes e estudiosos de religiões evocam (1) a fim de ressaltar a
universalidade da aspiração religiosa entre os seres humanos, para além das
distinções particulares e, muitas vezes, o fazem com o intuito de promover o
universalismo inter-religioso. Universalismo e particularismo seriam, desse
modo, compatibilizados sem necessariamente recorrer a argumentos filosóficos ou
teórico-conceituais. Por outro lado, muitos ateus e agnósticos evocam (2)
precisamente para justificar a sua descrença ou ceticismo em matérias de fé e
religiosidade, alegando sobretudo os condicionamentos de auto-engano e
submissão irracional a legados preconcebidos de tradições diversas. A minha
tese programática é que podemos recorrer a um perspectivismo pragmático-formal,
como propõe Habermas, e aceitar (1) e (2) tornando o universalismo e o
particularismo aceitáveis e co-constitutivos de um consenso sobreposto, na
medida em que subscrevem a critérios públicos de razoabilidade. Podemos
entender e aceitar que diferentes grupos sociais acreditem e defendam as mais
diversas concepções religiosas sem que nós mesmos as endossemos ou mesmo
entendamos tais crenças segundo tais supostos critérios de “racionalidade”. Nas
palavras de Habermas, se quisermos reavaliar a proposta rawlsiana quanto aos
modelos democráticos liberais como uma resposta razoável e satisfatória para o
pluralismo religioso, “os cidadãos religiosos, como também os seculares, devem
saber interpretar, cada um na sua respectiva visão, a relação entre fé e saber,
porquanto tal interpretação prévia lhes abre a possibilidade de uma atitude
auto-reflexiva e esclarecida na esfera pública”.
[xxi]
6.
Habermas acabou assumindo posições bastante ambíguas quanto ao uso de “um
argumento moral religiosamente informado” na esfera pública, embora
recentemente tenha procurado revisar ou tornar mais claras as suas posições
seja para sair em defesa do cristianismo (que em última análise teria
assegurado a formação dos valores básicos da modernidade --tais como a
liberdade, igualdade e justiça) seja para corroborar a irreversibilidade da
concepção secular de separação entre Igreja e Estado. Assim, muitos têm, a meu
ver erroneamente, qualificado Habermas de ateu secular (secular atheist) ao asserir que vivemos em uma sociedade
pós-secular onde as conquistas emancipatórias da modernidade e da democracia
social levam-nos a revisar nossas idéias tradicionais de religião e
racionalidade, fé e saber.
[xxii]
Para além da interlocução com o então cardeal Ratzinger, quando declarou que a
Igreja deveria reconhecer a sua esfera de influência dentro dos limites da
discursividade pública, mediada pelo agir e razão comunicativos, Habermas
procurou se corrigir com relação a uma visão um tanto limitada e ambígua da
secularização como transferência de propriedades da Igreja à autoridade do
Estado secular (quando da outorga do Prêmio da Paz em 14/outubro/2001, Friedenspreis des Deutschen Buchhandels). Desta forma, Habermas procura voltar a
Kant, numa releitura da filosofia da religião, quase reduzida a uma versão
pluralista da ética da reciprocidade ou da regra de ouro que estaria na base de
toda religião particular com pretensões universais. Vários dos seus relatos em
entrevistas e ensaios mais recentes foram coletados em três publicações: Religion and Rationality: Essays on Reason, God
and Modernity (Cambridge MA:
MIT Press, 2002), Time of Transitions
(Polity Press, 2004) e Entre Naturalismo e Religião. Estudos
Filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007 [Zwischen
Naturalismus und Religion: Philosophische Aufsätze. Suhrkamp, 2005] É sobretudo no
terceiro volume que encontramos o cerne do pensamento habermasiano sobre a
filosofia da religião, especialmente nos capítulos oito (sobre Kant) e cinco
(sobre a religião na esfera pública), como atestam Hans Joas em sua resenha (“Die Religion der Moderne”, Die Zeit 13.10.2005) e o European Journal of
Philosophy (Spring 2006). Seguindo uma intuição de
Joas, creio que todo o projeto pós-metafísico da teoria do agir comunicativo
tenta dar conta da normatividade correlata aos horizontes do observador e do
agente moral ou ator social, desde as investigações seminais sobre a lógica das
