GENEALOGIA
DA RAZÃO POLÍTICA:
NIETZSCHE
E O PERSPECTIVISMO *
Nythamar de Oliveira
* Versão original publicada no Tractatus ethico-politicus. Porto Alegre: Edipucrs, 1999. Cap. 5.
Große Dinge verlangen daß man von ihnen schweigt oder groß redet:
groß, das heißt, zynisch und mit Unschuld. (Nachlaß Nov. 1887)[1]
1 - Subjetividade, vontade de saber e vontade de poder
Seria uma tarefa demasiado ambiciosa e mesmo impossível
introduzir um grande autor como Friedrich
Nietzsche num tratado político-filosófico em torno de uma problemática
específica, delimitada, sobretudo em se tratando de demonstrá-la como tema central de um
pensamento tão complexo quanto enigmático. Como bem observou Martin Heidegger,
“‘Nietzsche’—der Name des Denkers steht als Titel für die Sache seines Denkens.”[2]
O nome do filósofo coincide, sobretudo neste caso, com o próprio assunto,
matéria, da filosofia em questão. Seria, portanto, impossível relacionar o
pensamento nietzschiano à moral ou à filosofia política sem caricaturar a
complexidade do seu corpus philosophicum
ou comprometer a originalidade de sua crítica a concepções modernas de filosofia
prática. Como
já o mostraram estudos de grande erudição, a filosofia nietzschiana do poder e
a ética da individuação que poderíamos derivar de sua genealogia são
indeterminadas, sobretudo no que diz respeito a parâmetros prescritivos de
universalização e normatividade. Todavia, pela leitura de Nietzsche que nos
oferece Michel Foucault, várias teses sobre a subjetividade e a correlação
saber-poder podem balizar nossa reformulação da questão do político numa
perspectiva nietzschiana, sem nenhuma pretensão de dela extrairmos uma teoria
moral ou mesmo uma teoria do poder.[3] Dentre essas teses, como o mostrou o estudo de Mark Warren, sete
podem ser assim formuladas:
1. Subjetividade implica poder;
2. Seres humanos são motivados pelo poder enquanto subjetividade;
3. O poder é relacional e não possui nenhum correlato ontológico;
4. O poder depende de valorações individuais de intenções e do mundo;
5. A organização interpretativa do poder em subjetividade depende de
recursos humanos, tais como
cultura, linguagem e experiências de vida;
6. O poder enquanto subjetividade é historicamente específico;
7. O conhecimento acerca do mundo humano implica interesses na
autoconstituição do sujeito.[4]
No presente texto, propomo-nos a mostrar como uma
genealogia da subjetividade moderna (Zur
Genealogie der Moderne, parafraseando Nietzsche) pode nos fornecer uma
chave hermenêutica para compreendermos a auto-superação do homem na própria
articulação entre ética e filosofia política, à luz do perspectivismo
nietzschiano. Neste sentido, como mostrou
Foucault, Nietzsche rompe com a modernidade na medida em que sua genealogia se
desenvolve no seu próprio interior, como
radicalização da crítica à metafísica já empreendida por Kant. Com efeito, Kant
e Nietzsche possuem projetos críticos originais, que divergem—apesar de algumas
convergências—não apenas nas suas formulações mas nos seus próprios
pressupostos e concepções de moral e de natureza humana. A fim de evitarmos a
conclusão simplista de que Nietzsche não compreendeu Kant, podemos articular a
leitura que Nietzsche faz de Kant em função da filosofia nietzschiana como um todo, tomada como
crítica da concepção moderna de “humanidade” (Menschlichkeit, o humanum,
a natureza humana). Somente à luz do diagnóstico do homem moderno, que Nietzsche
empreende de maneira quase profética como uma “psicologia tipológica” e uma
“história cultural” do niilismo europeu, poderemos entender a verdadeira alçada
do seu projeto crítico. Trata-se, portanto, de estabelecer a questão da
auto-superação (die Selbstüberwindung)
do homem moderno, em função dos conceitos correlatos da vontade de poder (der Wille zur Macht) e do eterno retorno
(die ewige Wiederkehr), elaborados de
maneira orgânica e interativa, quase metódicas, no interior de uma tradição
crítica a ser superada pela própria filosofia e para além dela.
A crítica tripartida subjacente à questão
antropológica—também encontrada em alguns escritos de Kant[5]
e do jovem Marx[6]--
é retomada por Nietzsche num dos esboços do segundo “livro” de seu
controvertido projeto A Vontade de Poder[7]
(II. Buch: Kritik der höchsten Werte):
1. Kritik der Religion
2. Kritik der Moral
3. Kritik der Philosophie (KSA 13:403; WP §§ 135-465)
Esta tríplice crítica é desenvolvida por Nietzsche com
o intuito de resgatar uma concepção de natureza humana que evite o impasse
dogmático-metafísico (o humanum como reflexo do divinum,
de um transcendens) ao mesmo tempo em
que articule os seus pressupostos histórico-imanentes (o gênero humano como espécie animal que se
distingue, pelo seu desenvolvimento e através da sua história, das outras).
Todavia, ao contrário de Kant e Marx, Nietzsche não apenas estende sua crítica
a concepções metafísicas de uma antropologia filosófica, mas ainda denuncia o
intento moral universalizante e escatológico de todo humanismo. O niilismo
nietzschiano, neste sentido, é consistentemente anti-humanista na medida em que
toda vontade de poder pressupõe um fim
terminal para o devir de uma humanidade que se quer em constante progresso. Se
a questão do homem, o homem em questão, o homem como uma perene remise en question, têm sido uma
característica maior da filosofia desde que Heráclito buscou no pensamento o
que havia de comum a todos os homens ou desde que Protágoras afirmou ser o
homem a medida de todas as coisas, é a
fortiori depois de Sócrates que, ao refutar tal medida no reino das
aparências e da multiplicidade, a metafísica institui uma instância superior,
inteligível, desta vontade de saber que consolida a passagem de um filosofar
sobre a physis a um filosofar formal,
teleológico e, portanto, inseparável de uma natureza humana. Com efeito, para
Nietzsche, o início do platonismo coincide com o início da metafísica do mesmo
modo como o
idealismo alemão reafirmaria sua fé no progresso humano. Assim como a imortalidade da
alma em Platão serviu de garantia à utopia da polis ideal, os postulados da
liberdade moderna são em última análise os penhores da emancipação política.
Assim como na
antiguidade, o pensamento moral e político da modernidade não pode prescindir
de uma metafísica da natureza humana. Nietzsche viu com muita clareza as
especificidades que separam a liberdade dos antigos da liberdade dos modernos,
mas a sua suspeita é dirigida ao próprio sujeito de tais liberdades, em
particular, ao “homem moderno”, “nós modernos”, herdeiros dos ideais liberais,
democráticos e socialistas da modernidade.
A fim de demonstrarmos nossa tese central—que a
genealogia apresenta-se como
princípio crítico de interpretação em Nietzsche—devemos situá-la no âmbito
textual do pensamento nietzschiano, em geral, e no contexto do que seria a
problemática central de seu perspectivismo político, em particular. Isto
significa, antes de mais nada, que buscamos uma unidade, ou pelo menos uma
coerência de pensamento nos aforismos e passagens dispersas em que o autor
Nietzsche evoca a questão do político. Como o mostrou Scarlett Marton em seu
estudo seminal sobre cosmologia e genealogia em Nietzsche,[8]
os primeiros grandes intérpretes de Nietzsche, como Karl Jaspers (Nietzsche: Einführung in das Verständnis
seines Philosophierens, 1936) e Karl Löwith (Nietzsches Philosophie der Ewigen Wiederkunft des Gleichen, 1935),
tiveram que lidar com as “contradições”
inerentes ao pensamento nietzschiano, oferecendo soluções um tanto
insatisfatórias como um apelo a uma “dialética real” ou um retorno primordial
aos pré-socráticos, respectivamente. Walter Kaufmann publicou estudos e um
livro—que se tornaria um clássico (Nietzsche:
Philosopher, Psychologist, Antichrist, 1950)[9]--
onde tais soluções foram devidamente refutadas. Foi constatado, então, que a
compreensão de Nietzsche dependia não apenas do trabalho exegético do todo de
sua obra (incluindo Der Wille zur Macht
e toda a coleção de Nachgelassene
Fragmente), mas ainda da interpretação da mesma nos termos defendidos pelo
próprio Nietzsche (uma hermenêutica nietzschiana). Com a publicação das não
menos polêmicas Vorlesungen (1936-40)
e Abhandlungen (1940-46) de Heidegger
em 1961, a importância da auto-interpretação dos textos nietzschianos—sobretudo
em função da Vontade de Poder—foi
novamente destacada. Como
nas tradições talmúdicas e luteranas, Nietzsche devia ser lido à luz do todo de
seu próprio texto, scriptura sui ipsius
interpres. Somente depois da recepção pós-heideggeriana, sobretudo na
França (com Pierre Klossowski, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Sarah Kofman,
Michel Haar, Jacques Derrida e outros), surgiu um interesse genuíno por um
“princípio” interpretativo de Nietzsche que não fosse comprometido por uma
perspectiva “dialética” nem “existencialista”—nem mesmo “heideggeriana”.
