GENEALOGIA DA RAZÃO POLÍTICA:

NIETZSCHE E O PERSPECTIVISMO *

 

Nythamar de Oliveira

* Versão original publicada no Tractatus ethico-politicus. Porto Alegre: Edipucrs, 1999. Cap. 5.

 

Große Dinge verlangen daß man von ihnen schweigt oder groß redet:

groß, das heißt, zynisch und mit Unschuld. (Nachlaß Nov. 1887)[1]

 

 

1 - Subjetividade, vontade de saber e vontade de poder

Seria uma tarefa demasiado ambiciosa e mesmo impossível introduzir um grande autor como Friedrich Nietzsche num tratado político-filosófico em torno de uma problemática específica, delimitada, sobretudo em se tratando de demonstrá-la como tema central de um pensamento tão complexo quanto enigmático. Como bem observou Martin Heidegger, “‘Nietzsche’—der Name des Denkers steht als Titel für die Sache seines Denkens.”[2] O nome do filósofo coincide, sobretudo neste caso, com o próprio assunto, matéria, da filosofia em questão. Seria, portanto, impossível relacionar o pensamento nietzschiano à moral ou à filosofia política sem caricaturar a complexidade do seu corpus philosophicum ou comprometer a originalidade de sua crítica a concepções modernas de filosofia prática. Como já o mostraram estudos de grande erudição, a filosofia nietzschiana do poder e a ética da individuação que poderíamos derivar de sua genealogia são indeterminadas, sobretudo no que diz respeito a parâmetros prescritivos de universalização e normatividade. Todavia, pela leitura de Nietzsche que nos oferece Michel Foucault, várias teses sobre a subjetividade e a correlação saber-poder podem balizar nossa reformulação da questão do político numa perspectiva nietzschiana, sem nenhuma pretensão de dela extrairmos uma teoria moral ou mesmo uma teoria do poder.[3]  Dentre essas teses, como o mostrou o estudo de Mark Warren, sete podem ser assim formuladas:

1. Subjetividade implica poder;

2. Seres humanos são motivados pelo poder enquanto subjetividade;

3. O poder é relacional e não possui nenhum correlato ontológico;

4. O poder depende de valorações individuais de intenções e do mundo;

5. A organização interpretativa do poder em subjetividade depende de recursos humanos, tais como cultura, linguagem e experiências de vida;

6. O poder enquanto subjetividade é historicamente específico;

7. O conhecimento acerca do mundo humano implica interesses na autoconstituição do sujeito.[4]

 

No presente texto, propomo-nos a mostrar como uma genealogia da subjetividade moderna (Zur Genealogie der Moderne, parafraseando Nietzsche) pode nos fornecer uma chave hermenêutica para compreendermos a auto-superação do homem na própria articulação entre ética e filosofia política, à luz do perspectivismo nietzschiano. Neste sentido, como mostrou Foucault, Nietzsche rompe com a modernidade na medida em que sua genealogia se desenvolve no seu próprio interior, como radicalização da crítica à metafísica já empreendida por Kant. Com efeito, Kant e Nietzsche possuem projetos críticos originais, que divergem—apesar de algumas convergências—não apenas nas suas formulações mas nos seus próprios pressupostos e concepções de moral e de natureza humana. A fim de evitarmos a conclusão simplista de que Nietzsche não compreendeu Kant, podemos articular a leitura que Nietzsche faz de Kant em função da filosofia nietzschiana como um todo, tomada como crítica da concepção moderna de “humanidade” (Menschlichkeit, o humanum, a natureza humana). Somente à luz do diagnóstico do homem moderno, que Nietzsche empreende de maneira quase profética como uma “psicologia tipológica” e uma “história cultural” do niilismo europeu, poderemos entender a verdadeira alçada do seu projeto crítico. Trata-se, portanto, de estabelecer a questão da auto-superação (die Selbstüberwindung) do homem moderno, em função dos conceitos correlatos da vontade de poder (der Wille zur Macht) e do eterno retorno (die ewige Wiederkehr), elaborados de maneira orgânica e interativa, quase metódicas, no interior de uma tradição crítica a ser superada pela própria filosofia e para além dela.

A crítica tripartida subjacente à questão antropológica—também encontrada em alguns escritos de Kant[5] e do jovem Marx[6]-- é retomada por Nietzsche num dos esboços do segundo “livro” de seu controvertido projeto A Vontade de Poder[7] (II. Buch: Kritik der höchsten Werte):

1. Kritik der Religion

2. Kritik der Moral

3. Kritik der Philosophie (KSA 13:403; WP §§ 135-465)

 

Esta tríplice crítica é desenvolvida por Nietzsche com o intuito de resgatar uma concepção de natureza humana que evite o impasse dogmático-metafísico (o humanum como reflexo do divinum, de um transcendens) ao mesmo tempo em que articule os seus pressupostos histórico-imanentes (o gênero humano como espécie animal que se distingue, pelo seu desenvolvimento e através da sua história, das outras). Todavia, ao contrário de Kant e Marx, Nietzsche não apenas estende sua crítica a concepções metafísicas de uma antropologia filosófica, mas ainda denuncia o intento moral universalizante e escatológico de todo humanismo. O niilismo nietzschiano, neste sentido, é consistentemente anti-humanista na medida em que toda vontade de poder  pressupõe um fim terminal para o devir de uma humanidade que se quer em constante progresso. Se a questão do homem, o homem em questão, o homem como uma perene remise en question, têm sido uma característica maior da filosofia desde que Heráclito buscou no pensamento o que havia de comum a todos os homens ou desde que Protágoras afirmou ser o homem a medida de todas as coisas, é a fortiori depois de Sócrates que, ao refutar tal medida no reino das aparências e da multiplicidade, a metafísica institui uma instância superior, inteligível, desta vontade de saber que consolida a passagem de um filosofar sobre a physis a um filosofar formal, teleológico e, portanto, inseparável de uma natureza humana. Com efeito, para Nietzsche, o início do platonismo coincide com o início da metafísica do mesmo modo como o idealismo alemão reafirmaria sua fé no progresso humano. Assim como a imortalidade da alma em Platão serviu de garantia à utopia da polis ideal, os postulados da liberdade moderna são em última análise os penhores da emancipação política. Assim como na antiguidade, o pensamento moral e político da modernidade não pode prescindir de uma metafísica da natureza humana. Nietzsche viu com muita clareza as especificidades que separam a liberdade dos antigos da liberdade dos modernos, mas a sua suspeita é dirigida ao próprio sujeito de tais liberdades, em particular, ao “homem moderno”, “nós modernos”, herdeiros dos ideais liberais, democráticos e socialistas da modernidade.   

A fim de demonstrarmos nossa tese central—que a genealogia apresenta-se como princípio crítico de interpretação em Nietzsche—devemos situá-la no âmbito textual do pensamento nietzschiano, em geral, e no contexto do que seria a problemática central de seu perspectivismo político, em particular. Isto significa, antes de mais nada, que buscamos uma unidade, ou pelo menos uma coerência de pensamento nos aforismos e passagens dispersas em que o autor Nietzsche evoca a questão do político. Como o mostrou Scarlett Marton em seu estudo seminal sobre cosmologia e genealogia em Nietzsche,[8] os primeiros grandes intérpretes de Nietzsche, como Karl Jaspers (Nietzsche: Einführung in das Verständnis seines Philosophierens, 1936) e Karl Löwith (Nietzsches Philosophie der Ewigen Wiederkunft des Gleichen, 1935), tiveram que lidar com as  “contradições” inerentes ao pensamento nietzschiano, oferecendo soluções um tanto insatisfatórias como um apelo a uma “dialética real” ou um retorno primordial aos pré-socráticos, respectivamente. Walter Kaufmann publicou estudos e um livro—que se tornaria um clássico (Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist, 1950)[9]-- onde tais soluções foram devidamente refutadas. Foi constatado, então, que a compreensão de Nietzsche dependia não apenas do trabalho exegético do todo de sua obra (incluindo Der Wille zur Macht e toda a coleção de Nachgelassene Fragmente), mas ainda da interpretação da mesma nos termos defendidos pelo próprio Nietzsche (uma hermenêutica nietzschiana). Com a publicação das não menos polêmicas Vorlesungen (1936-40) e Abhandlungen (1940-46) de Heidegger em 1961, a importância da auto-interpretação dos textos nietzschianos—sobretudo em função da Vontade de Poder—foi novamente destacada. Como nas tradições talmúdicas e luteranas, Nietzsche devia ser lido à luz do todo de seu próprio texto, scriptura sui ipsius interpres. Somente depois da recepção pós-heideggeriana, sobretudo na França (com Pierre Klossowski, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Sarah Kofman, Michel Haar, Jacques Derrida e outros), surgiu um interesse genuíno por um “princípio” interpretativo de Nietzsche que não fosse comprometido por uma perspectiva “dialética” nem “existencialista”—nem mesmo “heideggeriana”. Parafraseando Gadamer, podemos afirmar que o problema hermenêutico em Nietzsche deve ser formulado em termos da verdade e do método, precisamente pelo fato de ter sido Nietzsche, como bem mostrou Deleuze, o primeiro—antes mesmo de Frege e Husserl, e muito antes das escolas de filosofia analítica da linguagem—a haver introduzido em filosofia e de maneira correlata os conceitos de significado (Sinn/Bedeutung) e valor (Wert).[10] Segundo Deleuze, é precisamente na filosofia de Nietzsche e não na de Kant que encontramos os meios, teóricos e práticos, de realizar a crítica tout court. Esta proposta tão polêmica quanto inconclusiva foi retomada e reformulada por um outro grande intérprete de Nietzsche, Foucault, cujas contribuições para a história cultural e para a teoria social no vasto campo da epistemologia das ciências sociais renovaram o debate sobre a questão do método e da racionalidade em filosofia, para além da Methodenstreit positivista e sua versão habermasiana. Como o próprio Gadamer já observara, em resposta aos ataques de Habermas, a nossa experiência da linguagem (inclusive seus aspectos sistemáticos de racionalidade) e a nossa experiência do mundo (inclusive do mundo da vida, Lebenswelt) são co-originárias e simplesmente não podem ser dissociadas.[11] Como veremos, esta é uma tese fundamental da filosofia nietzschiana, e de uma má compreensão da mesma decorrem todos os mal-entendidos acerca do seu perspectivismo filosófico.