pesquisas sociais no final dos anos 60 (Zur Logik der Sozialwissenschaften)
até as suas formulações de teorias discursivas da democracia e do direito nos
anos 90. Segundo tal “dualismo de perspectivas” (da 1ª e 3ª pessoas em
interdependência comunicativa, intersubjetiva e co-constitutiva de sentido),
Habermas logra destarte integrar os últimos resultados de pesquisas empíricas
do naturalismo (em biogenética, neurociências, inteligência artificial,
ciências cognitivas, biologia molecular) aos legados filosóficos e culturais
tradicionalmente associados a reflexões sobre a normatividade inerente a
relações intersubjetivas do mundo da vida. De uma maneira geral, o naturalismo nos remete a uma atitude secular, científica, consagrada pela
expressão programática de uma “epistemologia naturalizada” segundo Quine. De
uma maneira mais específica, Habermas se refere a uma tendência entre
neurocientistas alemães, como Wolf Singer e Gerhard Roth, que reduzem processos
mentais a conditições físico-fisiológicas observáveis. Segundo tal perspectiva
empirista, a consciência e a liberdade não passam de ilusões ou desiderata quiméricos, como as grandes
metanarrativas do idealismo alemão, da psicologia tradicional e da psicanálise.
Assim como o naturalismo seria incapaz de justificar a normatividade prática de
uma moral particular ou de princípios éticos gerais sem incorrer em falácia
naturalista (de derivar um dever-ser ou proposição prescritiva a partir de uma
premissa descritiva ou do ser), desde um ponto de vista semântico ou
pragmático-linguístico seria impossível reduzir jogos de linguagem cotidianos a
uma descrição objetificante de processos conscientes, segundo uma famosa
palestra de Wilfred Sellars, em
1960 (“Philosophy and the Scientific Image of Man”):
The point of departure for this naturalization of the
spirit is a scientific image of man that also thoroughly desocializes our
self-conception. Of course, this can succeed only if the intentionality of
human consciousness and the normativity of our behavior in such a
self-description disappears without a trace. Such a theory must explain, for
example, how people can obey or disobey rules -- whether grammatical,
conceptual or moral. Sellars’s
students misunderstood their teacher’s aporetic thought-experiment as a
research program, and they are pursuing it to this day. The application of a scientific modernization
of our everyday psychology has even led to attempts at a semantics that
postulates a biological explanation for the very content of our thoughts. But even these most advanced theses still
appear unable to explain that difference between Is and Ought that comes into
play whenever we disobey rules.
[xxiii]
O que Habermas observa quanto ao “cruzamento
complementar” entre perspectivas do participante (primeira pessoa) e do
observador (terceira pessoa) a fim de corroborar sua abordagem
pragmático-discursiva em processos de cognição social e desenvolvimento da
consciência moral, poderia ser retomado em uma fenomenologia da religião, na
medida em que entendemos e respeitamos as crenças e práticas religiosas de
outrem. Mas existe sempre o desafio de que na religião, mais do que em qualquer
outra área da psicologia humana, a alteridade do outro seja assimétrica a ponto
de inviabilizar tentativas de tradução, por exemplo, de certas experiências e
conceitos religiosos. Afinal, o interlocutor pode sempre alegar que tal
experiência não possa ser compreendida a menos que haja uma genuína conversão à
religião em questão. Para Habermas, mesmo em se tratando de uma aparente
incomensurabilidade de expressões e formas de vida religiosas, o agir
ético-comunicativo nos encoraja a buscar a interativa cooperação na esfera
pública:
Cidadãos secularizados não podem, à proporção que se
apresentam no seu papel de cidadãos do Estado, negar que haja, em princípio, um
potencial de racionalidade embutido nas cosmovisões religiosas, nem contestar o
direito dos concidadãos religiosos a dar, em uma linguagem religiosa,
contribuições para discussões públicas. Uma cultura política liberal pode,
inclusive, manter a expectativa de que os cidadãos secularizados participarão
dos esforços destinados à tradução –para uma linguagem publicamente acessível—