Parafraseando Gadamer, podemos afirmar que o problema hermenêutico em Nietzsche
deve ser formulado em termos da verdade e do método, precisamente pelo fato de
ter sido Nietzsche, como bem mostrou Deleuze, o primeiro—antes mesmo de Frege e
Husserl, e muito antes das escolas de filosofia analítica da linguagem—a haver
introduzido em filosofia e de maneira correlata os conceitos de significado (Sinn/Bedeutung) e valor (Wert).[10]
Segundo Deleuze, é precisamente na filosofia de Nietzsche e não na de Kant que
encontramos os meios, teóricos e práticos, de realizar a crítica tout court. Esta proposta tão polêmica
quanto inconclusiva foi retomada e reformulada por um outro grande intérprete
de Nietzsche, Foucault, cujas contribuições para a história cultural e para a
teoria social no vasto campo da epistemologia das ciências sociais renovaram o
debate sobre a questão do método e da racionalidade em filosofia, para além da Methodenstreit positivista e sua versão
habermasiana. Como
o próprio Gadamer já observara, em resposta aos ataques de Habermas, a nossa
experiência da linguagem (inclusive seus aspectos sistemáticos de
racionalidade) e a nossa experiência do mundo (inclusive do mundo da vida, Lebenswelt) são co-originárias e
simplesmente não podem ser dissociadas.[11]
Como veremos,
esta é uma tese fundamental da filosofia nietzschiana, e de uma má compreensão
da mesma decorrem todos os mal-entendidos acerca do seu perspectivismo
filosófico.
2 - Genealogia: verdade e
método
O que é filosofia? Esta é uma pergunta que permeia os
escritos de Nietzsche nos seus diferentes estágios de evolução—grosso modo, a
dos primeiros escritos, marcados pela filologia, pela paixão artística
(sobretudo musical) e pela amizade com Wagner (p.ex., Die Geburt der Tragödie, 1872, e as quatro Unzeitgemäße Betrachtungen, 1873-76); a segunda, depois da ruptura
com Wagner (1878), marcada pela desilusão da razão (Menschliches, Allzumenschliches, 1878-80, e Die fröhliche Wissenschaft, 1882); e a terceira, marcada pelas grandes
obras Also sprach Zarathustra
(1883-84, 1885), Jenseits von Gut und
Böse (1886), Zur Genealogie der Moral
(1887), Die Götzendämmerung (1889), e
pelos “inéditos” (Nachlaß) Der Antichrist (1895), Ecce Homo (1908), Der Wille zur Macht (1901,1906).[12]
Em todas estas obras a questão da filosofia está ligada a outras questões tais como a da vida, a da
existência humana e a da verdade. E em todas estas questões centrais o
experimentalismo nietzschiano emerge como
único denominador comum capaz de traduzir um método, Experiment e Versuch
crítico, perspectivista, genealógico. O problema da verdade constitui o grande
divisor de águas entre a arte e a ciência, na própria concepção da filosofia como terceiro gênero, impossível de ser classificado, pois
ao mesmo tempo apresenta-se como arte nos seus
fins e nas suas produções, embora exprima-se por intermédio de conceitos como uma ciência.[13]
Para Nietzsche, o filósofo é o homem do amanhã e do depois de amanhã, na medida
em que sempre se acha em contradição com o seu hoje (JGB 212; cf. 211), o
médico, artista e legislador que diz Sim ao vir-a-ser do homem pela superação,
ativa e criadora, de si mesmo, de seus valores morais e de seus sistemas de
verdade. Não existe portanto um método dialético ou transcendental adequado à
filosofia, uma vez que todo método trai uma vontade de verdade.(JGB § 36) Só podemos falar de “método” num sentido
imanente, prático, experiencial—com ênfase maior no hodos do que no meta--,
visto que estamos “sempre já”, parafraseando Heidegger, unterwegs, en route, na
nossa relação de “apropriação” lingüística do que somos, pensamos e conhecemos.
Assim, Nietzsche coloca a questão da verdade no mesmo nível de problematização
interpretativa que a questão do método. Afinal, o que é a verdade? A definição
mais completa que Nietzsche nos oferece, revelando o perspectivismo de todo
conhecimento, é aquela articulada num inédito de 1873, Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne:
“O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas,
metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram
enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo
uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são
ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e
sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em
consideração como metal, não mais como moedas.” (§ 1)[14]
Comentando esta passagem e comparando-a com definições
clássicas da retórica, Derrida e Kofman mostraram o quanto Nietzsche procurou
se distanciar das interpretações filosóficas do conceito de verdade e do
filosofar conceitual—com a metáfora subvertendo o papel generativo do conceito
filosófico.[15]
Contra a dominação aristotélico-hegeliana do inteligível sobre o sensível, em
que certas metáforas conquistam um privilégio conceitual com relação a outras,
Nietzsche já antecipara uma metaforicidade como não-conceito, exprimindo o que
é próprio do homem, neste contínuo metaphorein
(transpor, transferir, transformar, “la relève de la métaphore”) de apropriar e
expropriar o que é seu. Assim, a hermenêutica se radicaliza em “desconstrução”,
segundo a qual tudo é toujours déjà, immer schon, efeito de interpretações.
Sem o intento de avaliar os méritos da interpretação que Derrida extrai de
Nietzsche—via Heidegger e através de uma Abbau
de tradições metafísicas a serem desconstruídas e reinterpretadas--, apenas
assinalo a relevância da metáfora e da correlação entre semântica e ontologia
para uma compreensão do projeto crítico nietzschiano. Ainda no ensaio
supracitado, Nietzsche articula o “impulso à verdade” em termos da necessidade
instintiva que os homens têm de sobreviver como ser social, “da obrigação de mentir
segundo uma convenção sólida, mentir em rebanho, em um estilo obrigatório para
todos”. O que há de convencionalismo e de relativismo nesta formulação
nietzschiana não deve ser tomado prima
facie, como credo irracionalista, mas como expressão do seu perspectivismo
filosófico, consistente com a sua visão do mundo como interpretação humana. Que
o homem europeu, depois de milhares de anos, tenha chegado a um estado de
auto-consciência no qual a sua existência faça sentido, segundo Nietzsche, não
prova nada mais do que um desejo, demasiado humano, de que tal sentido seja
fundado e verdadeiro. Afinal, nada nos garante que a espécie humana será
preservada para sempre—diferentemente dos dinossauros, que foram extintos. A
racionalidade—e a socialidade—que nos diferencia de outras espécies é, para
Nietzsche, um efeito e não uma causa, “um meio para a conservação do indivíduo”
(§ 1) e não um fim em si. De resto, Nietzsche não advoga nenhuma promessa de
“melhorar” a humanidade (EH Prólogo § 1), pois nisto mesmo consiste o que se
chamou até então “moral” (cf. Crepúsculo
dos Ídolos “Os ‘melhoradores’ da humanidade” § 2). A genealogia
nietzschiana, como
crítica radical que problematiza as delimitações epistemológicas de um método e
de um sistema de verdades universais, parte portanto de um questionamento
histórica e culturalmente situado (Europa decadente), filosoficamente formulado
em torno da questão: “Quem somos nós?” Uma leitura até mesmo superficial dos
principais textos de Nietzsche fará sobressair o tema do homem e da humanidade
em relação aos demais temas de suas obras, nem que isto se dê de maneira
negativa, ou seja, como tema a ser desmascarado, desmistificado e
superado. Com razão, Nietzsche tem sido
mais conhecido pela metáfora do “além-do-homem” (Übermensch) do que por qualquer outro conceito. Assim, a tresvaloração
dos valores, o niilismo, a morte de Deus, o eterno retorno e a vontade de poder
estão todos tematicamente relacionados com o problema da auto-superação do
homem (die Selbstüberwindung des Menschen).
O anti-humanismo da crítica nietzschiana da religião, da moral e da metafísica
está, portanto, enraizado numa filosofia voltada para o futuro, sem no entanto
constituir-se numa mensagem utópica, escatológica ou messiânica. “Quem há de
preservar a humanidade [Menschlichkeit]?”, indaga Nietzsche,
“Quem vai erigir a imagem do homem [das Bild des Menschen] quando todos os
homens se sentirem apenas como serpentes em busca de si, provocando medo, tendo
relegado aquela imagem ao nível dos animais ou até mesmo dos autômatos?”