2 - Genealogia: verdade e método

O que é filosofia? Esta é uma pergunta que permeia os escritos de Nietzsche nos seus diferentes estágios de evolução—grosso modo, a dos primeiros escritos, marcados pela filologia, pela paixão artística (sobretudo musical) e pela amizade com Wagner (p.ex., Die Geburt der Tragödie, 1872, e as quatro Unzeitgemäße Betrachtungen, 1873-76); a segunda, depois da ruptura com Wagner (1878), marcada pela desilusão da razão (Menschliches, Allzumenschliches, 1878-80, e Die fröhliche Wissenschaft, 1882); e a terceira, marcada pelas grandes obras Also sprach Zarathustra (1883-84, 1885), Jenseits von Gut und Böse (1886), Zur Genealogie der Moral (1887), Die Götzendämmerung (1889), e pelos “inéditos” (Nachlaß) Der Antichrist (1895), Ecce Homo (1908), Der Wille zur Macht (1901,1906).[12] Em todas estas obras a questão da filosofia está ligada a outras questões tais como a da vida, a da existência humana e a da verdade. E em todas estas questões centrais o experimentalismo nietzschiano emerge como único denominador comum capaz de traduzir um método, Experiment e Versuch crítico, perspectivista, genealógico. O problema da verdade constitui o grande divisor de águas entre a arte e a ciência, na própria concepção da filosofia como terceiro gênero, impossível de ser classificado, pois ao mesmo tempo apresenta-se como arte nos seus fins e nas suas produções, embora exprima-se por intermédio de conceitos como uma ciência.[13] Para Nietzsche, o filósofo é o homem do amanhã e do depois de amanhã, na medida em que sempre se acha em contradição com o seu hoje (JGB 212; cf. 211), o médico, artista e legislador que diz Sim ao vir-a-ser do homem pela superação, ativa e criadora, de si mesmo, de seus valores morais e de seus sistemas de verdade. Não existe portanto um método dialético ou transcendental adequado à filosofia, uma vez que todo método trai uma vontade de verdade.(JGB § 36)  Só podemos falar de “método” num sentido imanente, prático, experiencial—com ênfase maior no hodos do que no meta--, visto que estamos “sempre já”, parafraseando Heidegger, unterwegs, en route, na nossa relação de “apropriação” lingüística do que somos, pensamos e conhecemos. Assim, Nietzsche coloca a questão da verdade no mesmo nível de problematização interpretativa que a questão do método. Afinal, o que é a verdade? A definição mais completa que Nietzsche nos oferece, revelando o perspectivismo de todo conhecimento, é aquela articulada num inédito de 1873, Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne:

“O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas.” (§ 1)[14]

Comentando esta passagem e comparando-a com definições clássicas da retórica, Derrida e Kofman mostraram o quanto Nietzsche procurou se distanciar das interpretações filosóficas do conceito de verdade e do filosofar conceitual—com a metáfora subvertendo o papel generativo do conceito filosófico.[15] Contra a dominação aristotélico-hegeliana do inteligível sobre o sensível, em que certas metáforas conquistam um privilégio conceitual com relação a outras, Nietzsche já antecipara uma metaforicidade como não-conceito, exprimindo o que é próprio do homem, neste contínuo metaphorein (transpor, transferir, transformar, “la relève de la métaphore”) de apropriar e expropriar o que é seu. Assim, a hermenêutica se radicaliza em “desconstrução”, segundo a qual tudo é toujours déjà, immer schon, efeito de interpretações. Sem o intento de avaliar os méritos da interpretação que Derrida extrai de Nietzsche—via Heidegger e através de uma Abbau de tradições metafísicas a serem desconstruídas e reinterpretadas--, apenas assinalo a relevância da metáfora e da correlação entre semântica e ontologia para uma compreensão do projeto crítico nietzschiano. Ainda no ensaio supracitado, Nietzsche articula o “impulso à verdade” em termos da necessidade instintiva que os homens têm de sobreviver como ser social, “da obrigação de mentir segundo uma convenção sólida, mentir em rebanho, em um estilo obrigatório para todos”. O que há de convencionalismo e de relativismo nesta formulação nietzschiana não deve ser tomado prima facie, como credo irracionalista, mas como expressão do seu perspectivismo filosófico, consistente com a sua visão do mundo como interpretação humana. Que o homem europeu, depois de milhares de anos, tenha chegado a um estado de auto-consciência no qual a sua existência faça sentido, segundo Nietzsche, não prova nada mais do que um desejo, demasiado humano, de que tal sentido seja fundado e verdadeiro. Afinal, nada nos garante que a espécie humana será preservada para sempre—diferentemente dos dinossauros, que foram extintos. A racionalidade—e a socialidade—que nos diferencia de outras espécies é, para Nietzsche, um efeito e não uma causa, “um meio para a conservação do indivíduo” (§ 1) e não um fim em si. De resto, Nietzsche não advoga nenhuma promessa de “melhorar” a humanidade (EH Prólogo § 1), pois nisto mesmo consiste o que se chamou até então “moral” (cf. Crepúsculo dos Ídolos “Os ‘melhoradores’ da humanidade” § 2). A genealogia nietzschiana, como crítica radical que problematiza as delimitações epistemológicas de um método e de um sistema de verdades universais, parte portanto de um questionamento histórica e culturalmente situado (Europa decadente), filosoficamente formulado em torno da questão: “Quem somos nós?” Uma leitura até mesmo superficial dos principais textos de Nietzsche fará sobressair o tema do homem e da humanidade em relação aos demais temas de suas obras, nem que isto se dê de maneira negativa, ou seja, como tema a ser desmascarado, desmistificado e superado.  Com razão, Nietzsche tem sido mais conhecido pela metáfora do “além-do-homem” (Übermensch) do que por qualquer outro conceito. Assim, a tresvaloração dos valores, o niilismo, a morte de Deus, o eterno retorno e a vontade de poder estão todos tematicamente relacionados com o problema da auto-superação do homem (die Selbstüberwindung des Menschen). O anti-humanismo da crítica nietzschiana da religião, da moral e da metafísica está, portanto, enraizado numa filosofia voltada para o futuro, sem no entanto constituir-se numa mensagem utópica, escatológica ou messiânica. “Quem há de preservar a humanidade [Menschlichkeit]?”, indaga Nietzsche, “Quem vai erigir a imagem do homem [das Bild des Menschen] quando todos os homens se sentirem apenas como serpentes em busca de si, provocando medo, tendo relegado aquela imagem ao nível dos animais ou até mesmo dos autômatos?” (Terceira Consideração Extemporânea, “Schopenhauer Como Educador” § 4). Nietzsche parece assumir uma missão profética, com a convicção de um Daniel ou de um Jeremias, predestinado a anunciar a tragédia que está na iminência de assolar povos e nações. Se há, todavia, um tom apocalíptico em diversos textos de Nietzsche, a atonalidade da sua obra como um todo proíbe qualquer harmonização em função de um determinado gênero literário ou filosofema. Daí resultam as aparentes oposições (p.ex., apolíneo x dionisíaco, socrático x trágico) que só serão superadas pela afirmação do amor fati, a fórmula nietzschiana de “grandeza no ser humano: que alguém não queira que nada seja diferente, nem para a frente nem para trás, nem em toda eternidade” (EH “Por que sou tão vivaz” § 10). Este é, inquestionavelmente, o único dever-ser da natureza humana, que Nietzsche traduz de maneira autobiográfica no Ecce Homo: “Como tornar-se o que se é”.  Uma leitura dos aforismos do Nachlaß “Die Unschuld des Werdens” dedicados à composição do Zarathustra[16] revela o caráter antropológico da vontade de poder, concebida como o que torna a cosmologia e a ontologia possíveis, de forma correlata ao eterno retorno do mesmo. Sem nos apegarmos à rigidez de fórmulas de proporção, poderíamos dizer que a vontade de poder está para o ser assim como o eterno retorno está para o vir-a-ser do mesmo. O ser humano é o seu vir-a-ser no dever-ser da sua própria superação. “Der Mensch ist etwas, das überwunden werden soll”—“o homem é algo que deve ser superado”--, tal é a mensagem de auto-superação na sua obra prima, Assim Falou Zaratustra (ver, por exemplo, Z Vorrede 3, Vom Krieg und Kriegsvolke, passim), e na opera nietzschiana em geral (cf. JGB § 257; GM II 10, III 27; EH Z 6, Z 8, IV 5; WM 804, 983, 1001, 1051, 1027, 1060). A própria vontade de poder é decisivamente introduzida como vontade de superar-se a si mesmo (cf. Z Parte II, esp. “Von der Selbstüberwindung”), não como vontade psicológica à la Schopenhauer mas como expressão cosmológica do eterno retorno (cf. Z Partes III e IV, esp. “Von alten und neuen Tafeln”) e disto depende toda compreensão da filosofia de Nietzsche. Assim, método e verdade na concepção nietzschiana do humanum não podem ser dissociados do sentido e do valor que atribuímos à própria existência humana, ontológica e cosmologicamente. Como vemos, a genealogia cumpre a tríplice tarefa crítica, aplicada à cultura, e por isso mesmo pode ser vista como experimento perspectivista que desafia concepções metafísicas de antropologia filosófica.