das contribuições relevantes, contidas na linguagem religiosa.[xxiv]
As
premissas rawlsianas do liberalismo político são, portanto, acatadas por Habermas
desde que possam evitar a privatização do debate religioso e que permitam uma
ampliação e transformação pragmático-semântica da esfera pública, onde se
discute o que seja, afinal, razoável. Num certo sentido, Habermas retoma os
princípios e consequências do equilíbrio reflexivo amplo, em seus sutis
dispositivos de calibragem históricos, linguísticos e culturais, subjacentes a
nossas concepções cotidianas de crenças e valores. Decerto, Habermas procura incessantemente
destranscendentalizar concepções modernas de subjetividade e das chamadas
filosofias da consciência de forma a fazer jus às complexas hipóteses,
conjecturas e explicações das ciências empíricas que estudam a evolução
biológica da espécie humana e suas formas de sociabilidade. Embora Habermas rejeite a fundamentação pragmático-transcendental da
ética do discurso de Apel e proclame a destranscendentalização (Detranszendentalisierung)
da subjetividade através de uma pragmática formal (Formalpragmatik),
creio ser possível argumentar que a sua concepção de Lebenswelt
permanece devedora de uma fenomenologia hermenêutica (narrativas de sentido na
primeira pessoa) e que poderia ser ainda caracterizada em termos semânticos
transcendentais. Tal seria a transformação hermenêutica da chamada “interpretação kantiana” do equilíbrio reflexivo de Rawls.
Se, por um lado, Habermas quer evitar uma redução dos agentes morais e
atores sociais a meros clientes de um sistema reificante de mundos sociais, por
outro lado, ele também procura evitar as aporias kantianas de concepções
normativas como a do equilíbrio reflexivo rawlsiano. Ademais, as formas
comunicativas desempenham, para Habermas, um papel catalisador e revitalizante
da própria concepção fenomenológico-hermenêutica de mundo da vida. Como não há
socialização humana sem razão e agir comunicativos, na medida em que estes
constituem o próprio meio (medium) para a reprodução de mundos da vida,
a interação orgânica entre consenso normativo e sistema institucional inerente
a processos decisórios de uma democracia deliberativa nos remete desde sempre a
uma correlação entre linguagem, ontologia e intersubjetividade. O próprio
Habermas viu na sua guinada lingüístico-pragmática a emergência de um novo paradigma
alternativo aos paradigmas ontológico e epistemológico que caracterizaram,
respectivamente, as abordagens pré-modernas (teorias políticas clássicas) e
modernas (filosofias da consciência) da filosofia prática. Assim como Heidegger
e Foucault, Habermas buscou incessantemente uma terceira via capaz de evitar as
reduções racionalistas e empiristas a diferentes versões de dualismo, monismo
ou ceticismo. A fim de não incorrer em historicismo transcendental, niilismo ou
relativismo, Habermas acaba recorrendo a uma argumentação
“quase-transcendental” que, segundo ele, evita as aporias de uma antropologia
filosófica e de uma filosofia da história (inevitáveis em modelos liberais
kantianos e comunitaristas hegelianos, respectivamente). Todavia, contra Heidegger, Foucault e Derrida, Habermas mantém a sobriedade de
seu agnosticismo discursivo de forma a evitar o misticismo semântico de uma
hermenêutica radical:
O confinamento da razão ao seu uso prático, levado a cabo por Kant na sua filosofia da religião, atinge hoje em dia, não tanto o fanatismo religioso, mas uma filosofia efusiva que apenas se aproveita das conotações proféticas de um vocabulário religioso e salvífico a fim de se eximir do rigor de um pensamento discursivo. Nesse contexto, Kant tem algo a nos dizer: porquanto sua filosofia da religião pode ser entendida, no seu todo, como advertência contra uma filosofia religiosa.[xxv]
NOTAS
* Publicado na revista Veritas 54/1
(2009). Todas as citações devem
seguir a versão impressa ou disponibilizada em PDF no website da revista.
Agradeço aos Professores Roberto Pich, Luís Henrique Dreher, Jason Wirth, Burt
Hopkins, Dan Dombrowski, Jim Risser e Paul Kidder pelos seus
comentários quando das primeiras apresentações de versões preliminares deste
paper, na PUCRS e na Seattle University.