(Terceira Consideração Extemporânea,
“Schopenhauer Como
Educador” § 4). Nietzsche parece assumir uma missão profética, com a convicção
de um Daniel ou de um Jeremias, predestinado a anunciar a tragédia que está na
iminência de assolar povos e nações. Se há, todavia, um tom apocalíptico em diversos
textos de Nietzsche, a atonalidade da sua obra como um todo proíbe qualquer harmonização em
função de um determinado gênero literário ou filosofema. Daí resultam as
aparentes oposições (p.ex., apolíneo x dionisíaco, socrático x trágico) que só
serão superadas pela afirmação do amor
fati, a fórmula nietzschiana de “grandeza no ser humano: que alguém não
queira que nada seja diferente, nem para a frente nem para trás, nem em toda
eternidade” (EH “Por que sou tão vivaz” § 10). Este é, inquestionavelmente, o
único dever-ser da natureza humana, que Nietzsche traduz de maneira
autobiográfica no Ecce Homo: “Como tornar-se o que se
é”. Uma leitura dos aforismos do Nachlaß “Die Unschuld des Werdens”
dedicados à composição do Zarathustra[16]
revela o caráter antropológico da vontade de poder, concebida como o que torna a cosmologia e a ontologia
possíveis, de forma correlata ao eterno retorno do mesmo. Sem nos apegarmos à
rigidez de fórmulas de proporção, poderíamos dizer que a vontade de poder está
para o ser assim como
o eterno retorno está para o vir-a-ser do mesmo. O ser humano é o seu vir-a-ser
no dever-ser da sua própria superação. “Der Mensch ist etwas, das überwunden
werden soll”—“o homem é algo que deve ser superado”--, tal é a mensagem de
auto-superação na sua obra prima, Assim
Falou Zaratustra (ver, por exemplo, Z Vorrede 3, Vom Krieg und Kriegsvolke,
passim), e na opera nietzschiana em
geral (cf. JGB § 257; GM II 10, III 27; EH Z 6, Z 8, IV 5; WM 804, 983, 1001,
1051, 1027, 1060). A própria vontade de poder é decisivamente introduzida como vontade de superar-se a si mesmo (cf. Z Parte II,
esp. “Von der Selbstüberwindung”), não como
vontade psicológica à la Schopenhauer mas como
expressão cosmológica do eterno retorno (cf. Z Partes III e IV, esp. “Von alten
und neuen Tafeln”) e disto depende toda compreensão da filosofia de Nietzsche.
Assim, método e verdade na concepção nietzschiana do humanum não podem ser dissociados do sentido e do valor que
atribuímos à própria existência humana, ontológica e cosmologicamente. Como vemos, a genealogia cumpre a tríplice tarefa crítica,
aplicada à cultura, e por isso mesmo pode ser vista como experimento perspectivista que desafia
concepções metafísicas de antropologia filosófica.
3 - Crítica genealógica da
religião
A morte de Deus é, para Nietzsche, o maior de todos os
eventos da modernidade européia, o mais significante de todos, e isto deve ser
tomado tanto de uma maneira metafísica quanto histórico-cultural. Deve-se
questionar, portanto, a leitura heideggeriana que conclui—por razões
intrínsecas à hermenêutica ontológica de Heidegger—que “o próprio Nietzsche
interpreta o curso da história ocidental metafisicamente, e na verdade como ascensão e
desenvolvimento do niilismo”.[17]
Ora, Heidegger reduz a obra nietzschiana a uma crítica imanente da metafísica
que, precisamente por permanecer no interior de sua historicidade, não pode
superar o pensamento metafísico, em seu caráter ontoteológico, niilista. É
assim que a vontade de poder, de acordo com Heidegger, deve figurar ao lado de
grandes princípios metafísicos como
o eidos platônico, a substantia cartesiana e a Ding an sich kantiana. Assim como Marx não se desfez da
dialética de Hegel, Nietzsche teria apenas invertido a epistemologia de Kant,
sem no entanto conseguir pensar a sua essência, numa verdadeira postura
pós-metafísica. Em grande parte, o trabalho de Foucault procura desafiar esta
linha de interpretação, não somente pelas sérias imposições textuais na
compreensão da “vontade de poder” (que Heidegger praticamente reduz ao eterno
retorno e ao ser dos entes—das Sein des
Seienden), mas por questões de ordem discursiva, de método e de
hermenêutica. Por exemplo, na famosa passagem sobre a morte de Deus (FW § 125, Der tolle Mensch, complementada pelo §
343), onde Heidegger aproxima o sentido da “loucura” em proclamar a morte de
Deus de uma “insanidade”, a ser diferenciada da “insensatez” de negar Deus como
um descrente qualquer, Foucault se interessa pela loucura como um fenômeno mais
amplo, que não pode excluir uma leitura em favor de outra—por exemplo, a
psiquiátrica contra a teológica, ou a social contra a jurídica, questionando
inclusive as delimitações pressupostas nas definições de Wahnsinn (loucura) e Irrsinn
(insensatez, desrazão).[18] Afinal, a expressão “homem louco” é retomada
por Nietzsche como paródia da alusão do salmista ao “insensato” que diz no seu
coração: “Não há Deus” (Salmo 14:1) No
contexto original—que Nietzsche metaforicamente transpõe em grande estilo--, a
palavra do salmista (em hebraico, naval)
refere-se ao ímpio, ao descrente que, pelo fato mesmo de não crer em Deus,
revela-se néscio, insensato, louco—num sentido idêntico ao que será
tresvalorado (umwerten) por Paulo
para contrastar, num mundo de incrédulos, a “loucura de Deus” com a “sabedoria
dos homens”(1 Cor 1:18-25) e, mais tarde, por Lutero e Pascal na oposição
radical entre teologia e filosofia (“Le
dieu d’Abraham, d’Isaac et de Jacob n’est point le dieu des philosophes”).
O louco, portanto, que em plena manhã acende uma lanterna e corre ao mercado
gritando “Procuro Deus! Procuro Deus!” não pode ser identificado com o próprio
Nietzsche ou mesmo com a personagem Zaratustra—como parece fazê-lo Heidegger, na sua
identificação do “além-do-homem” com o mestre do eterno retorno.[19]
Sem dúvida, o homem louco aparece como
mensageiro de um evento (morte de Deus), que ele mesmo interpreta como problema metafísico:
“Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já
vou dizer-lhes. Nós o matamos—vós e
eu. Todos nós somos os seus assassinos. Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar?
Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? O que fizemos quando desatamos
a terra do seu sol? Para onde se move ela
agora? Para onde estamos nós indo? Para longe de todos os sóis? Não estamos continuamente
caindo? Para trás, para frente, para os lados,
em todas as direções? Ainda existe um “em cima” e um “embaixo”? Não estamos nos
afastando como
que através de um nada infinito? Não sentimos o sopro de um vácuo? Não
tornou-se ele mais frio? Não está anoitecendo o tempo todo? Não devemos agora
acender lanternas pela manhã? Não ouvimos um ruído dos coveiros a sepultar
Deus? Não já sentimos o cheiro da putrefação divina? Os deuses também se
decompõem. Deus morreu. Deus continua morto. E nós o matamos”.(FW § 125)
A loucura aparece, portanto, como experiência-limite de uma racionalidade
em crise, com o desmoronamento secularizante da crença em um fundamento que dá
sentido a nossa existência, a crença no que há de “verdadeiro ou falso” em
nossos valores. Nietzsche está obviamente usando uma linguagem metafórica, mas
a descrição um tanto crua da putrefação do Deus que morreu indica a proximidade
e a historicidade deste fenômeno cultural—afinal fomos nós, herdeiros
ocidentais da tradição judaico-cristã, quem criamos e nos submetemos ao jugo
divino. A tresvaloração nietzschiana não pode ser reduzida a uma inversão do
tipo feuerbachiana (homo homini deus est)
ou marxiana (camera obscura, Wirklichkeit x Vorstellung), nem mesmo a uma Umkehrung
da metafísica—como o interpreta Heidegger, ao eleger-se porta-voz da Überwindung da metafísica ocidental[20]--,
pois coube ao louco proclamar a maior vitória da razão nos seus combates
infindáveis contra o medo, a superstição e o dogma. Trata-se portanto de um
efeito de auto-superação, Selbstüberwindung,
da humanidade como conceito resultante de
processos civilizatórios, sendo a religião a expressão maior desta “experiência
da história da humanidade como
um todo” tomada individualmente, sobretudo na concepção judaico-cristã de uma Heilsgeschichte (“história da
salvação”): “Dieses göttliche Gefühl hieße dann—Menschlichkeit!” (FW § 337 “Die
zukünftige ‘Menschlichkeit’”). A crítica da religião em Nietzsche não conduz,
per se, à secularização antiteológica (Feuerbach) nem ao ateísmo positivista
(Marx), mas à auto-satisfação e serenidade—Heiterkeit,
este é o verdadeiro sentido da “joie de vivre” da Gaia Ciência (cf. §§ 290, 343)-- de um espírito livre, criativo,
criador. Para Zaratustra, “Deus é uma conjectura [Mutmaßung]”, mas não podendo
ser limitada ao que pode ser pensado [begrenzt sei in der Denkbarkeit] merece
ser tratada como
doença e vertigem. O Übermensch, por
outro lado, pode ser pensado, e cabe a nós criá-lo pelo querer de nossa
auto-superação. “O querer liberta [Wollen befreit]: eis a verdadeira doutrina
da vontade e da liberdade...” (Z II “Nas ilhas bem-aventuradas”). Ainda na
mesma passagem, Zaratustra exclama: “Para
longe de Deus e deuses me atraiu essa vontade [de criar], o que haveria para
criar, se deuses—existissem!” E acrescenta, “Mas ao homem ela me impele sempre
de novo, minha fervorosa vontade de criar; assim o martelo é impelido para a
pedra”. Para Nietzsche, a criação, no sentido mais amplo de poiesis, é a verdadeira vocação do homem
no exercício pleno de sua liberdade, pela ação da vontade de poder, de maneira
ativa e não reativa, sem o ressentimento que caracteriza o homem religioso.