3 - Crítica genealógica da religião

A morte de Deus é, para Nietzsche, o maior de todos os eventos da modernidade européia, o mais significante de todos, e isto deve ser tomado tanto de uma maneira metafísica quanto histórico-cultural. Deve-se questionar, portanto, a leitura heideggeriana que conclui—por razões intrínsecas à hermenêutica ontológica de Heidegger—que “o próprio Nietzsche interpreta o curso da história ocidental metafisicamente, e na verdade como ascensão e desenvolvimento do niilismo”.[17] Ora, Heidegger reduz a obra nietzschiana a uma crítica imanente da metafísica que, precisamente por permanecer no interior de sua historicidade, não pode superar o pensamento metafísico, em seu caráter ontoteológico, niilista. É assim que a vontade de poder, de acordo com Heidegger, deve figurar ao lado de grandes princípios metafísicos como o eidos platônico, a substantia cartesiana e a Ding an sich kantiana. Assim como Marx não se desfez da dialética de Hegel, Nietzsche teria apenas invertido a epistemologia de Kant, sem no entanto conseguir pensar a sua essência, numa verdadeira postura pós-metafísica. Em grande parte, o trabalho de Foucault procura desafiar esta linha de interpretação, não somente pelas sérias imposições textuais na compreensão da “vontade de poder” (que Heidegger praticamente reduz ao eterno retorno e ao ser dos entes—das Sein des Seienden), mas por questões de ordem discursiva, de método e de hermenêutica. Por exemplo, na famosa passagem sobre a morte de Deus (FW § 125, Der tolle Mensch, complementada pelo § 343), onde Heidegger aproxima o sentido da “loucura” em proclamar a morte de Deus de uma “insanidade”, a ser diferenciada da “insensatez” de negar Deus como um descrente qualquer, Foucault se interessa pela loucura como um fenômeno mais amplo, que não pode excluir uma leitura em favor de outra—por exemplo, a psiquiátrica contra a teológica, ou a social contra a jurídica, questionando inclusive as delimitações pressupostas nas definições de Wahnsinn (loucura) e Irrsinn (insensatez, desrazão).[18]  Afinal, a expressão “homem louco” é retomada por Nietzsche como paródia da alusão do salmista ao “insensato” que diz no seu coração: “Não há Deus” (Salmo 14:1)  No contexto original—que Nietzsche metaforicamente transpõe em grande estilo--, a palavra do salmista (em hebraico, naval) refere-se ao ímpio, ao descrente que, pelo fato mesmo de não crer em Deus, revela-se néscio, insensato, louco—num sentido idêntico ao que será tresvalorado (umwerten) por Paulo para contrastar, num mundo de incrédulos, a “loucura de Deus” com a “sabedoria dos homens”(1 Cor 1:18-25) e, mais tarde, por Lutero e Pascal na oposição radical entre teologia e filosofia (“Le dieu d’Abraham, d’Isaac et de Jacob n’est point le dieu des philosophes”). O louco, portanto, que em plena manhã acende uma lanterna e corre ao mercado gritando “Procuro Deus! Procuro Deus!” não pode ser identificado com o próprio Nietzsche ou mesmo com a personagem Zaratustra—como parece fazê-lo Heidegger, na sua identificação do “além-do-homem” com o mestre do eterno retorno.[19] Sem dúvida, o homem louco aparece como mensageiro de um evento (morte de Deus), que ele mesmo interpreta como problema metafísico:

Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já vou dizer-lhes. Nós o matamos—vós e eu. Todos nós somos os seus assassinos. Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? O que fizemos quando desatamos a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde estamos nós indo? Para longe de todos os sóis? Não estamos continuamente caindo? Para trás, para frente, para os lados, em todas as direções? Ainda existe um “em cima” e um “embaixo”? Não estamos nos afastando como que através de um nada infinito? Não sentimos o sopro de um vácuo? Não tornou-se ele mais frio? Não está anoitecendo o tempo todo? Não devemos agora acender lanternas pela manhã? Não ouvimos um ruído dos coveiros a sepultar Deus? Não já sentimos o cheiro da putrefação divina? Os deuses também se decompõem. Deus morreu. Deus continua morto. E nós o matamos”.(FW § 125)

A loucura aparece, portanto, como experiência-limite de uma racionalidade em crise, com o desmoronamento secularizante da crença em um fundamento que dá sentido a nossa existência, a crença no que há de “verdadeiro ou falso” em nossos valores. Nietzsche está obviamente usando uma linguagem metafórica, mas a descrição um tanto crua da putrefação do Deus que morreu indica a proximidade e a historicidade deste fenômeno cultural—afinal fomos nós, herdeiros ocidentais da tradição judaico-cristã, quem criamos e nos submetemos ao jugo divino. A tresvaloração nietzschiana não pode ser reduzida a uma inversão do tipo feuerbachiana (homo homini deus est) ou marxiana (camera obscura, Wirklichkeit x Vorstellung), nem mesmo a uma Umkehrung da metafísica—como o interpreta Heidegger, ao eleger-se porta-voz da Überwindung da metafísica ocidental[20]--, pois coube ao louco proclamar a maior vitória da razão nos seus combates infindáveis contra o medo, a superstição e o dogma. Trata-se portanto de um efeito de auto-superação, Selbstüberwindung, da humanidade como conceito resultante de processos civilizatórios, sendo a religião a expressão maior desta “experiência da história da humanidade como um todo” tomada individualmente, sobretudo na concepção judaico-cristã de uma Heilsgeschichte (“história da salvação”): “Dieses göttliche Gefühl hieße dann—Menschlichkeit!” (FW § 337 “Die zukünftige ‘Menschlichkeit’”). A crítica da religião em Nietzsche não conduz, per se, à secularização antiteológica (Feuerbach) nem ao ateísmo positivista (Marx), mas à auto-satisfação e serenidade—Heiterkeit, este é o verdadeiro sentido da “joie de vivre” da Gaia Ciência (cf. §§ 290, 343)-- de um espírito livre, criativo, criador. Para Zaratustra, “Deus é uma conjectura [Mutmaßung]”, mas não podendo ser limitada ao que pode ser pensado [begrenzt sei in der Denkbarkeit] merece ser tratada como doença e vertigem. O Übermensch, por outro lado, pode ser pensado, e cabe a nós criá-lo pelo querer de nossa auto-superação. “O querer liberta [Wollen befreit]: eis a verdadeira doutrina da vontade e da liberdade...” (Z II “Nas ilhas bem-aventuradas”). Ainda na mesma passagem, Zaratustra exclama: “Para longe de Deus e deuses me atraiu essa vontade [de criar], o que haveria para criar, se deuses—existissem!” E acrescenta, “Mas ao homem ela me impele sempre de novo, minha fervorosa vontade de criar; assim o martelo é impelido para a pedra”. Para Nietzsche, a criação, no sentido mais amplo de poiesis, é a verdadeira vocação do homem no exercício pleno de sua liberdade, pela ação da vontade de poder, de maneira ativa e não reativa, sem o ressentimento que caracteriza o homem religioso. Assim, a interpretação de Nietzsche que Foucault nos oferece faz jus ao esteticismo do primeiro sem reduzi-lo a uma hermenêutica passe-partout mas destacando a poiesis de “dar estilo ao caráter de alguém” [seinem Charakter “Stil geben”], numa estética de existência estilizante, polifônica, perspectivista, sempre multiplicando ad infinitum as relações de codificação e descodificação de toda experiência—tomada como fato ou interpretação humana. A morte de Deus é, portanto, um paradigma desta postura crítica, precisamente no nivelamento de fatos e interpretações no mesmo evento histórico.Por outro lado, a morte de Deus pode ser interpretada como sinal por excelência dos tempos modernos, quando o triunfo da autonomia, maioridade e emancipação da razão humana anuncia a iminência do grande meio-dia, a plenitude das três grandes metamorfoses do camelo, do leão e da criança (cf. Z II “Von den drei Verwandlungen” e IV “Das Zeichen”). O colapso da racionalidade—entendida como “a disciplina da mente” [die Zucht ihres Kopfes]--, para Nietzsche, não seria nada menos do que “a erupção da loucura [Irrsinn], ... a erupção do prazer [Belieben] nos sentimentos, na visão, na audição, o prazer na falta de disciplina da mente [Zuchtlosigkeit des Kopfes], a alegria pela desrazão humana [die Freunde am Menschen-Unverstande].”(FW § 76) A humanidade, até os dias de hoje, viveu em pleno acordo como amigos do “saudável senso comum” [gesunder Menschenverstand], por uma questão de sobrevivência; o homem do futuro, segundo o mesmo parágrafo, por estar cada vez mais consciente de tal convencionalismo, é levado à suspeita e à descrença. Assim, nem a verdade nem a certeza são o contrário da desrazão ou da loucura, mas “a universalidade e a coesão universalizante de uma fé [die Allgemeinheit und Allverbindlichkeit eines Glaubens], em resumo, o caráter não-prazeroso, não-arbitrário, dos juízos [das Nicht-Beliebige im Urteilen]”. Portanto, se Nietzsche celebra a loucura, no carnaval da morte de Deus, é porque esta inaugura uma nova era de “des-deificação da natureza”:  “Wann werden wir die Natur ganz entgöttlicht haben! Wann werden wir anfangen dürfen, uns Menschen mit der reinen, neu gefundenen, neu erlösten Natur zu vernatürlichen!” (FW § 109) O projeto de reintegrar o homem na natureza—diferente da humanização da natureza proposta pelo jovem Marx—não pode ser dissociado do motif nietzschiano da morte de Deus. Os parágrafos 108 a 125 da Gaia Ciência constituem, com efeito, o contexto imediato que culmina com a morte de Deus, a saber, a desdeificação da natureza, cujo cunho religioso é claramente articulado em termos cosmológicos e não exclusivamente histórico-ontológicos—como resultaria de uma leitura que privilegie a história da metafísica na Vontade de Poder.  Vemos, desse modo, que a questão da racionalidade e da modernidade remete a uma problemática antropológica complexa, onde a crítica de significados e valores requer um exame de diversos aspectos correlatos—incluindo problemas de ordem epistemológica, histórica e ética. Antes de concluirmos esta seção sobre a crítica da religião, é mister aludirmos ao texto da Vontade de Poder.