[i] Cf. D. Dombrowski, Rawls
and Religion:
The case for political liberalism. Albany: State University of New York Press, 2001.
[ii] Cf. do autor, “Mundo da Vida e Forma de Vida: A Apropriação
Habermasiana de Husserl e Wittgenstein”, Veritas 44/1 (1999): 133-146.
[iii] Lembrando que o jovem
Habermas iniciou sua vida pública de escritor e filósofo social com a
publicação do ensaio crítico “Mit Heidegger gegen Heidegger denken: Zur Veröffentlichung von
Vorlesungen aus dem Jahre 1935”, no prestigioso jornal Frankfurter
Allgemeine Zeitung, em 25.07.1953.
[iv] Tratados a serem
publicados, completando a trilogia concebida a partir do Tractatus ethico-politicus: Genealogia do Ethos Moderno. Porto
Alegre: Edipucrs, 1999.
[v] Cf. J. Habermas, Communication and the Evolution of Society, trad. T.
McCarthy. Boston: Beacon, 1979; Zur Rekonstruktion des Historischen Materialismus. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1976.
[vi] Cf. J. Habermas, Between Facts and
Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Trans. W.
Rehg. Cambridge, MA: MIT Press, 1998, p. 4.
[vii] Cf. Luiz Bernardo Araújo, Religião e Modernidade em Habermas. São Paulo: Loyola, 1996.
[viii] Cf. J. Habermas, Entre Naturalismo e
Religião. Estudos Filosóficos. Trad. Flavio Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007, p. 278.
[ix] J. Habermas, O Discurso Filosófico da Modernidade. Trad. A.M. Bernardo et al. Lisboa: Dom
Quixote, 1990, p.14.
[x] J. Habermas, O Discurso Filosófico da Modernidade, op. cit., p.15.
[xi] Cf. Jacques Derrida, “Force de Loi: ‘Le fondement mystique de
l’autorité’”, Cardozo Law Review
11/5-6 (1990): p. 920-1045.
[xii] Cf. J. Rawls, The Law of Peoples. Cambridge, Mass.: Harvard
University Press, 1999; J . Habermas, Die Einbeziehung des Anderen. Studien
zur politischen Theorie. Frankfurt:
Suhrkamp, 1996.
[xiii] M. Weber. Gesammelte Aufsätze zur Religionsoziologie, I,
1963, p. 564. Apud Habermas, 1987, t. I, p. 217.
[xiv] Cf. A. Wellmer,
“Reason, Utopia, and the Dialectic of
Enlightenment,” in Richard J. Bernstein, Habermas and Modernity. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1985, p. 56.
[xv] R. J. Bernstein, Habermas and Modernity, op. cit., p. 4.
[xvi] A. Schopenhauer, Die beiden Grundprobleme der Ethik, Sämtliche Werke,
vol. III, Berlin: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2004, p. 481-815.
[xvii] Cf. R. Benedict, Patterns of Culture, London: Harcourt, 2005 [1934], p. 18s.; “Anthropology and the
Abnormal”, The Journal of General
Psychology 10 (1934): p. 59-82.
[xviii] Cf. J. Rachels, The Elements of Moral Philosophy. New
York: McGraw-Hill, 1986.
[xix] Cf. M. Horkheimer, Between Philosophy and Social Science.
Selected Early Writings. Boston:
MIT Press, 1993 [1931], p. 1-14.
[xx] Cf. J. Derrida, La voix et le
phénomène. Introduction au problème du signe dans la phénoménologie de Husserl.
[xxi] J. Habermas, Entre Naturalismo e
Religião, op.
cit., p. 167.
[xxii] Cf. J. Habermas, Glauben und Wissen.
Frankfurt: Suhkamp, 2002. Em inglês, Faith and Knowledge, incluído na versão inglesa de The Future of Human Nature. Cambridge:
Polity, 2003.
[xxiii] J.Habermas, The Future of Human Nature, op. cit., p.
84-85; cf. Entre Naturalismo e
Religião, op. cit., p. 190.
[xxiv] J.Habermas, Entre Naturalismo e Religião, op. cit., p. 128.
[xxv] J.Habermas, Entre Naturalismo e Religião, op. cit., p. 278.