Assim, a interpretação de Nietzsche que Foucault nos oferece faz jus ao
esteticismo do primeiro sem reduzi-lo a uma hermenêutica passe-partout mas destacando a poiesis
de “dar estilo ao caráter de alguém” [seinem Charakter “Stil geben”], numa
estética de existência estilizante, polifônica, perspectivista, sempre
multiplicando ad infinitum as
relações de codificação e descodificação de toda experiência—tomada como fato
ou interpretação humana. A morte de Deus é, portanto, um paradigma desta
postura crítica, precisamente no nivelamento de fatos e interpretações no mesmo
evento histórico.Por outro lado, a morte de Deus pode ser interpretada como
sinal por excelência dos tempos modernos, quando o triunfo da autonomia,
maioridade e emancipação da razão humana anuncia a iminência do grande
meio-dia, a plenitude das três grandes metamorfoses do camelo, do leão e da
criança (cf. Z II “Von den drei Verwandlungen” e IV “Das Zeichen”). O colapso
da racionalidade—entendida como “a disciplina da mente” [die Zucht ihres
Kopfes]--, para Nietzsche, não seria nada menos do que “a erupção da loucura
[Irrsinn], ... a erupção do prazer [Belieben] nos sentimentos, na visão, na audição,
o prazer na falta de disciplina da mente [Zuchtlosigkeit des Kopfes], a alegria
pela desrazão humana [die Freunde am Menschen-Unverstande].”(FW § 76) A
humanidade, até os dias de hoje, viveu em pleno acordo como amigos do “saudável senso comum” [gesunder
Menschenverstand], por uma questão de sobrevivência; o homem do futuro, segundo
o mesmo parágrafo, por estar cada vez mais consciente de tal convencionalismo,
é levado à suspeita e à descrença. Assim, nem a verdade nem a certeza são o
contrário da desrazão ou da loucura, mas “a universalidade e a coesão
universalizante de uma fé [die Allgemeinheit und Allverbindlichkeit eines
Glaubens], em resumo, o caráter não-prazeroso, não-arbitrário, dos juízos [das
Nicht-Beliebige im Urteilen]”. Portanto, se Nietzsche celebra a loucura, no
carnaval da morte de Deus, é porque esta inaugura uma nova era de
“des-deificação da natureza”: “Wann
werden wir die Natur ganz entgöttlicht haben! Wann werden wir anfangen dürfen,
uns Menschen mit der reinen, neu gefundenen, neu erlösten Natur zu vernatürlichen!” (FW § 109) O projeto de
reintegrar o homem na natureza—diferente da humanização da natureza proposta
pelo jovem Marx—não pode ser dissociado do motif
nietzschiano da morte de Deus. Os parágrafos 108 a 125 da Gaia Ciência constituem, com efeito, o contexto imediato que
culmina com a morte de Deus, a saber, a desdeificação da natureza, cujo cunho
religioso é claramente articulado em termos cosmológicos e não exclusivamente
histórico-ontológicos—como
resultaria de uma leitura que privilegie a história da metafísica na Vontade de Poder. Vemos, desse modo, que a questão da
racionalidade e da modernidade remete a uma problemática antropológica
complexa, onde a crítica de significados e valores requer um exame de diversos
aspectos correlatos—incluindo problemas de ordem epistemológica, histórica e
ética. Antes de concluirmos esta seção sobre a crítica da religião, é mister
aludirmos ao texto da Vontade de Poder.
Depois da composição do Crepúsculo dos Ídolos em 1888, no último ano de produção literária
antes de seu colapso mental, Nietzsche parece ter abandonado o projeto de
publicar uma coleção de aforismos chamada Der
Wille zur Macht, e decidiu escrever um livro, Versuch einer Umwertung aller Werte (que ora aparece como subtítulo,
ora como título de um conjunto de quatro livros), composto de quatro ensaios,
dos quais apenas O Anticristo veio a
ser escrito, juntamente com o prefácio. A edição final das mais de mil notas de
Nietzsche (1882-1888) que compõem este majestoso Nachlaß foi cuidadosamente empreendida pelo seu amigo Peter Gast, a
pedido da irmã do filósofo e passando por várias edições, que engendraram toda
uma polêmica em torno do valor filosófico destes “escritos póstumos”. É
interessante recapitularmos a divisão da obra em quatro livros que consta num
inédito de 1884:
I. O Niilismo Europeu
II. Crítica dos Valores Supremos
III. Princípios de uma Nova Valoração
IV.
Disciplina e Domesticação
A primeira subdivisão do Segundo Livro, “Crítica da
Religião”, como
observa Kaufmann, forneceria grande parte do material para a redação do Anticristo. A crítica nietzschiana da
religião divide-se ela mesma em três partes, a saber:
1. Gênese das Religiões
2. História do Cristianismo
3.
Ideais Cristãos
A correlação entre o poder e formação do sujeito (WM §
135), os temas da religiosidade sacerdotal e da moralidade servil, do niilismo
pessimista (156), do ressentimento (167), da passagem do judaísmo ao
cristianismo (181, passim), da moral de rebanho, da psicologia paulina (171,
173), da castração (204), da autonegação, em suma, da tresvaloração de valores
é desenvolvido segundo a mesma lógica encontrada em Além do Bem e do Mal e na Genealogia
da Moral. Nota-se, todavia, que o contexto enfatiza os aspectos
histórico-sociais da evolução do fenômeno religioso em função do niilismo. Este
pano-de-fundo histórico-metafísico favoreceria, portanto, a leitura
heideggeriana desde que não incorramos no erro estruturalista de impor tal grille de lecture à totalidade textual
da obra nietzschiana, como
numa formalização metódica.[21]
Sem dúvida, a nítida conexão entre a morte de Deus e o
desmoronar-se da ordem cósmica (FW § 125) --entendida como interpretação humana
da natureza—indica que Nietzsche está invocando aqui o Deus judaico-cristão, o
Criador dos céus e da terra, causa prima,
o Deus metafísico do teísmo—a passagem do hebraico ao grego constitui, de
resto, o pano-de-fundo cultural da tresvaloração da religião.(cf. AC §§ 37-45)
Em outro aforismo (FW § 343), abrindo o Livro Quinto (“Nós os Destemidos”),
acrescido à segunda edição da Gaia
Ciência em 1886, Nietzsche afirma “que Deus morreu” para significar “que a
crença em Deus tornou-se incrível”—dando seqüência ao incipit tragoedia do último parágrafo do Livro Quarto, idêntico ao
primeiro capítulo do Prólogo do Zaratustra.
A morte de Deus sinaliza, portanto, o início da tragédia a ser redescoberta no
horizonte infinito de mares nunca dantes navegados—cf. FW §§ 124, 281, 283,
289, 291, com alusões a Colombo
e Gênova. Zaratustra, o solitário arqueologista do significado, inicia o seu
ministério sob o signo da morte de Deus a fim de descobrir e explorar uma
humanidade descodificada por civilizações passadas, levando à decomposição, e
cujo destino trágico já se anuncia na própria negação da tragédia pela crença religiosa.
Conforme certas versões da morte de Deus, visto que o próprio niilismo pode ser
tanto “ativo” quanto “passivo” (WM § 22), o ateísmo nietzschiano seria
igualmente necessário e passível de ser superado (überwinden). Neste caso, nem o teísmo nem a sua negação dialética
bastariam para resolver a problemática nietzschiana. Assim como o projeto de
uma Umwertung com relação à Geschichte / Geschick do niilismo europeu, a sentença de Nietzsche “Gott ist tot” apontaria para uma
desconstrução quase-transcendental de uma “história de Deus”—por exemplo, entre
os teólogos da secularização, da Hoffnung
e da libertação, o nome de Nietzsche é associado ao de Feuerbach e Marx na
celebração de um mundo des-deificado, como processo cultural. Se tal
tresvaloração pode ser afirmada de maneira não-dialética permanece um problema.
O que nos parece conclusivo nas alusões críticas de Nietzsche ao Estado moderno
é a questão da fundamentação moral do político que, mesmo pretendendo
desvencilhar-se do direito divino dos reis mantém-se fiel a uma natureza humana
que se deixa dominar como um rebanho à procura do bom pastor. O modelo binário
da dominação (dominador x dominado) é, afinal, a marca maior do niilismo
reativo da vontade de poder reacionária –e a dialética é apenas uma acentuação
desse infindável círculo de inversões.