Depois da composição do Crepúsculo dos Ídolos em 1888, no último ano de produção literária antes de seu colapso mental, Nietzsche parece ter abandonado o projeto de publicar uma coleção de aforismos chamada Der Wille zur Macht, e decidiu escrever um livro, Versuch einer Umwertung aller Werte (que ora aparece como subtítulo, ora como título de um conjunto de quatro livros), composto de quatro ensaios, dos quais apenas O Anticristo veio a ser escrito, juntamente com o prefácio. A edição final das mais de mil notas de Nietzsche (1882-1888) que compõem este majestoso Nachlaß foi cuidadosamente empreendida pelo seu amigo Peter Gast, a pedido da irmã do filósofo e passando por várias edições, que engendraram toda uma polêmica em torno do valor filosófico destes “escritos póstumos”. É interessante recapitularmos a divisão da obra em quatro livros que consta num inédito de 1884:

I.          O Niilismo Europeu

II.         Crítica dos Valores Supremos

III.       Princípios de uma Nova Valoração

IV.              Disciplina e Domesticação

 

A primeira subdivisão do Segundo Livro, “Crítica da Religião”, como observa Kaufmann, forneceria grande parte do material para a redação do Anticristo. A crítica nietzschiana da religião divide-se ela mesma em três partes, a saber:

1.         Gênese das Religiões

2.         História do Cristianismo

3.                  Ideais Cristãos

 

A correlação entre o poder e formação do sujeito (WM § 135), os temas da religiosidade sacerdotal e da moralidade servil, do niilismo pessimista (156), do ressentimento (167), da passagem do judaísmo ao cristianismo (181, passim), da moral de rebanho, da psicologia paulina (171, 173), da castração (204), da autonegação, em suma, da tresvaloração de valores é desenvolvido segundo a mesma lógica encontrada em Além do Bem e do Mal e na Genealogia da Moral. Nota-se, todavia, que o contexto enfatiza os aspectos histórico-sociais da evolução do fenômeno religioso em função do niilismo. Este pano-de-fundo histórico-metafísico favoreceria, portanto, a leitura heideggeriana desde que não incorramos no erro estruturalista de impor tal grille de lecture à totalidade textual da obra nietzschiana, como numa formalização metódica.[21]

Sem dúvida, a nítida conexão entre a morte de Deus e o desmoronar-se da ordem cósmica (FW § 125) --entendida como interpretação humana da natureza—indica que Nietzsche está invocando aqui o Deus judaico-cristão, o Criador dos céus e da terra, causa prima, o Deus metafísico do teísmo—a passagem do hebraico ao grego constitui, de resto, o pano-de-fundo cultural da tresvaloração da religião.(cf. AC §§ 37-45) Em outro aforismo (FW § 343), abrindo o Livro Quinto (“Nós os Destemidos”), acrescido à segunda edição da Gaia Ciência em 1886, Nietzsche afirma “que Deus morreu” para significar “que a crença em Deus tornou-se incrível”—dando seqüência ao incipit tragoedia do último parágrafo do Livro Quarto, idêntico ao primeiro capítulo do Prólogo do Zaratustra. A morte de Deus sinaliza, portanto, o início da tragédia a ser redescoberta no horizonte infinito de mares nunca dantes navegados—cf. FW §§ 124, 281, 283, 289, 291, com alusões a Colombo e Gênova. Zaratustra, o solitário arqueologista do significado, inicia o seu ministério sob o signo da morte de Deus a fim de descobrir e explorar uma humanidade descodificada por civilizações passadas, levando à decomposição, e cujo destino trágico já se anuncia na própria negação da tragédia pela crença religiosa. Conforme certas versões da morte de Deus, visto que o próprio niilismo pode ser tanto “ativo” quanto “passivo” (WM § 22), o ateísmo nietzschiano seria igualmente necessário e passível de ser superado (überwinden). Neste caso, nem o teísmo nem a sua negação dialética bastariam para resolver a problemática nietzschiana. Assim como o projeto de uma Umwertung com relação à Geschichte / Geschick do niilismo europeu, a sentença de Nietzsche “Gott ist tot” apontaria para uma desconstrução quase-transcendental de uma “história de Deus”—por exemplo, entre os teólogos da secularização, da Hoffnung e da libertação, o nome de Nietzsche é associado ao de Feuerbach e Marx na celebração de um mundo des-deificado, como processo cultural. Se tal tresvaloração pode ser afirmada de maneira não-dialética permanece um problema. O que nos parece conclusivo nas alusões críticas de Nietzsche ao Estado moderno é a questão da fundamentação moral do político que, mesmo pretendendo desvencilhar-se do direito divino dos reis mantém-se fiel a uma natureza humana que se deixa dominar como um rebanho à procura do bom pastor. O modelo binário da dominação (dominador x dominado) é, afinal, a marca maior do niilismo reativo da vontade de poder reacionária –e a dialética é apenas uma acentuação desse infindável círculo de inversões.

4 - Crítica genealógica da moral

A longa citação em GM III §27 (cf. FW § 357) --auto-citação do autor que se supera—é invocada por Nietzsche ao formular a “lei da vida” [das Gesetz des Lebens] como “a lei da necessária ‘auto-superação’ que há na essência da vida”[das Gesetz der notwendigen “Selbstüberwindung” im Wesen des Lebens], a saber, que “[t]odas as coisas perecem por obra de si mesmas, por um ato de auto-supressão” [Alle großen Dinge gehen durch sich selbst zugrunde, durch einen Akt der Selbstaufhebung].[22]  Esta grande tese nietzschiana está sem dúvida implícita na doutrina da vontade de poder e da tresvaloração dos valores—como o revela o próprio Nietzsche ao mencionar a “obra que está preparando” [ein Werk, das ich vorbereite: “Der Wille zur Macht”. Versuch einer Umwertung aller Werte]. Nas três dissertações explicitamente dedicadas à crítica da moral—crítica à moral do ressentimento (cristianismo), crítica à moralidade autônoma, auto-consciente (Kant), e crítica ao ideal ascético (niilismo) (cf. EH GM)--, Nietzsche empreende de maneira metódica o seu projeto de tresvaloração como “nova exigência” para a auto-superação do “homem moderno”: “necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão” (GM Prefácio § 6). E para tanto, é mister uma “genealogia”, uma formulação do conhecimento das condições e circunstâncias do nascimento da moral, como uma wirkliche Historie der Moral, “cinza”—como um documento, em oposição ao “azul” espiritual--, em suma, uma crítica  histórica e uma história crítica imanentes, ou, nas palavras de Foucault, “uma forma de história que dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domínios de objeto, etc., sem ter que se referir a um sujeito, seja ele transcendente com relação ao campo de acontecimentos, seja perseguindo sua identidade vazia ao longo da história”.[23]  A genealogia se apresentaria, então, como ponto culminante de uma crítica da moral, já esboçada e parcialmente elaborada em Além do Bem e do Mal (1886), sendo que nestes dois livros a moral de Kant é enfocada de maneira mais sistemática do que na Gaia Ciência. A crítica da moral emerge não tanto como um momento lógico seguindo a supressão da religião, mas como adjacente à própria genealogia do homem moderno. A modernidade não pode ocultar, portanto, o caráter moral que a constitui como tal, na medida em que “‘autônomo’ e ‘moral’ se excluem”, segundo Nietzsche—e contra Kant.(GM II § 2)  Por outro lado, Nietzsche procura resgatar uma concepção positiva do homem moderno, na antecipação do Übermensch que deve ser celebrada hoje, no dever-ser deste devir inocente que é a auto-superação do homem. Assim, o que há de “moral” é precisamente o que deve ser superado na concepção da humanidade que culminou com o idealismo alemão. O pensar ateu e criativo do “espírito livre” moderno opõe-se ao pensar teísta, metafísico, outrora guiado e limitado pela crença religiosa. Nisto Kant e Nietzsche compartilham da mesma convicção que é mister fazer uso do próprio entendimento, sapere aude, para que se realize o espírito de liberdade—apesar das divergências quanto ao significado de tal liberdade, sobretudo nos conceitos de “vontade” e “livre arbítrio”. Rousseau, Voltaire e os iluministas franceses teriam sido fontes comuns para ambos, no empreendimento de uma filosofia crítica. Mas a leitura que Nietzsche faz da Aufklärung—freqüentemente citada como exemplo de seu suposto irracionalismo e anti-modernismo—difere da kantiana, não apenas nas suas implicações políticas, mas ainda nos seus pressupostos históricos e filosóficos. A questão da moral é de fundamental importância para uma correta avaliação dessas divergências.

A princípio, Kant é estimado por Nietzsche como o grande vitorioso na luta filosófica contra o otimismo do realismo ingênuo, precisamente por haver elevado os fenômenos ao estatuto de realidade—assim como Schopenhauer os tresvalora em Vorstellungen (cf. GT §§ 18,19). Em 1886, no prefácio da segunda edição de Morgenröte, Nietzsche denuncia a sedução da moral em Kant, uma crença que não podia ser fundamentada na sua própria concepção da história e da natureza (M Pref. § 3). No mesmo livro, Nietzsche ataca Kant pela dicotomia do sensível e do não-sensível na concepção do homem moral (M §§ 132,481), mas permanece fiel ao ideal da Aufklärung(M § 197):

“Este Esclarecimento nós devemos agora levá-lo adiante—sem nos afligir com o fato de que houve uma ‘grande revolução’ e, por sua vez, uma ‘grande reação’ contra ele, e mesmo que ainda há: são de fato apenas jogos de ondas, em comparação com a verdadeira inundação, em que nós boiamos e queremos boiar!”[24]

Nietzsche identifica-se, portanto, com o projeto crítico de Kant, desde que não traia um ideal ascético, típico da moral cristã (M § 339), que teria sido supostamente superado na própria crítica kantiana da religião. Ora, Kant tem sido considerado, juntamente com Hegel e Schleiermacher, o filósofo que maior influência exerceu sobre a teologia do século XIX.[25]  Para Kant, a religião em geral e o cristianismo em particular não podiam mais ser concebidos sem a moral, visto que a própria moral conduz inevitavelmente à religião (Moral also führt unumgänglich zur Religion) e, mais do que isso, a moral não precisa da religião pois daquela decorre toda formulação posterior da liberdade, a priori moral por excelência.(cf. Prólogo à Primeira Edição da Religião). Kant afirma no Prefácio à Segunda Edição da primeira Crítica que tivera “de abolir o saber [das Wissen aufheben] a fim de abrir espaço para a crença.” (KrV B xxvix-xxx)[26] Na verdade, esta é a indicação mais provável de mal-entendidos—talvez na própria leitura que Nietzsche faz de Kant—sobre a epistemologia kantiana.  Depois de haver mostrado a impossibilidade de conhecermos o supersensível (na KrV) a religião—como Kant a expõe na sua obra de 1793, Die Religion...—pode ser reduzida a práticas morais, características de uma religião racional pura, guiada por dois princípios fundamentais: o de persistir na prática das ações morais (o dever) e na determinação de restabelecer uma disposição originária para o bem (“a instauração da pureza da lei como fundamento supremo de todas as nossas máximas”, Parte I, “Observação Geral”). A religião da moralidade é portanto a religião de todos os homens bons, uma formulação universal, moral, racional, do fenômeno da religião.  No seu comentário e reinterpretação do cristianismo, enquanto doutrina e sistema de práticas, Kant procura fundamentar a tese universal da religião pura. A doutrina do pecado original é transformada em doutrina do mal radical na natureza humana, que é a fonte positiva da ruptura humana no desregramento das relações normais do sensível e da razão, o dogma da incarnação é substituído por um relato do triunfo do bem sobre o mal, o papel do Jesus histórico sendo tomado pela idéia da razão, do homem em estado de perfeição. Para Kant, tudo que é verdadeiro na religião deve ser derivado da razão moral—caso contrário, tudo não passaria de superstição. Sente-se aqui a influência que tais conceitos exerceriam sobre os Jugendschriften de Hegel. Kant vê no triunfo militante da Igreja Universal a realização do ideal cosmopolita de progresso para toda a humanidade. Com efeito, é precisamente contra a idéia kantiana de “progresso”, retomada por Hegel, que Nietzsche empreende sua crítica genealógica, já antecipada na Segunda Extemporânea (“Vom Nutzen und Nachteil der Historie für Leben”, 1874). Trata-se, portanto, de articular historicidade e humanidade de modo a evitar uma subordinação do desenvolvimento humano a uma lógica do progresso e a um pressuposto transcendental da moral. Quando Nietzsche critica a concepção utilitarista de Paul Rée (GM Prefácio § 4,7), não é apenas o historicismo evolucionista que procura combater mas sobretudo a perspectiva metafísica e supra-histórica que tem sutilmente guiado as historiografias até então. Assim, a grande contribuição de Nietzsche consiste em haver denunciado uma concepção da história que pressupõe uma unidade teleológica—típica da leitura soteriológica do cristianismo. Nietzsche denuncia, portanto, a moral kantiana como um retorno ao que já fora superado pela Aufklärung, a saber, a fé no que não pode ser pensado—afinal, a religião, segundo Kant, não busca conhecer Deus, contentando-se com o credo luterano da fé decorrente da revelação especial. Esta linha de ataque é esboçada no Livro Segundo da WM (§§ 253-405, “Crítica da Moral”):

1.    Origem das Valorações Morais

2.    O Rebanho

3.    Observações Gerais sobre a Moral

4.    Como a Virtude é Feita para Dominar

5.    O Ideal Moral

6.         Considerações Adicionais para uma Crítica da Moral

 

Toda a questão da moral, segundo Nietzsche, tem sido reformulada como uma questão de fé, como um dogma, um sutil ideal que se mantém fiel ao “além”—desde Platão até Kant e Hegel.  A tese principal de Nietzsche, seguindo a equivalência entre Leben e Wille zur Macht (WM § 254; KSA 12:160-161), é assim enunciada: “Não há fenômenos  morais, há apenas uma interpretação moral destes fenômenos. Esta interpretação é ela mesma de origem extra-moral”(WM § 258; KSA 12:149). Assim seríamos levados ao problema semiológico da metáfora—o que pode perfeitamente ser descartado como círculo vicioso ou como hermenêutica ontológica, dependendo da perspectiva adotada. Nós optamos por uma leitura hermenêutica crítica, textual, e nos limitaríamos a remeter tal alusão ao texto inédito sobre verdade e metáfora. Não há, afinal, universais no léxico nietzschiano.  A “origem extra-moral” é apenas o reverso da moral, a imoralidade do ressentimento e de todos os desiderata de ideais forjados para a humanidade (WM §§ 266, 373, 390; KSA 12:276-277; 13:231-234; 56), supostamente uma humanidade “melhor”. Esta é a grande pia fraus da religião cristã.  A crítica da religião e a crítica da moral pressupõem uma concepção de sentido e valor—no enunciado do bem e do mal—que não deveria escapar à crítica, como se tratasse de alguma “imaculada concepção”. A evacuação do divino, ao contrário da kenose hegeliana que descobre sua plenitude pelo trabalho positivo do negativo, não suscita nenhuma esperança de reconciliação. O niilismo é um evento radical, irreversível: 

“O que significa niilismo? Que os valores supremos se desvaloram a si mesmos. O alvo está faltando; ‘por quê?’ não encontra nenhuma resposta. (WP § 2;KSA 12:350)  

Niilismo radical é a convicção de uma absoluta insustentabilidade da existência quando se trata dos supremos valores reconhecidos por alguém; e mais, a constatação de que nos falta o mínimo direito de supor um ‘além’ ou um ‘em-si-mesmo’ das coisas que sejam ‘divinas’ ou moralidade incarnada. Tal constatação é conseqüência do cultivo da ‘veracidade’—portanto ela mesma uma conseqüência da fé na moralidade”. (WM § 3; KSA 12:571)   

A crítica radical que Nietzsche empreende à moral cristã fornece a pista metodológica e a Sache do seu experimentalismo, ainda no “Versuch eines Umwertung des alles Werten”. Simplesmente por não haver nada (nihil) além de Deus, uma vez que o verdadeiro, o bom e o belo são necessariamente tresvalorados com a morte de Deus. A mesma sorte é, de resto, reservada aos sistemas socialistas e democráticos. Deus morreu, portanto não há mais nada que possa fundamentar, moral e ontologicamente, qualquer ser social. Não tanto por não haver nada além de Deus, como por não haver nenhum “além” fundamental. Resta-nos a imanência do mundo, locus por excelência da experiência do vir-a-ser no ser. Nada mais, nada além, acima ou interiorizado em nosso mundo, nada é-nos dado como princípio ou fim, causa ou razão de ser e devir o que somos. Ao Paukenschlag kantiano que opõe “o céu estrelado acima de mim” e “a lei moral dentro de mim” (KpV A 288), Nietzsche propõe uma gaya scienza e transgride os limites próprios do que está “fora” e do que está “dentro”, na afirmação de uma lei sem pureza nem fim.(FW Prelúdio 63, Sternenmoral)

5 - Crítica genealógica da filosofia política

O sotaque provençal da sua “gaya scienza” traduz e trai o “ideal do espírito livre” cultivado por Nietzsche naquele ano de transição (1882, 1a. ed. da FW): o trovador, dançarino e poeta que redescobre a filosofia telúrica, a filosofia do corpo e da superfície. Gaia é a deusa Terra, a única a quem devemos fidelidade (FW §§ 362-377). Assim, Nietzsche invoca o tema das grandes navegações (Gênova, Colombo, os mares que nos desafiam a explorar o infinito). A humanidade do  futuro está condenada a ser guiada por este novo senso de historicidade (FW 337, “Die zukünftige ‘Menschlichkeit’”), como se pudéssemos sentir a história de toda a humanidade como nossa própria história, “wer die Geschichte der Menschen insgesamt als eigne Geschichte zu fühlen weiß...” A historicidade, juntamente com “o conhecimento da fisiologia” e “um alvo no futuro”, estão entre as coisas que faltam num filósofo (WM § 408; KSA 11:176-177). A “Crítica da Filosofia” esboçada na Vontade de Poder (WM §§ 406-465) segue, portanto, o filosofar a marteladas que caracteriza toda a obra nietzschiana como projeto crítico de tresvalorações: “naturalização da moral”; em lugar da sociologia “uma teoria das formas de dominação”; em lugar da sociedade “o complexo cultural”; em lugar da epistemologia “uma teoria perspectiva dos afetos”; em lugar da metafísica e da religião “a teoria do eterno retorno” (WM § 462; KSA 12:342-343, 470). É neste sentido que o perspectivismo nietzschiano vai desbocar numa crítica genealógica da filosofia política.