4 - Crítica genealógica da
moral
A longa citação em GM III §27 (cf. FW § 357)
--auto-citação do autor que se supera—é invocada por Nietzsche ao formular a
“lei da vida” [das Gesetz des Lebens] como “a lei da necessária ‘auto-superação’ que há na essência da vida”[das Gesetz
der notwendigen “Selbstüberwindung”
im Wesen des Lebens], a saber, que “[t]odas as coisas perecem por obra de si
mesmas, por um ato de auto-supressão” [Alle großen Dinge gehen durch sich selbst
zugrunde, durch einen Akt der Selbstaufhebung].[22] Esta grande tese nietzschiana está sem dúvida
implícita na doutrina da vontade de poder e da tresvaloração dos valores—como o revela o próprio
Nietzsche ao mencionar a “obra que está preparando” [ein Werk, das ich
vorbereite: “Der Wille zur Macht”.
Versuch einer Umwertung aller Werte]. Nas três dissertações explicitamente
dedicadas à crítica da moral—crítica à moral do ressentimento (cristianismo),
crítica à moralidade autônoma, auto-consciente (Kant), e crítica ao ideal
ascético (niilismo) (cf. EH GM)--, Nietzsche empreende de maneira metódica o
seu projeto de tresvaloração como “nova exigência” para a auto-superação do
“homem moderno”: “necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio
valor desses valores deverá ser colocado em questão” (GM Prefácio § 6). E para
tanto, é mister uma “genealogia”, uma formulação do conhecimento das condições
e circunstâncias do nascimento da moral, como uma wirkliche Historie der Moral, “cinza”—como um documento, em
oposição ao “azul” espiritual--, em suma, uma crítica histórica e uma história crítica imanentes,
ou, nas palavras de Foucault, “uma forma de história que dê conta da
constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objeto, etc., sem ter
que se referir a um sujeito, seja ele transcendente com relação ao campo de
acontecimentos, seja perseguindo sua identidade vazia ao longo da história”.[23] A genealogia se apresentaria, então, como
ponto culminante de uma crítica da moral, já esboçada e parcialmente elaborada
em Além do Bem e do Mal (1886), sendo
que nestes dois livros a moral de Kant é enfocada de maneira mais sistemática
do que na Gaia Ciência. A crítica da
moral emerge não tanto como um momento lógico
seguindo a supressão da religião, mas como
adjacente à própria genealogia do homem moderno. A modernidade não pode
ocultar, portanto, o caráter moral que a constitui como tal, na medida em que
“‘autônomo’ e ‘moral’ se excluem”, segundo Nietzsche—e contra Kant.(GM II § 2) Por outro lado, Nietzsche procura resgatar
uma concepção positiva do homem moderno, na antecipação do Übermensch que deve ser
celebrada hoje, no dever-ser deste devir inocente que é a auto-superação do
homem. Assim, o que há de “moral” é precisamente o que deve ser superado na concepção
da humanidade que culminou com o idealismo alemão. O pensar ateu e criativo do
“espírito livre” moderno opõe-se ao pensar teísta, metafísico, outrora guiado e
limitado pela crença religiosa. Nisto Kant e Nietzsche compartilham da mesma
convicção que é mister fazer uso do próprio entendimento, sapere aude, para que se realize o espírito de liberdade—apesar das
divergências quanto ao significado de tal liberdade, sobretudo nos conceitos de
“vontade” e “livre arbítrio”. Rousseau, Voltaire e os iluministas franceses
teriam sido fontes comuns para ambos, no empreendimento de uma filosofia
crítica. Mas a leitura que Nietzsche faz da Aufklärung—freqüentemente citada como exemplo de seu
suposto irracionalismo e anti-modernismo—difere da kantiana, não apenas nas
suas implicações políticas, mas ainda nos seus pressupostos históricos e
filosóficos. A questão da moral é de fundamental importância para uma correta
avaliação dessas divergências.
A princípio, Kant é estimado por Nietzsche como o grande vitorioso na luta filosófica contra o
otimismo do realismo ingênuo, precisamente por haver elevado os fenômenos ao
estatuto de realidade—assim como
Schopenhauer os tresvalora em Vorstellungen
(cf. GT §§ 18,19). Em 1886, no prefácio da segunda edição de Morgenröte, Nietzsche denuncia a sedução
da moral em Kant, uma crença que não podia ser fundamentada na sua própria
concepção da história e da natureza (M Pref. § 3). No mesmo livro, Nietzsche
ataca Kant pela dicotomia do sensível e do não-sensível na concepção do homem moral
(M §§ 132,481), mas permanece fiel ao ideal da Aufklärung(M § 197):
“Este Esclarecimento nós devemos agora levá-lo adiante—sem nos afligir
com o fato de que houve uma ‘grande revolução’ e, por sua vez, uma ‘grande
reação’ contra ele, e mesmo que ainda há: são de fato apenas jogos de ondas, em
comparação com a verdadeira inundação, em que nós boiamos e queremos boiar!”[24]
Nietzsche identifica-se, portanto, com o projeto
crítico de Kant, desde que não traia um ideal ascético, típico da moral cristã
(M § 339), que teria sido supostamente superado na própria crítica kantiana da
religião. Ora, Kant tem sido considerado, juntamente com Hegel e
Schleiermacher, o filósofo que maior influência exerceu sobre a teologia do
século XIX.[25] Para Kant, a religião em geral e o
cristianismo em particular não podiam mais ser concebidos sem a moral, visto
que a própria moral conduz inevitavelmente à religião (Moral also führt
unumgänglich zur Religion) e, mais do que isso, a moral não precisa da religião
pois daquela decorre toda formulação posterior da liberdade, a priori moral por excelência.(cf.
Prólogo à Primeira Edição da Religião).
Kant afirma no Prefácio à Segunda Edição da primeira Crítica que tivera “de abolir o saber
[das Wissen aufheben] a fim de abrir
espaço para a crença.” (KrV B
xxvix-xxx)[26]
Na verdade, esta é a indicação mais provável de mal-entendidos—talvez na
própria leitura que Nietzsche faz de Kant—sobre a epistemologia kantiana. Depois de haver mostrado a impossibilidade de
conhecermos o supersensível (na KrV) a religião—como Kant a expõe na sua obra
de 1793, Die Religion...—pode ser
reduzida a práticas morais, características de uma religião racional pura,
guiada por dois princípios fundamentais: o de persistir na prática das ações
morais (o dever) e na determinação de restabelecer uma disposição originária
para o bem (“a instauração da pureza
da lei como fundamento supremo de todas as nossas máximas”, Parte I,
“Observação Geral”). A religião da moralidade é portanto a religião de todos os
homens bons, uma formulação universal, moral, racional, do fenômeno da
religião. No seu comentário e
reinterpretação do cristianismo, enquanto doutrina e sistema de práticas, Kant
procura fundamentar a tese universal da religião pura. A doutrina do pecado
original é transformada em doutrina do mal radical na natureza humana, que é a
fonte positiva da ruptura humana no desregramento das relações normais do
sensível e da razão, o dogma da incarnação é substituído por um relato do
triunfo do bem sobre o mal, o papel do Jesus histórico sendo tomado pela idéia
da razão, do homem em estado de perfeição. Para Kant, tudo que é verdadeiro na
religião deve ser derivado da razão moral—caso contrário, tudo não passaria de
superstição. Sente-se aqui a influência que tais conceitos exerceriam sobre os Jugendschriften de Hegel. Kant vê no
triunfo militante da Igreja Universal a realização do ideal cosmopolita de
progresso para toda a humanidade. Com efeito, é precisamente contra a idéia
kantiana de “progresso”, retomada por Hegel, que Nietzsche empreende sua
crítica genealógica, já antecipada na Segunda Extemporânea (“Vom Nutzen und
Nachteil der Historie für Leben”, 1874). Trata-se, portanto, de articular
historicidade e humanidade de modo a evitar uma subordinação do desenvolvimento
humano a uma lógica do progresso e a um pressuposto transcendental da moral.
Quando Nietzsche critica a concepção utilitarista de Paul Rée (GM Prefácio §
4,7), não é apenas o historicismo evolucionista que procura combater mas
sobretudo a perspectiva metafísica e supra-histórica que tem sutilmente guiado
as historiografias até então. Assim, a grande contribuição de Nietzsche
consiste em haver denunciado uma concepção da história que pressupõe uma
unidade teleológica—típica da leitura soteriológica do cristianismo. Nietzsche
denuncia, portanto, a moral kantiana como
um retorno ao que já fora superado pela Aufklärung, a saber, a fé no que não
pode ser pensado—afinal, a religião, segundo Kant, não busca conhecer Deus,
contentando-se com o credo luterano da fé decorrente da revelação especial.
Esta linha de ataque é esboçada no Livro Segundo da WM (§§ 253-405, “Crítica da
Moral”):
1. Origem das Valorações Morais
2. O Rebanho
3. Observações Gerais sobre a
Moral
4. Como a Virtude é Feita para Dominar
5. O Ideal Moral
6.