Quando Nietzsche escreveu o prefácio para Jenseits von Gut und Böse em junho de 1885, o projeto de uma “filosofia do futuro”—explicitamente anunciado no subtítulo--, já fora empreendido quarenta anos antes por um conterrâneo seu, Ludwig Feuerbach. Mais de um século antes, Kant já havia publicado seus Prolegômenos à Toda Metafísica Futura (1783). E no entanto, a alternativa nietzschiana à crítica kantiana e aos hegelianismos de esquerda e de direita não poderia ser meramente reduzida a uma ambiciosa superação da filosofia do seu tempo, como se Nietzsche pregasse mais um evangelho do “além.”  Além do Bem e do Mal é apresentado pelo próprio Nietzsche como um manifesto aforismático do “bom Europeu”, encerrando uma tipologia crítica e uma psicologia social do homem aufgeklärt que se questiona enquanto “espírito livre”, sehr freien Geister:

“Mas nós, que não somos jesuítas, nem democratas, nem mesmo alemães o bastante, nós, bons europeus e espíritos livres, muito livres, nós ainda as temos, toda a necessidade do espírito e toda a tensão do seu arco! E talvez também a seta, a tarefa e, quem sabe? a meta...”[27]

Parece-nos, portanto, que apesar de toda a metaforicidade e de toda a disseminação de significantes, o texto nos oferece um projeto interpretativo da existência humana. O fato de usar a primeira pessoa do plural (wir) --cf. cap. 6 “Wir Gelehren”, “Nós Eruditos”—incluindo, “com cinismo e inocência”, o próprio autor deste prelúdio filosófico, já revela a pertinência ético-política e o caráter polêmico desta coleção de pensamentos. O estilo enigmático de Nietzsche não deve obstruir nossa compreensão do assunto em questão, que constitui o objeto último da metafísica, a verdade na apreensão dos conceitos do mundo (cosmologia), de Deus (teologia) e do ego (psicologia). Não é à toa que Nietzsche introduz no prólogo a temática do livro com o falocêntrico enigma: “Supondo que a verdade seja uma mulher...” A metáfora não poderia ser mais esteticista: que os filósofos, desde Platão até os idealistas alemães—todos eles homens (i.e. do sexo masculino),-- fracassaram na arte de seduzir uma dama que nunca se deixou conquistar—a verdade como mulher-objeto, la femme-vérité. O radicalismo do esteticismo nietzschiano não reside, todavia, na redução da filosofia a uma relação estética de apropriação e expropriação do belo e do verdadeiro, mas no imanentismo antidogmático do perspectivismo que lhe é correlato. Se o filósofo é tido por um artista manqué, o seu fracasso consiste precisamente em buscar transcender o mundo enquanto obra de arte, desvalorizando-o como tal. A oposição platônica do sensível ao inteligível, da qual a oposição mimesis-episteme é um caso particular, permeia, segundo o diagnóstico nietzschiano, todo o desenvolvimento da metafísica de valores que unem o realismo aristotélico ao idealismo kantiano:

“Considere-se toda moral [Moral] sob esse aspecto: a ‘natureza’ nela é que ensina a odiar o laisser aller, a liberdade excessiva, e que implanta a necessidade de horizontes limitados, de tarefas mais imediatas—que ensina o estreitamento de perspectivas [Verengerung der Perspektive], e em determinado sentido também a estupidez, como condição de vida e crescimento. ‘Deves obedecer seja a quem for, e por muito tempo: senão perecerás,  e perderás a derradeira estima por ti mesmo’—este me parece ser o imperativo categórico da natureza, o qual certamente não é ‘categórico’, como dele exige o velho Kant (daí o ‘senão’--), nem se dirige ao indivíduo (que importa a ela o indivíduo!), mas sim a povos, raças, eras, classes, mas sobretudo ao inteiro bicho ‘homem’, ao homem”. (JGB § 188)

Assim, no primeiro capítulo ao tratar dos “Preconceitos dos Filósofos”, Nietzsche desmascara a vontade de verdade (der Wille zur Wahrheit) através de um questionamento do valor (Wert) desta vontade: “A crença fundamental dos metafísicos é a crença nas oposições de valores”.(JGB § 2) A grande questão para Nietzsche é a de determinar a motivação, o interesse, o valor de opor um “não” a um “sim”, ao devir inocente do mundo, onde o homem é apenas um vetor num complexo campo de forças (JGB § 36, 230, 257). A fim de reconstituirmos a concepção nietzschiana de agência e sua correlação de subjetividade e poder, seria necessário situar a valoração do ser “humano” num jogo de forças totalizante (Gesamtspiel), onde a vontade de poder é definida como praxis, pathos, physis, interpretação, auto-reflexão e história. Segundo Nietzsche, “o mundo visto de dentro, o mundo definido e designado conforme o seu ‘caráter inteligível’—seria justamente ‘vontade de poder’, e nada mais”.(JGB § 36) Nisto, Kant e Nietzsche estão de acordo quanto à démarche crítica adotada para elucidar o problema da ação humana. É interessante ainda notarmos como tal concepção da Wille zur Macht já antecipa a estruturação ontológica do ser-no-mundo mais tarde articulada por Heidegger. Não se deveria portanto reduzi-la a um substratum psicológico (como o faz Lukács, na Destruição da Razão) ou ao próprio devir do ser (como o sugere Heidegger, Nietzsche, vol. 1, Der Wille zur Macht als Kunst), como se Nietzsche estivesse ingenuamente reformulando uma prima causa metafísica. Sem dúvida, a tensão entre uma concepção modernista de dominação da natureza (Hobbes) e uma concepção romântica de um retorno harmônico à natureza (Rousseau) parece persistir na elaboração nietzschiana da vontade de poder—talvez até por causa da sua leitura dos pré-socráticos, em particular de Heráclito e Parmênides. Uma leitura atentiva dos parágrafos 4, 10-12, 16-19 de JGB leva-nos a reformular a questão nietzschiana da ação nos seguintes termos: “Visto que a história da metafísica não nos oferece nenhuma teoria da ação que não seja mais um efeito desta história, um niilismo reativo que motiva todo pensamento ocidental, como poderíamos explicar de maneira inteligível o agir e o existir humano?” Nietzsche critica concepções metafísicas de agência (alma, livre arbítrio e vontade) para resgatar as noções clássicas de racionalidade, liberdade e querer, num único conceito historicizado de praxis humana. Com efeito, vontade de poder e genealogia são conceitos complementares, na medida em que toda uma gênese histórico-cultural se efetiva no agir humano. A correlação ação-historicidade é reconhecida por Nietzsche como um dos grandes legados da Aufklärung alemã (WM § 1058; KSA 10:646-647):

“Os dois maiores pontos filosóficos (legados pelos alemães):

a) o do vir-a-ser, do desenvolvimento;

b) aquele segundo o valor da existência (embora a forma infeliz do pessimismo alemão deva ser primeiro superada!)”

 

Sem dúvida, Nietzsche não encontra em Kant a articulação hegeliana da religião enquanto fenômeno moral-cultural com a auto-consciência histórica—apesar das teses esboçadas nos escritos de Kant sobre a história.[28] Para Nietzsche, uma vez compreendida como apropriação e reprodução de determinações históricas, a ação deve ser desteleologizada, evacuada de toda lógica metafísica de progressus (GM II 12). “Em todo querer existe, primeiro, uma pluralidade de sensações, a saber a sensação do estado que se deixa [von dem weg], a sensação do estado para o qual se vai [zu dem hin], a sensação desse ‘deixar’ e ‘ir’ mesmo...”(JGB § 19) O mundo é, antes de tudo, relacionalmente e afetivamente presente, o mundo se efetiva através da nossa existência que age no mundo e através do mundo. Nietzsche concebe a vontade de poder, portanto, como um pathos de personificação, de incorporação, desafiando a própria oposição do “ativo” ao “passivo”.  No mesmo texto (JGB § 19), Nietzsche acrescenta o aspecto interpretativo da vontade de poder e, além do complexo deste sentir e pensar, o “afeto do comando” que desvela o caráter auto-reflexivo da vontade de poder. A ação nunca é um fim em si mesma, mas um meio para a auto-experiência da agência, através da incorporação (Einverleibung) e apropriação (Aneignung) de mundos experienciais e interpretativos. Daí a resultante historicidade das práticas humanas: o sujeito sempre é um efeito histórico, sem pressupor determinismo nem teleologia (WM § 552; KSA 12:383-386). O agir é sempre já temporal, historicizante, na medida em que é efetivo (wirklich) e não originariamente eficiente (no sentido aristotélico de causalidade). Se a metafísica moderna restringe toda causa à terceira—na classificação aristotélica das quatro causas--, reduzindo assim o efeito a um fato, a tresvaloração nietzschiana busca resgatar a efetividade do fato numa crítica radical que se reconhece acima de tudo como uma interpretação. Para Nietzsche não há fatos sem interpretações, pois todo fato é, sempre já (immer schon), uma interpretação.[29]

Chegamos, assim, ao problema antropológico, deslocado pela história efetiva da metafísica, após o desmascaramento das grandes filosofias que ocultaram o fenômeno humano. Como Platão, pela boca de Sócrates, abordou o problema do gênero (genos) para classificar de maneira lógica o que é que distingue o sofista do filósofo e do político, o que é o justo e o verdadeiro, Nietzsche também serve-se de um método classificatório sem, todavia, chegar a nenhum paradigma de classificação. A idéia platônica do bem, de acordo com a leitura nietzschiana da metafísica, seria subseqüentemente mascarada como causa final em Aristóteles, substância em Descartes ou coisa-em-si em Kant, sem lograr explicar a razão de ser que une e opõe, por analogia, o ser humano a todos os outros seres. Daí a aporia socrática de saber nada saber, pois a vontade de saber sempre trai a pressuposição de acreditar que deve haver um sentido neste imenso cosmos de significações. O homem não pode constituir-se uma classe superior, nem sua razão numa classe de classes. Resta-nos apenas classificar segundo a ficcionalidade de nossas interpretações humanas. É assim que Nietzsche vai dispor de tipologias e observações comparativas sobre povos, raças e nações da Antiguidade, da Renascença e da Modernidade não apenas para ilustrar sua doutrina da vontade de poder mas para sustentá-la de maneira histórica, imanente ao devir da espécie humana. A própria imposição do caráter do ser ao devir constitui, de acordo com Nietzsche, a suprema vontade de poder. Mas o caráter do ser não é, como se poderia pensar, estabilidade e permanência, mas significa, ao contrário, “que toda recorrência é a aproximação mais próxima de um mundo do devir a um mundo do ser”.(WM § 617; KSA 12:312-313) Nisto consiste o amor fati (WM §1041; KSA 13:492-493; EH II,10), a auto-afirmação dionisíaca do homem que quer sua vida e o mundo inteiro acontecendo exatamente como tem sido—o eterno retorno do mesmo. O destino do homem reside, afinal, no seu caráter—e vice-versa.

6 - Crítica genealógica da modernidade

Que o homem a ser superado, é o homem moderno pode ser inferido pela associação incisiva entre o Übermensch e o Zukunft, o futuro, o porvir nietzschiano do vir-a-ser. Por outro lado, o conceito do “moderno” permanecerá problemático no estudo do pensamento nietzschiano, na medida em que sirva apenas para balizar projetos radicais—sejam eles futuristas ou anarquistas, niilistas ou pós-modernos. Estudos aprofundados sobre Nietzsche e a filosofia política confirmaram a impossibilidade—ou pelo menos, a imensa dificuldade—de reconciliar a ética kantiana com o esteticismo nietzschiano num projeto pós-moderno (Warren) ou numa reconstrução de um liberalismo radical (Connolly).30 Não foi o propósito deste capítulo examinar as implicações políticas e sociais da filosofia nietzschiana ou de sua concepção do homem moderno. Limitamo-nos a mostrar que a genealogia nietzschiana é uma continuação do projeto crítico da modernidade, apesar de não compartilhar das mesmas pressuposições culturais da Aufklärung, mas radicalizando e subvertendo, pela suspeita, os próprios conceitos de racionalidade e de filosofia a ponto de romper com sua especificidade de “moderno”—viabilizando, nolens volens, o conceito do “pós-moderno”. Genealogia e crítica, verdade e método, arte e ciência, siginificado e valor, ontologia e semântica—estes são alguns dos problemas na filosofia de Nietzsche que podem nos guiar na formulação da sua problemática antropológica. Compreender a “genealogia” nietzschiana como uma “crítica” radical que desafia o método metafísico-transcendental adotado pela Kritik kantiana, em termos filosóficos e históricos, constitui não apenas uma tese mas também um prelúdio a um projeto inacabado de articular um discurso genealógico da modernidade, da qual ainda não saimos.

A misantropia anárquica, o anti-humanismo imoral e a aristocracia anti-democrática geralmente associados ao nome de Nietzsche—mesmo se descontarmos aqui todas as especulações infundadas de um protofascismo anti-semita31--, facilmente nos levariam a concluir que o esteticismo nietzschiano nada teria a contribuir num debate sobre antropologia, e menos ainda sobre ética e política. Todavia, é exatamente neste campo minado de mal-entendidos que podemos redirecionar a crítica nietzschiana num sentido “pós-metafísico” que faça jus ao seu projeto original de tresvaloração de todos os valores pela auto-superação do ser humano. A crítica da religião que culmina com a morte de Deus traduz, com efeito, a irreversibilidade histórica dos avanços humanos na sua busca constante de si próprio, de um sentido para o seu existir, sem o recurso a uma razão que o transcenda. A impossibilidade de fundamentar o sentido da existência fora da jurisdição humana, além das suas experiências históricas, é o que faz de Nietzsche um filósofo moderno, cuja concepção do gênero humano não difere essencialmente das que já haviam sido formuladas ou esboçadas por Kant e Feuerbach. A grande diferença entre Nietzsche e estes filósofos é que Nietzsche vai também questionar a própria dimensão humana, demasiadamente humana, subjacente a toda crítica filosófica, ou seja, da perspectiva de “quem” fala, de “quem” está por detrás de tal discurso filosófico da modernidade:

“Crítica do homem moderno (sua mendacidade moral):--o ‘homem bom’ corrompido e seduzido por más instituições  (tiranos e sacerdotes); --a razão como autoridade; --a história como uma superação de erros; --o futuro como progresso ...—o reino da ‘justiça’ (o culto da ‘humanidade’); --‘liberdade’” (WM § 62; KSA 12:411-412).

Em Além do Bem e do Mal—sobretudo nos capítulos 6 a 9--  encontramos além de todas as análises antropológicas, psicológicas e genealógicas—sobretudo nos primeiros capítulos, 1 a 5--, o que poderíamos chamar de “dimensões propriamente etnológicas” desta obra e, de uma maneira geral, da opera nietzschiana. Obviamente, a palavra “etnologia” não pode ser usada aqui no sentido moderno de uma “antropologia cultural”, de uma ciência que estuda, do ponto de vista cultural, povos “primitivos” e os compara com as formações histórico-sociais das grandes civilizações orientais, mesopotâmicas, européias, etc. Na verdade, o mesmo deve ser dito com respeito à antropologia e à psicologia em Nietzsche, uma vez que permanecem filosóficas, no sentido de esclarecer nosso conhecimento do gênero humano sem, no entanto, fundarem uma nova ciência específica (Fachwissenschaft). Portanto,  o discurso nietzschiano sobre raças, civilização e valores culturais deve ser reexaminado aqui dentro de uma perspectiva filosófico-antropológica, fazendo jus ao seu contexto histórico-cultural de Aufklärung tardia e de crítica a filosofias políticas modernas. Por outro lado, a originalidade do projeto nietzschiano não apenas resiste a classificações prévias do que fora até então formulado como antropologia, psicologia e genealogia, mas rompe com todas as aspirações científicas dessas doutrinas que nunca disfarçaram o seu teor fundamentalmente metafísico. É precisamente nesta sua démarche antimetafísica que Nietzsche pode ser considerado um dos grandes precursores da etnologia contemporânea, sobretudo no que tange às articulações histórico-sociais de processos civilizatórios em face do problema da alteridade. Diga-se de passagem que o problema da identidade cultural de um povo, aquilo que o constitui como um ethnos, genos diferenciado de outros, não pode ser pensado sem ao mesmo tempo remeter-nos a uma análise genealógica dos valores morais e culturais (ethos) deste povo. É nesta articulação do histórico e do social em um único discurso que reside, em última análise, a grande contribuição nietzschiana para uma concepção não-metafísica do ser humano, como um ente indeterminado a ser constituído pela vontade de poder, de maneira ativa, em sua regionalidade ontológica e em suas racionalidades de auto-superação. A matriz de um tal discurso encontra-se, como foi visto, na concepção nietzschiana da “vontade de poder” (der Wille zur Macht). A tarefa etnológica esboçada em JGB pode ser elucidada em função do conceito-chave da vontade de poder, de modo que possamos compará-la a formulações modernistas (“iluministas”) da questão antropológica.

Assim como o projeto kantiano—e a filosofia da Aufklärung em geral—tem sido caracterizado por uma preocupação antropocêntrica, Nietzsche esboçou uma verdadeira “crítica do homem moderno” (WM § 62, supracitada), coroada por uma genealogia da “humanidade” moderna. Para Nietzsche, trata-se de estudar a “modernidade na perspectiva da metáfora da nutrição e da digestão” (WM § 71; KSA 12:464), i.e., a cultura da fast food—Nietzsche fala do “tempo de influxo prestissimo”--, a incapacidade de digerir, de ruminar, de meditar, e até mesmo de pensar, que caracterizam o homem decadente de uma modernidade que perdeu totalmente o senso da virtù renascentista e da autenticidade (WP §§ 74-78;KSA 11:474-475; 12:121-122, 301, 384, 435). Em suma, o advento do niilismo reativo, pessimista, que caracteriza a modernidade de fin de siècle, só pode ser superado no seu acontecer (geschehen), tornado fato, interpretado, tresvalorado de maneira positiva e ativa. O que é código de conduta e veracidade para uma época pode ser descodificado num sentido de inversão radical de valores, sem perdas nem ganhos, mas na simples preservação de quanta de forças. Assim, a codificação de uma moral, de uma cultura de um povo, é sempre acompanhada de descodificações, daí a interpenetração dos princípios apolíneo e dionisíaco na formação cultural de povos e nações. Ao ethos cultural de um povo, aos mores estruturados pelo hábito e pelo costume, correspondem sempre já instintos de autopreservação, de auto-afirmação como espécie, genos que gera e se reproduz na gênese de um destino comum. Seria, portanto, fundamental separar, na nossa leitura de Nietzsche e em particular na leitura da crítica genealógica, o que é pertinente para uma compreensão do princípio interpretativo nietzschiano e o que não passa de idiossincrasia do autor, no seu contexto peculiar de Alemanha de fin de siècle. O que há, portanto, de anti-semitismo, misoginia, anti-socialismo e até mesmo ateísmo no texto nietzschiano pode sempre ser descodificado em favor de uma leitura polifônica, pluralista, não-exclusiva—afinal não são poucos os grupos anti-racistas, feministas, socializantes e até mesmo religiosos que hoje se apropriam da obra nietzschiana. Mas isto não adiantaria em nada o nosso interesse filosófico em fundamentar uma ética ou uma crítica da sociedade sem cairmos no impasse das idiossincrasias de quem critica o seu tempo, uma vez que o relativismo cultural, etnológico, do homem moderno não deve ser reduzível a um relativismo filosófico. Assim, concluindo de maneira um tanto provisória, poderíamos dizer que a grande contribuição nietzschiana para o debate etnológico consiste, como Deleuze e Guattari observaram, na formulação do problema fundamental do socius primitivo em termos de código, inscrição, marca, ou seja, que a sociedade é “inscritora” e não “troquista”, que a marca (no corpo, na terra) é o que define uma cultura nas suas relações de contrato e de dívida.32 Afinal, para Nietzsche, o grande problema com a verdade e a ciência reside mesmo na sua pretensão de fundamentação a um nível que escape às normatizações culturais, como se fôra uma instituição social cuja auto-ilusão garantisse a sua objetividade no próprio esquecimento de sua gênese antropomórfica. Se Kant foi quem primeiro equacionou o problema antropológico numa perspectiva pragmática—onde abundam as idiossincrasias e os estereótipos sobre sexo, etnia e classe social--, coube a Nietzsche o mérito de suspeitar e problematizar a distinção kantiana entre uma moral cultural, que pode ser histórica e socialmente reconstituída, e a lei moral que possibilita, de forma transcendental, todo agir moral dos homens. Se Kant nos legou as aporias de auto-referencialidade de uma crítica da razão moderna, foi Nietzsche quem melhor situou as cisões da racionalidade na própria subjetividade moderna.  Por isso mesmo, Nietzsche não buscou reconciliar o universal e o particular numa única antropogênese, tampouco contentou-se com uma mera inversão do modelo teológico—como o fazem os idealistas alemães, na concepção do homem como Gattungswesen. Nietzsche não nos fornece uma teoria social, nem mesmo uma teoria do poder que pudesse nos ajudar a reformular uma crítica social. De tudo que nos foi legado de seu formidável corpus philosophicum e apesar dos riscos sinistros de uma má apropriação da sua “grande política” (“die große Politik”, KSA 13: 638), contentamo-nos com as grandes problematizações nietzschianas do político, que podem nos ajudar a rever conceitos e métodos de sistematização de nossas representações da modernidade.