Considerações Adicionais para uma Crítica da Moral
Toda a questão da moral, segundo Nietzsche, tem sido
reformulada como uma questão de fé, como um dogma, um sutil
ideal que se mantém fiel ao “além”—desde Platão até Kant e Hegel. A tese principal de Nietzsche, seguindo a
equivalência entre Leben e Wille zur Macht (WM § 254; KSA
12:160-161), é assim enunciada: “Não há fenômenos morais, há apenas uma interpretação moral
destes fenômenos. Esta interpretação é ela mesma de origem extra-moral”(WM §
258; KSA 12:149). Assim seríamos levados ao problema semiológico da metáfora—o
que pode perfeitamente ser descartado como
círculo vicioso ou como
hermenêutica ontológica, dependendo da perspectiva adotada. Nós optamos por uma
leitura hermenêutica crítica, textual, e nos limitaríamos a remeter tal alusão
ao texto inédito sobre verdade e metáfora. Não há, afinal, universais no léxico
nietzschiano. A “origem extra-moral” é
apenas o reverso da moral, a imoralidade do ressentimento e de todos os desiderata de ideais forjados para a
humanidade (WM §§ 266, 373, 390; KSA 12:276-277; 13:231-234; 56), supostamente
uma humanidade “melhor”. Esta é a grande pia
fraus da religião cristã. A crítica
da religião e a crítica da moral pressupõem uma concepção de sentido e valor—no
enunciado do bem e do mal—que não deveria escapar à crítica, como se tratasse de alguma “imaculada
concepção”. A evacuação do divino, ao contrário da kenose hegeliana que descobre sua plenitude pelo trabalho positivo
do negativo, não suscita nenhuma esperança de reconciliação. O niilismo é um
evento radical, irreversível:
“O que significa niilismo? Que os
valores supremos se desvaloram a si mesmos. O alvo está faltando; ‘por
quê?’ não encontra nenhuma resposta. (WP § 2;KSA 12:350)
Niilismo radical é a convicção de
uma absoluta insustentabilidade da existência quando se trata dos supremos
valores reconhecidos por alguém; e mais, a constatação de que nos falta o
mínimo direito de supor um ‘além’ ou um ‘em-si-mesmo’ das coisas que sejam
‘divinas’ ou moralidade incarnada. Tal constatação é conseqüência do cultivo da
‘veracidade’—portanto ela mesma uma conseqüência da fé na moralidade”. (WM § 3;
KSA 12:571)
A crítica radical que Nietzsche empreende à moral
cristã fornece a pista metodológica e a Sache
do seu experimentalismo, ainda no “Versuch eines Umwertung des alles Werten”.
Simplesmente por não haver nada (nihil)
além de Deus, uma vez que o verdadeiro, o bom e o belo são necessariamente
tresvalorados com a morte de Deus. A mesma sorte é, de resto, reservada aos
sistemas socialistas e democráticos. Deus morreu, portanto não há mais nada que
possa fundamentar, moral e ontologicamente, qualquer ser social. Não tanto por
não haver nada além de Deus, como
por não haver nenhum “além” fundamental. Resta-nos a imanência do mundo, locus por excelência da experiência do
vir-a-ser no ser. Nada mais, nada além, acima ou interiorizado em nosso mundo,
nada é-nos dado como
princípio ou fim, causa ou razão de ser e devir o que somos. Ao Paukenschlag kantiano que opõe “o céu estrelado
acima de mim” e “a lei moral dentro de mim” (KpV A 288), Nietzsche propõe uma gaya scienza e transgride os limites
próprios do que está “fora” e do que está “dentro”, na afirmação de uma lei sem
pureza nem fim.(FW Prelúdio 63, Sternenmoral)
5 - Crítica genealógica da
filosofia política
O sotaque provençal da sua “gaya scienza” traduz e
trai o “ideal do espírito livre” cultivado por Nietzsche naquele ano de
transição (1882, 1a. ed. da FW): o trovador, dançarino e poeta que
redescobre a filosofia telúrica, a filosofia do corpo e da superfície. Gaia é a
deusa Terra, a única a quem devemos fidelidade (FW §§ 362-377). Assim,
Nietzsche invoca o tema das grandes navegações (Gênova, Colombo, os mares que nos desafiam a explorar
o infinito). A humanidade do futuro está
condenada a ser guiada por este novo senso de historicidade (FW 337, “Die
zukünftige ‘Menschlichkeit’”), como se
pudéssemos sentir a história de toda a humanidade como nossa própria história, “wer die
Geschichte der Menschen insgesamt als eigne
Geschichte zu fühlen weiß...” A historicidade, juntamente com “o
conhecimento da fisiologia” e “um alvo no futuro”, estão entre as coisas que
faltam num filósofo (WM § 408; KSA 11:176-177). A “Crítica da Filosofia”
esboçada na Vontade de Poder (WM §§
406-465) segue, portanto, o filosofar a marteladas que caracteriza toda a obra
nietzschiana como projeto crítico de tresvalorações: “naturalização da moral”;
em lugar da sociologia “uma teoria das formas de dominação”; em lugar da
sociedade “o complexo cultural”; em lugar da epistemologia “uma teoria
perspectiva dos afetos”; em lugar da metafísica e da religião “a teoria do
eterno retorno” (WM § 462; KSA 12:342-343, 470). É neste sentido que o
perspectivismo nietzschiano vai desbocar numa crítica genealógica da filosofia
política.
Quando Nietzsche escreveu o prefácio para Jenseits von Gut und Böse em junho de
1885, o projeto de uma “filosofia do futuro”—explicitamente anunciado no
subtítulo--, já fora empreendido quarenta anos antes por um conterrâneo seu,
Ludwig Feuerbach. Mais de um século antes, Kant já havia publicado seus Prolegômenos à Toda Metafísica Futura
(1783). E no entanto, a alternativa nietzschiana à crítica kantiana e aos
hegelianismos de esquerda e de direita não poderia ser meramente reduzida a uma
ambiciosa superação da filosofia do seu tempo, como se Nietzsche pregasse mais um evangelho
do “além.” Além do Bem e do Mal é apresentado pelo próprio Nietzsche como um manifesto
aforismático do “bom Europeu”, encerrando uma tipologia crítica e uma psicologia
social do homem aufgeklärt que se
questiona enquanto “espírito livre”, sehr
freien Geister:
“Mas nós, que não somos jesuítas, nem democratas, nem mesmo alemães o
bastante, nós, bons europeus e
espíritos livres, muito livres, nós
ainda as temos, toda a necessidade do espírito e toda a tensão do seu arco! E
talvez também a seta, a tarefa e, quem sabe? a meta...”[27]
Parece-nos, portanto, que apesar de toda a
metaforicidade e de toda a disseminação de significantes, o texto nos oferece
um projeto interpretativo da existência humana. O fato de usar a primeira
pessoa do plural (wir) --cf. cap. 6
“Wir Gelehren”, “Nós Eruditos”—incluindo, “com cinismo e inocência”, o próprio
autor deste prelúdio filosófico, já revela a pertinência ético-política e o
caráter polêmico desta coleção de pensamentos. O estilo enigmático de Nietzsche
não deve obstruir nossa compreensão do assunto em questão, que constitui o
objeto último da metafísica, a verdade na apreensão dos conceitos do mundo
(cosmologia), de Deus (teologia) e do ego (psicologia). Não é à toa que
Nietzsche introduz no prólogo a temática do livro com o falocêntrico enigma:
“Supondo que a verdade seja uma mulher...” A metáfora não poderia ser mais
esteticista: que os filósofos, desde Platão até os idealistas alemães—todos
eles homens (i.e. do sexo masculino),-- fracassaram na arte de seduzir uma dama
que nunca se deixou conquistar—a verdade como
mulher-objeto, la femme-vérité. O
radicalismo do esteticismo nietzschiano não reside, todavia, na redução da
filosofia a uma relação estética de apropriação e expropriação do belo e do
verdadeiro, mas no imanentismo antidogmático do perspectivismo que lhe é
correlato. Se o filósofo é tido por um artista manqué, o seu fracasso consiste precisamente em buscar transcender
o mundo enquanto obra de arte, desvalorizando-o como tal. A oposição platônica do sensível ao
inteligível, da qual a oposição mimesis-episteme é um caso particular, permeia,
segundo o diagnóstico nietzschiano, todo o desenvolvimento da metafísica de
valores que unem o realismo aristotélico ao idealismo kantiano:
“Considere-se toda moral [Moral]
sob esse aspecto: a ‘natureza’ nela é que ensina a odiar o laisser aller, a liberdade excessiva, e que implanta a necessidade
de horizontes limitados, de tarefas mais imediatas—que ensina o estreitamento de perspectivas [Verengerung der Perspektive], e em
determinado sentido também a estupidez, como condição de vida e crescimento.