[1]. KSA 12:125-127. Estamos adotando a edição crítica de Colli-Montinari, abreviada KSA. Para uma concordância das notas inéditas sobre a vontade de poder, ver Marie-Luise Haase e Jörg Salaquarda, “Konkordanz. Der Wille zur Macht: Nachlass in chronologischer Ordnung der Kritischen Gesamtausgabe,” Nietzsche Studien 9 (1980): 446-490; Scott Simmons, “A Concordance Indexing the Will to Power with the Critical Editions of Nietzsche’s Collected Works (KGW and KSA), New Nietzsche Studies 1 (1996): 126-153.

[2]. M. Heidegger. Nietzsche, vol. 1, Berlim: Neske, 1961, p. 9.

3. Cf .“On the Genealogy of Modernity: Kant, Nietzsche, Foucault”, tese de doutorado defendida em 1994 no Depto. de Filosofia da State University of New York at Stony Brook.

 

4. Cf. Mark Warren, Nietzsche and Political Thought, Cambridge, Mass.: MIT Press, 1988.

 

[5]. Cf. I. Kant, Lógica, trad. Guido Antônio de Almeida, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992, p. 42 (Ak 25); Kritik der reinen Vernunft, A 804-805; B 833-834.

[6]. Por exemplo, na Introdução a sua “Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” (Deutsch-Französische Jahrbücher, 1844), Marx afirma que a crítica da religião é a premissa de toda crítica, conduzindo à crítica do direito (em particular, da Sittlichkeit hegeliana) e à crítica da política (escola britânica da “economia política”). De resto, o conceito feuerbachiano do homem como Gattungswesen constitui o ponto de partida da apropriação crítica que Marx faz dos conceitos hegelianos de Entfremdung e Entäußerung (ver, em particular, o primeiro manuscrito parisiense, “Die Entfremdete Arbeit”, 1844).

[7]. É interessante atentarmos para a cuidadosa versão de Walter Kaufmann, The Will to Power, New York: Vintage Books, 1968. Doravante, abreviado WP. Sirvo-me da sua edição desses fragmentos, sem nenhuma pretensão de solução hermenêutica para o problema de sua significação na obra nietzschiana como um todo.

8. S. Marton, Nietzsche: Das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990. Devo a este trabalho toda a orientação de minha leitura de Foucault enquanto intérprete de Nietzsche, em oposição a interpretações heideggerianas. Cf. S. Marton, “Foucault leitor de Nietzsche” in Recordar Foucault, org. Renato J. Ribeiro, São Paulo: Brasiliense, 1985.

   

[9]. 3a. edição revista e aumentada, New York: Vintage Books, 1968.

[10]. Outros filósofos obviamente trataram de problemas de significado e valor, mas sem o interesse moderno, crítico, de submeter tais formulações a uma autocrítica do próprio método empregado.  Cf. G. Deleuze, Nietzsche et la philosophie, Paris: PUF, 1962, p.1.

[11]. Cf. Hans-Georg Gadamer, Truth and Method [Wahrheit und Methode, 1a. ed. 1960; 2a. ed. 1965], New York: Crossroad, 1986, p. 495. O debate entre Gadamer e Habermas, em boa parte arbitrado por Paul Ricoeur (Hermeneutics and the Human Sciences, ed. J.B. Thompson, Cambridge University Press, 1981), pode ser tomado como prévia do “debate” mais recente entre Habermas e Foucault (cf. J. Habermas,  O Discurso Filosófico da Modernidade, caps. 9 e 10; M. Foucault, Politics, Philosophy, Culture: Interviews and Other Writings 1977-1984, caps. 2, 4, 6).   

[12]. Os anos remetem à data de publicação. Essas obras serão respectivamente abreviadas, seguindo a KSA: GT, UB, MAM, FW, Z, JGB, GM, GD, AC, EH, WM. Sem dúvida, WM não pode ser tomado como um “livro” no sentido em que AC e EH são considerados “nachgelassene Werke”. Neste estudo, evitamos os dois extremos de descartar WM como obra rejeitada pelo próprio Nietzsche (como o propõe Bernd Magnus) ou de consagrá-la como Hauptwerk contendo o essencial da filosofia nietzschiana (como o faz Heidegger).

[13]. Cf. F. Nietzsche, “Le Philosophe. Considérations sur le conflit de l'art et de la connaissance”, in La naissance de la philosophie à l'époque de la tragédie grecque, Paris: Gallimard, 1985, p. 194. Cf., em português, O Livro do Filósofo, trad. Ana Lobo, Porto: Rés, 1984, p. 57-82.

[14]. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho, in Nietzsche, coleção “Os Pensadores”, São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 48.

[15]. J. Derrida, “La mythologie blanche: La métaphore dans le texte philosophique”, in Marges de la philosophie, Paris: Minuit, 1972.Cf. S. Kofman, Nietzsche et la métaphore, Paris: Payot, 1972.

[16]. Na edição Kröner, vol. 83, §§ 1208-1415.

[17]. M. Heidegger, “The Word of Nietzsche: ‘God is Dead’” [Nietzsches Wort “Gott ist tot”, 1943] in The Question Concerning Technology and Other Essays, trad. W. Lovitt, Nova York: Harper & Row, 1977, p. 54. A leitura que Heidegger faz de Nietzsche, sobretudo no que tange historicidade, metafísica e niilismo, foi também desenvolvida no ensaio “Zur Seinsfrage”, sobre a “linha” de saturação para a realização (Vollendung) do niilismo, em resposta ao ensaio de Ernst Jünger, “Über die Linie”, Wegmarken, Frankfurt: Klostermann, 1967.

[18]. Cf. M. Foucault, Folie et déraison: Histoire de la folie à l'âge classique,Paris: Plon, 1961; 2a. ed. Gallimard, 1972; “Nietzsche, Freud, Marx” in Cahiers de Royaumont No. VI, VIIe. Colloque, (4-8 juillet 1964), Paris: Minuit, 1967, pp. 183-200. Ao ser indagado sobre a loucura de Nietzsche, se este podia ter tido a experiência da loucura (“que de grands esprits comme Nietzsche puissent avoir l'expérience de la folie"), Foucault respondeu com um duplo Sim, "oui, oui!”

[19]. Cf. M. Heidegger, “The Word of Nietzsche: ‘God is Dead’”, op. cit., pp. 111-112; id., “Who is Nietzsche's Zarathustra?”, in David B. Allison (org.), The New Nietzsche, Boston: MIT Press,  p. 64-79.  

[20]. Na verdade, o próprio Heidegger problematiza a questão da superação (Überwindung) da metafísica em termos de uma Verwindung (verwinden, venir à bout de, to cope with, realizar depois de muito esforço), notavelmente no ensaio “Zur Seinsfrage”, op. cit.

[21]. Esta é, aliás, a grande tese pós-estruturalista --ou até mesmo anti-estruturalista-- que Foucault defenderia contra a leitura heideggeriana de Nietzsche e sua apropriação fenomenológica da genealogia.

[22]. GM III § 27; tanto para o texto da GM como para JGB cf. a edição Kröner, vol. 76, Stuttgart, 1976; servimo-me das traduções de Paulo César Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

[23]. M. Foucault, “Verdade e poder”, in Microfísica do poder, org. Roberto Machado, p. 7. Sobre a apropriação foucaultiana da genealogia nietzschiana, ver “Nietzsche, a genealogia e a história”, ibidem, pp. 15-37.

[24]. Cf. Nietzsche, col. “Os Pensadores”, op. cit., trad. Rubens Rodrigues Torres Filho, p. 178.

[25]. Cf. Karl Barth, La théologie protestante au dix-neuvième siècle, trad. L. Jeanneret, Genebra: Labor et Fides, 1969; Paul Tillich, La naissance de l’esprit moderne et la théologie protestante, trad. C. Aubert e B. Ganeau, Paris: Cerf, 1972. Diga-se de passagem que as influências de Kant sobre Barth e de Hegel sobre Tillich servem para ilustrar o próprio destino das correntes neo-ortodoxas e neo-liberais no século XX. 

[26]. Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft, in I. Kant, Schriften zur Religion, org. M. Thom, Berlin: Union Vlg., 1981; A Religião nos Limites da Simples Razão, trad. Artur Morão, Lisboa: Ed. 70, 1992; Kritik der reinen Vernunft, op. cit.; Textos Seletos, trad. Raimundo Vier, Petrópolis: Vozes, 1985.

[27]. Estamos nos servindo da excelente tradução de Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

[28]. Cf. I. Kant, On History, ed. Lewis White Beck, New York: Macmillan, 1973. Como bem observou Ricardo Terra, seria uma leitura caricata da filosofia kantiana da história reduzi-la, como o fazem certos “nietzschianos”, a uma “mera secularização de elementos cristãos”. Cf. A Política Tensa, São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 144.

[29].  Cf. “Sobre Verdade e Mentira num Sentido Extra-Moral,” op. cit., “Da Utilidade e Desvantagem da História para a Vida,” op. cit.; ver Sein und Zeit § 76 p. 396 para uma compreensão heideggeriana da passagem da wirkliche Historie a uma Geschichtlichkeit que a precede do ponto de vista ontológico.

30. Mark Warren, Nietzsche and Political Thought, op. cit.; William Connolly, Political Theory and Modernity. Oxford: Basil Blackwell, 1988.

31. Referimo-nos ao relacionamento com Wagner e às especulações em torno da irmã de Nietzsche, Elisabeth Förster, casada com o líder do movimento anti-semita alemão, Bernhard Förster. Cf. Walter Kaufmann, Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist, 3rd. edition, New York: Vintage, 1968; Jacques Derrida, The Ear of the Other, Lincoln and London: University of Nebraska Press, 1985.

 

32.  Cf. 2a. dissertação GM; Anti-Édipo, Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 234-241.

 

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