‘Deves obedecer seja a quem for, e por muito tempo: senão perecerás, e perderás
a derradeira estima por ti mesmo’—este me parece ser o imperativo categórico da
natureza, o qual certamente não é ‘categórico’, como dele exige o velho Kant
(daí o ‘senão’--), nem se dirige ao indivíduo (que importa a ela o indivíduo!),
mas sim a povos, raças, eras, classes, mas sobretudo ao inteiro bicho ‘homem’,
ao homem”. (JGB § 188)
Assim, no primeiro capítulo ao tratar dos
“Preconceitos dos Filósofos”, Nietzsche desmascara a vontade de verdade (der Wille zur Wahrheit) através de um
questionamento do valor (Wert) desta
vontade: “A crença fundamental dos metafísicos é a crença nas oposições de valores”.(JGB § 2) A grande questão para
Nietzsche é a de determinar a motivação, o interesse, o valor de opor um “não”
a um “sim”, ao devir inocente do mundo, onde o homem é apenas um vetor num
complexo campo de forças (JGB § 36, 230, 257). A fim de reconstituirmos a
concepção nietzschiana de agência e sua correlação de subjetividade e poder,
seria necessário situar a valoração do ser “humano” num jogo de forças
totalizante (Gesamtspiel), onde a
vontade de poder é definida como
praxis, pathos, physis,
interpretação, auto-reflexão e história. Segundo Nietzsche, “o mundo visto de
dentro, o mundo definido e designado conforme o seu ‘caráter inteligível’—seria
justamente ‘vontade de poder’, e nada mais”.(JGB § 36) Nisto, Kant e Nietzsche
estão de acordo quanto à démarche
crítica adotada para elucidar o problema da ação humana. É interessante ainda
notarmos como
tal concepção da Wille zur Macht já
antecipa a estruturação ontológica do ser-no-mundo mais tarde articulada por
Heidegger. Não se deveria portanto reduzi-la a um substratum psicológico (como o faz Lukács, na Destruição
da Razão) ou ao próprio devir do ser (como o
sugere Heidegger, Nietzsche, vol. 1, Der Wille zur Macht als Kunst), como se Nietzsche
estivesse ingenuamente reformulando uma prima
causa metafísica. Sem dúvida, a tensão entre uma concepção modernista de
dominação da natureza (Hobbes) e uma concepção romântica de um retorno
harmônico à natureza (Rousseau) parece persistir na elaboração nietzschiana da
vontade de poder—talvez até por causa da sua leitura dos pré-socráticos, em
particular de Heráclito e Parmênides. Uma leitura atentiva dos parágrafos 4,
10-12, 16-19 de JGB leva-nos a reformular a questão nietzschiana da ação nos
seguintes termos: “Visto que a história da metafísica não nos oferece nenhuma
teoria da ação que não seja mais um efeito desta história, um niilismo reativo
que motiva todo pensamento ocidental, como poderíamos explicar de maneira
inteligível o agir e o existir humano?” Nietzsche critica concepções
metafísicas de agência (alma,
livre arbítrio e vontade) para resgatar as noções clássicas de racionalidade,
liberdade e querer, num único conceito historicizado de praxis humana. Com
efeito, vontade de poder e genealogia são conceitos complementares, na medida
em que toda uma gênese histórico-cultural se efetiva no agir humano. A
correlação ação-historicidade é reconhecida por Nietzsche como um dos grandes legados da Aufklärung alemã (WM § 1058; KSA 10:646-647):
“Os dois maiores
pontos filosóficos (legados pelos alemães):
a) o do
vir-a-ser, do desenvolvimento;
b) aquele segundo o valor da
existência (embora a forma infeliz do pessimismo alemão deva ser primeiro
superada!)”
Sem dúvida, Nietzsche não encontra em Kant a
articulação hegeliana da religião enquanto fenômeno moral-cultural com a
auto-consciência histórica—apesar das teses esboçadas nos escritos de Kant
sobre a história.[28]
Para Nietzsche, uma vez compreendida como
apropriação e reprodução de determinações históricas, a ação deve ser
desteleologizada, evacuada de toda lógica metafísica de progressus (GM II 12). “Em todo querer existe, primeiro, uma
pluralidade de sensações, a saber a sensação do estado que se deixa [von dem weg], a sensação do estado
para o qual se vai [zu dem hin], a
sensação desse ‘deixar’ e ‘ir’ mesmo...”(JGB § 19) O mundo é, antes de tudo,
relacionalmente e afetivamente presente, o mundo se efetiva através da nossa
existência que age no mundo e através do mundo. Nietzsche concebe a vontade de
poder, portanto, como
um pathos de personificação, de
incorporação, desafiando a própria oposição do “ativo” ao “passivo”. No mesmo texto (JGB § 19), Nietzsche
acrescenta o aspecto interpretativo da vontade de poder e, além do complexo deste
sentir e pensar, o “afeto do comando” que desvela o caráter auto-reflexivo da
vontade de poder. A ação nunca é um fim em si mesma, mas um meio para a
auto-experiência da agência, através da incorporação (Einverleibung) e apropriação (Aneignung)
de mundos experienciais e interpretativos. Daí a resultante historicidade das
práticas humanas: o sujeito sempre é um efeito histórico, sem pressupor
determinismo nem teleologia (WM § 552; KSA 12:383-386). O agir é sempre já temporal, historicizante, na medida em que
é efetivo (wirklich) e não
originariamente eficiente (no sentido aristotélico de causalidade). Se a
metafísica moderna restringe toda causa à terceira—na classificação
aristotélica das quatro causas--, reduzindo assim o efeito a um fato, a
tresvaloração nietzschiana busca resgatar a efetividade do fato numa crítica
radical que se reconhece acima de tudo como
uma interpretação. Para Nietzsche não há fatos sem interpretações, pois todo
fato é, sempre já (immer schon), uma
interpretação.[29]
Chegamos, assim, ao problema antropológico, deslocado
pela história efetiva da metafísica, após o desmascaramento das grandes
filosofias que ocultaram o fenômeno humano. Como Platão, pela boca de Sócrates,
abordou o problema do gênero (genos)
para classificar de maneira lógica o que é que distingue o sofista do filósofo
e do político, o que é o justo e o verdadeiro, Nietzsche também serve-se de um
método classificatório sem, todavia, chegar a nenhum paradigma de
classificação. A idéia platônica do bem, de acordo com a leitura nietzschiana
da metafísica, seria subseqüentemente mascarada como causa final em
Aristóteles, substância em Descartes ou coisa-em-si em Kant, sem lograr
explicar a razão de ser que une e opõe, por analogia, o ser humano a todos os
outros seres. Daí a aporia socrática de saber nada saber, pois a vontade de
saber sempre trai a pressuposição de acreditar que deve haver um sentido neste
imenso cosmos de significações. O homem não pode constituir-se uma classe
superior, nem sua razão numa classe de classes. Resta-nos apenas classificar
segundo a ficcionalidade de nossas interpretações humanas. É assim que
Nietzsche vai dispor de tipologias e observações comparativas sobre povos,
raças e nações da Antiguidade, da Renascença e da Modernidade não apenas para
ilustrar sua doutrina da vontade de poder mas para sustentá-la de maneira
histórica, imanente ao devir da espécie humana. A própria imposição do caráter
do ser ao devir constitui, de acordo com Nietzsche, a suprema vontade de poder.
Mas o caráter do ser não é, como se poderia pensar, estabilidade e permanência,
mas significa, ao contrário, “que toda recorrência é a aproximação mais próxima
de um mundo do devir a um mundo do ser”.(WM § 617; KSA 12:312-313) Nisto
consiste o amor fati (WM §1041; KSA
13:492-493; EH II,10), a auto-afirmação dionisíaca do homem que quer sua vida e
o mundo inteiro acontecendo exatamente como tem sido—o eterno retorno do mesmo.
O destino do homem reside, afinal, no seu caráter—e vice-versa.
6 - Crítica genealógica da
modernidade
Que o homem a ser superado, é o homem moderno pode ser
inferido pela associação incisiva entre o Übermensch
e o Zukunft, o futuro, o porvir
nietzschiano do vir-a-ser. Por outro lado, o conceito do “moderno” permanecerá
problemático no estudo do pensamento nietzschiano, na medida em que sirva
apenas para balizar projetos radicais—sejam eles futuristas ou anarquistas,
niilistas ou pós-modernos. Estudos aprofundados sobre Nietzsche e a filosofia
política confirmaram a impossibilidade—ou pelo menos, a imensa dificuldade—de
reconciliar a ética kantiana com o esteticismo nietzschiano num projeto
pós-moderno (Warren)
ou numa reconstrução de um liberalismo radical (Connolly).30 Não foi o propósito deste capítulo
examinar as implicações políticas e sociais da filosofia nietzschiana ou de sua
concepção do homem moderno. Limitamo-nos a mostrar que a genealogia
nietzschiana é uma continuação do projeto crítico da modernidade, apesar de não
compartilhar das mesmas pressuposições culturais da Aufklärung, mas radicalizando e subvertendo, pela suspeita, os
próprios conceitos de racionalidade e de filosofia a ponto de romper com sua
especificidade de “moderno”—viabilizando, nolens
volens, o conceito do “pós-moderno”. Genealogia e crítica, verdade e
método, arte e ciência, siginificado e valor, ontologia e semântica—estes são
alguns dos problemas na filosofia de Nietzsche que podem nos guiar na
formulação da sua problemática antropológica. Compreender a “genealogia”
nietzschiana como uma “crítica” radical que desafia o método metafísico-transcendental
adotado pela Kritik kantiana, em
termos filosóficos e históricos, constitui não apenas uma tese mas também um
prelúdio a um projeto inacabado de articular um discurso genealógico da
modernidade, da qual ainda não saimos.
A misantropia anárquica, o anti-humanismo imoral e a
aristocracia anti-democrática geralmente associados ao nome de Nietzsche—mesmo
se descontarmos aqui todas as especulações infundadas de um protofascismo
anti-semita31--, facilmente nos
levariam a concluir que o esteticismo nietzschiano nada teria a contribuir num
debate sobre antropologia, e menos ainda sobre ética e política. Todavia, é
exatamente neste campo minado de mal-entendidos que podemos redirecionar a
crítica nietzschiana num sentido “pós-metafísico” que faça jus ao seu projeto
original de tresvaloração de todos os valores pela auto-superação do ser
humano. A crítica da religião que culmina com a morte de Deus traduz, com
efeito, a irreversibilidade histórica dos avanços humanos na sua busca
constante de si próprio, de um sentido para o seu existir, sem o recurso a uma
razão que o transcenda. A impossibilidade de fundamentar o sentido da
existência fora da jurisdição humana, além das suas experiências históricas, é
o que faz de Nietzsche um filósofo moderno, cuja concepção do gênero humano não
difere essencialmente das que já haviam sido formuladas ou esboçadas por Kant e
Feuerbach. A grande diferença entre Nietzsche e estes filósofos é que Nietzsche
vai também questionar a própria dimensão humana, demasiadamente humana,
subjacente a toda crítica filosófica, ou seja, da perspectiva de “quem” fala,
de “quem” está por detrás de tal discurso filosófico da modernidade:
“Crítica do homem
moderno (sua mendacidade moral):--o ‘homem bom’ corrompido e seduzido por más
instituições (tiranos e sacerdotes); --a
razão como autoridade; --a história como uma superação de erros; --o futuro como progresso ...—o reino da ‘justiça’ (o
culto da ‘humanidade’); --‘liberdade’” (WM § 62; KSA 12:411-412).
Em Além do Bem e
do Mal—sobretudo nos capítulos 6 a 9--
encontramos além de todas as análises antropológicas, psicológicas e
genealógicas—sobretudo nos primeiros capítulos, 1 a 5--, o que poderíamos
chamar de “dimensões propriamente etnológicas” desta obra e, de uma maneira
geral, da opera nietzschiana.
Obviamente, a palavra “etnologia” não pode ser usada aqui no sentido moderno de
uma “antropologia cultural”, de uma ciência que estuda, do ponto de vista
cultural, povos “primitivos” e os compara com as formações histórico-sociais
das grandes civilizações orientais, mesopotâmicas, européias, etc. Na verdade,
o mesmo deve ser dito com respeito à antropologia e à psicologia em Nietzsche,
uma vez que permanecem filosóficas, no sentido de esclarecer nosso conhecimento
do gênero humano sem, no entanto, fundarem uma nova ciência específica (Fachwissenschaft). Portanto, o discurso nietzschiano sobre raças,
civilização e valores culturais deve ser reexaminado aqui dentro de uma
perspectiva filosófico-antropológica, fazendo jus ao seu contexto histórico-cultural
de Aufklärung tardia e de crítica a
filosofias políticas modernas. Por outro lado, a originalidade do projeto
nietzschiano não apenas resiste a classificações prévias do que fora até então
formulado como antropologia, psicologia e genealogia, mas rompe com todas as
aspirações científicas dessas doutrinas que nunca disfarçaram o seu teor
fundamentalmente metafísico. É precisamente nesta sua démarche antimetafísica que Nietzsche pode ser considerado um dos
grandes precursores da etnologia contemporânea, sobretudo no que tange às
articulações histórico-sociais de processos civilizatórios em face do problema
da alteridade. Diga-se de passagem que o problema da identidade cultural de um
povo, aquilo que o constitui como
um ethnos, genos diferenciado de outros, não pode ser pensado sem ao mesmo
tempo remeter-nos a uma análise genealógica dos valores morais e culturais (ethos) deste povo. É nesta articulação
do histórico e do social em um único discurso que reside, em última análise, a
grande contribuição nietzschiana para uma concepção não-metafísica do ser
humano, como um ente indeterminado a ser constituído pela vontade de poder, de
maneira ativa, em sua regionalidade ontológica e em suas racionalidades de
auto-superação. A matriz de um tal discurso encontra-se, como foi visto, na concepção nietzschiana da
“vontade de poder” (der Wille zur Macht).
A tarefa etnológica esboçada em JGB pode ser elucidada em função do
conceito-chave da vontade de poder, de modo que possamos compará-la a
formulações modernistas (“iluministas”) da questão antropológica.
Assim como
o projeto kantiano—e a filosofia da Aufklärung
em geral—tem sido caracterizado por uma preocupação antropocêntrica, Nietzsche
esboçou uma verdadeira “crítica do homem moderno” (WM § 62, supracitada),
coroada por uma genealogia da “humanidade” moderna. Para Nietzsche, trata-se de
estudar a “modernidade na perspectiva da metáfora da nutrição e da digestão”
(WM § 71; KSA 12:464), i.e., a cultura da fast
food—Nietzsche fala do “tempo de influxo prestissimo”--, a incapacidade de digerir, de ruminar, de meditar,
e até mesmo de pensar, que caracterizam o homem decadente de uma modernidade
que perdeu totalmente o senso da virtù
renascentista e da autenticidade (WP §§ 74-78;KSA 11:474-475; 12:121-122, 301, 384,
435). Em suma, o advento do niilismo reativo, pessimista, que caracteriza a
modernidade de fin de siècle, só pode
ser superado no seu acontecer (geschehen),
tornado fato, interpretado, tresvalorado de maneira positiva e ativa. O que é
código de conduta e veracidade para uma época pode ser descodificado num
sentido de inversão radical de valores, sem perdas nem ganhos, mas na simples
preservação de quanta de forças. Assim, a codificação de uma moral, de uma
cultura de um povo, é sempre acompanhada de descodificações, daí a
interpenetração dos princípios apolíneo e dionisíaco na formação cultural de
povos e nações. Ao ethos cultural de um povo, aos mores estruturados pelo hábito e pelo costume, correspondem sempre
já instintos de autopreservação, de auto-afirmação como
espécie, genos que gera e se reproduz na gênese de um destino
comum. Seria, portanto, fundamental separar, na nossa leitura de Nietzsche e em
particular na leitura da crítica genealógica, o que é pertinente para uma
compreensão do princípio interpretativo nietzschiano e o que não passa de
idiossincrasia do autor, no seu contexto peculiar de Alemanha de fin de siècle. O que há, portanto, de
anti-semitismo, misoginia, anti-socialismo e até mesmo ateísmo no texto
nietzschiano pode sempre ser descodificado em favor de uma leitura polifônica,
pluralista, não-exclusiva—afinal não são poucos os grupos anti-racistas,
feministas, socializantes e até mesmo religiosos que hoje se apropriam da obra
nietzschiana. Mas isto não adiantaria em nada o nosso interesse filosófico em
fundamentar uma ética ou uma crítica da sociedade sem cairmos no impasse das
idiossincrasias de quem critica o seu tempo, uma vez que o relativismo
cultural, etnológico, do homem moderno não deve ser reduzível a um relativismo
filosófico. Assim, concluindo de maneira um tanto provisória, poderíamos dizer
que a grande contribuição nietzschiana para o debate etnológico consiste, como
Deleuze e Guattari observaram, na formulação do problema fundamental do socius
primitivo em termos de código, inscrição, marca, ou seja, que a sociedade é
“inscritora” e não “troquista”, que a marca (no corpo, na terra) é o que define
uma cultura nas suas relações de contrato e de dívida.32 Afinal, para Nietzsche, o grande
problema com a verdade e a ciência reside mesmo na sua pretensão de
fundamentação a um nível que escape às normatizações culturais, como se fôra uma
instituição social cuja auto-ilusão garantisse a sua objetividade no próprio
esquecimento de sua gênese antropomórfica. Se Kant foi quem primeiro equacionou
o problema antropológico numa perspectiva pragmática—onde abundam as
idiossincrasias e os estereótipos sobre sexo, etnia e classe social--, coube a
Nietzsche o mérito de suspeitar e problematizar a distinção kantiana entre uma
moral cultural, que pode ser histórica e socialmente reconstituída, e a lei
moral que possibilita, de forma transcendental, todo agir moral dos homens. Se
Kant nos legou as aporias de auto-referencialidade de uma crítica da razão
moderna, foi Nietzsche quem melhor situou as cisões da racionalidade na própria
subjetividade moderna. Por isso mesmo,
Nietzsche não buscou reconciliar o universal e o particular numa única
antropogênese, tampouco contentou-se com uma mera inversão do modelo teológico—como o fazem os idealistas alemães, na concepção do homem como Gattungswesen. Nietzsche não nos fornece uma teoria social, nem
mesmo uma teoria do poder que pudesse nos ajudar a reformular uma crítica
social. De tudo que nos foi legado de seu formidável corpus philosophicum e apesar dos riscos sinistros de uma má
apropriação da sua “grande política” (“die große Politik”, KSA 13: 638),
contentamo-nos com as grandes problematizações nietzschianas do político, que
podem nos ajudar a rever conceitos e métodos de sistematização de nossas representações
da modernidade.